sábado, 6 de dezembro de 2014

A Rede Conceptual da Ação




Texto 1 - O homem e o Animal

      “Os animais (para já não falar nos minerais e nas plantas) não podem evitar ser como são e fazer aquilo que naturalmente estão programados para fazer. Não se lhes pode censurar que o façam nem aplaudi‑los pelo que fazem, porque não sabem comportar‑se de outro modo. As suas disposições obrigatórias poupam‑lhes sem dúvida muitas dores de cabeça.
Em certa medida, de início, nós, os homens, também estamos programados pela Natureza. Estamos feitos para beber água, e não lixívia, e tomemos as precauções que tomarmos, mais cedo ou mais tarde, morreremos. E de modo menos imperioso mas análogo, o nosso programa cultural, é também determinante: o nosso pensamento é condicionado pela linguagem que lhe dá forma (uma linguagem que nos é imposta de fora e que não inventámos para nosso uso pessoal) e somos educados em certas tradições, hábitos, formas de comportamento, lendas...; numa palavra, são‑nos inculcadas desde o berço certas fidelidades e não outras. Tudo isto pesa muito e faz com que sejamos bastante previsíveis.
     Com os homens nunca podemos ter bem a certeza, ao passo que com os animais, ou outros seres naturais, sim. Os castores fazem represas nos ribeiros e as abelhas favos com alvéolos hexagonais:
não há castores que se sintam tentados a fazer alvéolos de favos, nem abelhas que se dediquem à engenharia hidráulica. No seu meio natural cada animal parece saber perfeitamente o que é bom e o que é mau para ele, sem discussões nem dúvidas.
     Por grande que seja a nossa programação biológica ou cultural, nós, seres humanos, podemos acabar por optar por algo que não está no programa (pelo menos que lá não está totalmente). Podemos dizer «sim» ou «não», «quero» ou «não quero». Por muito apertados que nos vejamos pelas circunstâncias, nunca temos um só caminho, mas sempre vários.”                                        
Fernando Savater, Ética para um jovem.(Texto adaptado)

Texto 2 - Nem todos os atos do homem são atos humanos

"Deixando de lado alguns usos puramente técnicos da palavra ‘ação’ (por exemplo, ação como participação no capital de uma empresa), o núcleo significativo da palavra assenta na produção ou causação de um efeito. A palavra ‘ação’ emprega-se às vezes para falar de animais não humanos (diz-se que a ação das cigarras é benéfica para a agricultura) ou, inclusive, de objetos inanimados (diz-se que a gravitação é uma forma de ação à distância ou que a toda a ação exercida sobre um corpo corresponde uma ação igual de sentido contrário). Mas sobretudo usamos a palavra ‘ação’ para nos referirmos ao que fazem os humanos. Aqui só nos interessa este tipo de ação, a ação humana.
As nossas ações são (algumas das) coisas que fazemos. Na realidade o verbo ‘fazer’ cobre um campo semântico bastante mais amplo que o substantivo ‘ação’. O latim distingue o agere do facere (aos quais corresponde em português agir e fazer). Ao substantivo latino actio, derivado de agere, corresponde o substantivo ação. Assim, até de um ponto de vista etimológico, ‘ação’ só carrega a carga semântica de ‘agir’ e não propriamente de ‘fazer’.
Tudo quanto realizamos é parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma ação. Enquanto dormimos realizamos muitas coisas: respiramos, suamos, damos voltas, apertamos a cabeça contra a almofada, sonhamos, talvez ressonemos alto ou falemos em voz alta ou andemos sonâmbulos pela casa. Todas estas coisas as realizamos inconscientemente, enquanto dormimos. Realizamo-las mas não damos conta delas, não temos consciência de que as realizamos. A estas coisas que fazemos inconscientemente não lhes vamos chamar ações. Vamos reservar o termo ‘ação’ para as coisas que realizamos conscientemente, dando-nos conta de que as fazemos.
Há, no entanto, coisas que fazemos conscientemente, dando-nos conta delas, mas sem que à sua realização corresponda uma intenção nossa. Damo-nos conta dos nossos ‘tiques' e de muitos dos nossos atos reflexos, mas realizamo-los involuntariamente, constatamo-los como espectadores, não os efetuamos como agentes. (A palavra ‘agente’ é outra das palavras derivadas do verbo latino agere). Por algo que sentimos depois de comer damo-nos conta de que estamos a fazer a digestão. Mas fazer a digestão não constitui (normalmente) uma ação. Pelos sorrisos dos que nos observam damo-nos conta de que estamos a ser ridículos. Mas ser ridículo (praticar atos ridículos) não é uma ação, mas uma reação, algo que nos passa despercebido e que lamentamos (a não ser que o façamos de propósito, como provocação; neste caso já seria uma ação). Também não chamamos ação a esses aspectos da nossa conduta de que nos damos conta, mas que não efectuados intencionalmente. No presente estudo limitar-nos-emos às ações humanas conscientes e voluntárias, às que daqui em diante chamaremos ações (sem mais).
Uma ação é uma interferência consciente e voluntária de um homem ou de uma mulher (o agente) no normal decurso das coisas, que sem a sua interferência haveriam seguido um caminho distinto do que por causa da ação seguiram. Uma ação consta, pois, de um evento que sucede graças à interferência de um agente e de um agente que tinha a intenção de interferir para conseguir que tal evento sucedesse.
Jesús MOSTERÍN - Racionalidad y Acción Humana.


