Ainda no início do novo ano, fica aí uma síntese da célebre "Declaração universal dos deveres humanos". Para superar a crise e para que a esperança não seja mera ilusão, wishfull thinking, precisamos todos de ser fiéis às nossas responsabilidades e cumprir os nossos deveres.
Já na discussão do Parlamento revolucionário de Paris sobre os direitos humanos, em 1789, se tinha visto que "direitos e deveres têm de estar vinculados", pois "a tendência para fixar-se nos direitos e esquecer os deveres" tem "consequências devastadoras".
Foi assim que, em 1997 e após debates durante dez anos, o Interaction Council (Conselho Interacção) de antigos chefes de Estado e de Governo, como Maria de Lourdes Pintasilgo, V. Giscard d'Estaing, Kenneth Kaunda, Felipe González, Mikhail Gorbachev, Shimon Peres, fundado em 1983 pelo primeiro- -ministro japonês Takeo Fukuda, sob a presidência do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, propôs a Declaração Universal dos Deveres Humanos. Na sua redacção, teve lugar destacado o teólogo Hans Küng.
O Preâmbulo sublinha que: o reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais e inalienáveis de todos implica obrigações e deveres; a insistência exclusiva nos direitos pode acarretar conflitos, divisões e litígios intermináveis, e o desrespeito pelos deveres humanos pode levar à ilegalidade e ao caos; os problemas globais exigem soluções globais, que só podem ser alcançadas mediante ideias, valores e normas respeitados por todas as culturas e sociedades; todos têm o dever de promover uma ordem social melhor, tanto no seu país como globalmente, mas este objectivo não pode ser alcançado apenas com leis, prescrições e convenções. Nestes termos, a Assembleia Geral proclama esta Declaração, a que está subjacente "a plena aceitação da dignidade de todas as pessoas, a sua liberdade e igualdade inalienáveis, e a solidariedade de todos", seguindo-se os seus 19 artigos, de que se apresenta uma síntese.
1. Princípios fundamentais para a humanidade. Cada um/a e todos têm o dever de tratar todas as pessoas de modo humano, lutar pela dignidade e auto-estima de todos os outros, promover o bem e evitar o mal em todas as ocasiões, assumir os deveres para com cada um/a e todos, para com as famílias e comunidades, raças, nações e religiões, num espírito de solidariedade: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.
2. Não violência e respeito pela vida. Todos têm o dever de respeitar a vida. Todo o cidadão e toda a autoridade pública têm o dever de agir de forma pacífica e não violenta. Todas as pessoas têm o dever de proteger o ar, a água e o solo da terra para bem dos habitantes actuais e das gerações futuras.
3. Justiça e solidariedade. Todos têm o dever de comportar-se com integridade, honestidade e equidade. Dispondo dos meios necessários, todos têm o dever de fazer esforços sérios para vencer a pobreza, a subnutrição, a ignorância e a desigualdade, e prestar apoio aos necessitados, aos desfavorecidos, aos deficientes e às vítimas de discriminação. Todos os bens e riquezas devem ser usados de modo responsável, de acordo com a justiça e para o progresso da raça humana.
4. Verdade e tolerância. Todos têm o dever de falar e agir com verdade. Os códigos profissionais e outros códigos de ética devem reflectir a prioridade de padrões gerais como a verdade e a justiça. A liberdade dos media acarreta o dever especial de uma informação precisa e verdadeira. Os representantes das religiões têm o dever especial de evitar manifestações de preconceito e actos de discriminação contra as pessoas de outras crenças.
5. Respeito mútuo e companheirismo. Todos os homens e todas mulheres têm o dever de demonstrar respeito uns para com os outros e compreensão no seu relacionamento. Em todas as suas variedades culturais e religiosas, o casamento requer amor, lealdade e perdão e deve procurar garantir segurança e apoio mútuo. O planeamento familiar é um dever de todos os casais. O relacionamento entre os pais e os filhos deve reflectir o amor mútuo, o respeito, a consideração e o cuidado.
Anselmo Borges, www.dn.pt - 12/02/2011
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Vivemos numa época de esquecimento de verdades fundamentais que são o património mais precioso da civilização ocidental. Uma civilização que vive um ocaso difícil de enfrentar com una intencionalidade histórica virada para o futuro. Porque o que conforma hoje as vias de compreensão do mundo e do homem é o fechamento ao novo e ao Diferente.
É o ocaso do Pensamento emancipador e da acção libertária.
Do ponto de vista político assume-se como natural a destruição das conquistas civilizacionais levadas a cabo pelos trabalhadores, à custa de muito sofrimento, de mortes, de repressão, de lutas que custaram demasiado caro aos que nos precederam para hoje não sabermos dar continuidade ao esforço de dignificação dos homens, seja qual for a sua condição, encarados como agentes de mudança cultural.
Hoje procura reduzir-se a densidade cultural do trabalho à mera actividade de produção, sem que se considere o trabalhador como um sujeito ético, portador de direitos e agente deontológico com um papel determinante na construção duma sociedade mais humana e mais aberta à transformação civilizadora.
Há um empobrecimento do conceito de cidadania, reduzido quase à sua acepção económica e expurgado de qualquer dimensão espiritual.
A classe dirigente parece ignorar, por exemplo, que o desemprego que atinge números humanamente incomportáveis tanto em Portugal com nos restantes países do primeiro mundo, não é um problema que se possa resolver no actual quadro sócio-político. O desemprego é estrutural e não regredirá significativamente se houver crescimento económico.
Há que mudar de paradigma. Em vez de se diabolizar os trabalhadores da Função Pública, há que repensar o papel do Estado na criação de emprego social. As áreas da educação, da saúde, da solidariedade social, são deficitárias em termos de pessoal qualificado para apoio às pessoas, tenham elas necessidades específicas ou não.
É irracional termos um Estado que forma milhares de licenciados por ano para os condenar ao desemprego.
Aquilo que a classe governante está a fazer aos professores contratados, por exemplo, é mais do que criminoso. Quem pode arroga-se o direito de tratar outros seres humanos como meros recursos que podem ser usados, e descartados, sem atender à sua dignidade e à excelência ética do exercício das suas funções? Isto vale para todas as profissões, para todos os seres humanos.
Fala-se das escassez de recursos para alimentar um Estado-providência cada vez mais gastador. O que deve ser encarado com toda a frontalidade é a necessidade de se assumir que é necessária uma mudança de paradigma sócio-cultural. Há que repensar prioridades. O que é prioritário é melhorar a equidade na distribuição da riqueza produzida pela sociedade, dando valor ao trabalho e às pessoas, consideradas na sua radicalidade existencial e sem as reduzir a meros recursos a serem usados de forma abusiva e eticamente degradante.
Isto só é possível elevando o nível da participação democrática dos cidadãos.
Em democracia não deve haver factos consumados ou qualquer tipo de determinismo económico que ponha em causa a soberania do povo. Isto no plano ideal. Porque na prática assistimos à imposição dum totaliarismo atroz à vontade soberana dos povos que pretendem viver em democracia.
É um imperativo ético que o pensamento emancipador, na sua vertente filosófica, mas também estética, científica e espiritual, num sentido alargado, possa elevar-se como uma via de clarificação política. Em primeiro lugar, denunciando os dispositivos de dissuasão que impedem a tomada de consciência do enclausuramento totalitário e mantêm os cidadãos afastados do seu poder efectivo de se assumirem como agentes de mudança.
Neste sentido, a consciência da importância dos deveres como o garante do usufruto dos direitos é verdadeiramente revolucionária, porque coloca cada ser humano no papel de agente e não apenas de usufrutuário dum estatuto eticamente amorfo.
O ser, legitimado no campo político por um dever-ser instaurador duma mundividência orientada para a autonomia e para a participação empenhada na vida colectiva, é o que se torna necessário nesta época em que parece imperar a abdicação e o exílio histórico da cidadania responsável.
A melhor forma de lutarmos contra a corrupção é sermos incorruptíveis. O autêntico governo, a verdadeira soberania, é o exercício do poder-ser que emerge da nossa liberdade espiritual, a nossa esfera de auto-determinação. Sempre podemos fazer um pouco mais no que se refere ao alargamento das nossas capacidades de acção e de compreensão.
Paulo Feitais
Publicado originariamente no blogue: Mãos abertas - Sonhos à solta
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