Texto 3 - Os elementos constitutivos da ação

“Para compreendermos o que é a ação, e para a podermos distinguir dos outros atos do homem, temos que ter em conta os diversos elementos que a constituem.
 Graças a eles podemos compreender porque é que alguém agiu de determinada forma, o que é que essa pessoa queria efetivamente realizar com a sua acção, quais as consequências dessa ação e qual a sua responsabilidade face a essas consequências. É isso que acontece, por exemplo, na investigação criminal, mas não é preciso ir tão longe: em qualquer situação em que nos deparemos com uma ação, se não conhecemos todos os seus contornos, somos levados a levantar as seguintes questões:

1. Quem agiu (‘quem fez isto?’)?
2. Porquê? Com que motivo?
3. Para quê? Com que intenção? Com que finalidade?
4. Quais as consequências dessa acção? Todas elas foram ponderadas pelo agente?

A primeira questão remete-nos para o autor da ação, para o agente. Ora para que alguém seja agente de uma ação, é necessário que estejamos perante um ser dotado de consciência racional e de uma vontade livre. Assim, o agente é responsável pelas ações que pratica, porque estas são atos voluntários que resultam de uma deliberação. Podemos então concluir que todos os atos que nascem da nossa liberdade são da nossa responsabilidade. E responsabilidade, a este nível, significa que é o agente quem responde pelas suas cções e pelas respectivas consequências (sejam elas boas ou más), porque não há ninguém acima da sua liberdade: o agente age porque quer, ele é dotado de uma vontade soberana, ele é senhor das suas ações.
A segunda questão refere-se ao motivo da ação. Toda a ação é motivada, ou seja tem que existir uma causa, interna ou externa, que leve o agente a tomar a decisão de agir. Se não tivermos uma motivação para fazermos algo, não o fazemos. Assim, o motivo é a causa que suscita no agente a vontade de agir, que o leva, num dado momento, a preferir fazer uma coisa e não outra. Uma pessoa pode estar confortavelmente sentada a ouvir música, mas se sentir fome, pode decidir ir à cozinha fazer um lanche, por sentir fome. Pode, também, decidir ir estudar, por ter que realizar testes de avaliação na escola. Ou pode decidir desligar a aparelhagem por começar a sentir dores de cabeça.
A terceira questão tem a ver com a intenção do agente. Há quem considere que a intenção é a chave para a compreensão de uma ação. De facto, se nos situarmos num ponto de vista moral, para sabermos se uma ação é boa ou má, temos que conhecer a intenção do agente, temos que saber o que é que ele queria alcançar com a sua ação, quais os fins que ele queria atingir, enfim, o que é que ele projetou quando decidiu agir daquela forma. Por exemplo, se acontecer um incêndio de grandes proporções, e se as autoridades descobrirem que esse incêndio começou devido à ação de um determinado indivíduo, só poderão saber se esse indivíduo, que é responsável pelas suas ações, é criminalmente  responsável  pelo incêndio, depois de descobrirem qual a intenção desse indivíduo. Se ele acendeu uma pequena fogueira para assar sardinhas, e se uma rajada de vento espalhou as brasas ateando o incêndio, esse indivíduo pode não  ser criminalmente responsável pelo incêndio, apesar de, em última instância, ser o causador do mesmo. Caso tenha havido incúria, ou o desrespeito por uma proibição de atear fogo nesse local, então, nesse caso, o agente será criminalmente responsável, mesmo se a sua intenção não era provocar um incêncio. Mas se, por outro lado, se apurar que esse indivíduo agiu com a intenção de, através do incêndio, provocar danos a terceiros, motivado pelo ódio, então ele é duplamente responsável: ele é responsável por ser o causador do incêndio, e é criminalmente responsável, porque a sua intenção era criminosa.
Por fim, em relação à quarta questão, temos as consequências da ação. E elas existem porque todas as ações têm um impacto sobre o real, o agente interfere com a realidade, a sua ação é um acontecimento que dá origem a outros acontecimentos que, por sua vez, podem ter efeitos positivos ou negativos na vida das outras pessoas. O agente é, direta ou indiretamente, responsável pelas consequências das suas ações, mas a sua responsabilidade moral, só pode ser aferida tendo em conta a intenção que presidir a cada uma dessas ações. Isto faz com que o agente tenha o dever de pensar nas consequências das suas ações, antes de as pôr em prática. E, mesmo assim, podem acontecer resultados imprevistos, porque nós temos o poder de decidir fazer algo, mas não controlamos a forma como a realidade se vai comportar em relação às  nossas ações.”


Atividades:

1. De acordo com o texto 1, o que é que distingue o homem dos outros animais? Justifique a sua resposta.

2. Todos os atos do homem são ações? O que é necessário para considerarmos um ato do homem uma ação? Justifique a sua resposta.

3. Pode dizer-se que os animais agem? Justifique a sua resposta.

4. Identifique e caracterize, por palavras suas, os elementos constitutivos da ação.

5. Comente a seguinte afirmação do texto 3: “E responsabilidade, a este nível, significa que é o agente quem responde pelas suas acções e pelas respectivas consequências (sejam elas boas ou más)”.

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