domingo, 7 de fevereiro de 2016

O monismo e o dualismo - o problema da relação mente/corpo

Imagem de Gilbert Garcin

A primeira questão colocada pela filosofia da mente é a seguinte: serão mente e corpo a mesma coisa? Será o pensamento apenas um produto do meu cérebro — que produziria pensamentos da mesma forma que o meu pâncreas produz insulina? Qual é a natureza dos fenómenos mentais? 
Essa não é apenas uma primeira questão numa ordem de indagações. Trata-se da pergunta mais importante a ser respondida pela filosofia da mente — o problema fundamental que dá origem a quase todos os temas tratados por essa disciplina. 
Eu posso fechar os meus olhos e, numa fracção de segundos, pensar em estrelas coloridas a  cintilar num céu azul-escuro. Estrelas que nem sequer sei se existem, e que talvez estejam a muitos anos-luz de distância. Eu posso imaginar uma vaca amarela ou então dizer que estou a sentir muito calor. Entretanto, se alguém pudesse abrir o meu cérebro e examiná-lo com o mais aperfeiçoado instrumento de observação de que a ciência dispõe, não veria estrelas coloridas nem uma vaca amarela. Veria apenas uma massa cinzenta, cheia de células ligadas entre si. 
Essas células são chamadas neurónios, verdadeiras unidades do sistema nervoso cuja existência foi finalmente provada somente há cerca de um século com o trabalho de S. Ramón y Cajal. Até então muitos achavam que o sistema nervoso era um conjunto de vias contínuas, subdivididas em minúsculos filamentos. Os neurónios têm diversas formas e tamanhos, tendo, todos, entretanto, uma região destinada a fazer contacto com outros neurónios, os chamados dendritos. O corpo da célula, o soma, contém um núcleo e outras estruturas, como os mitocôndrias, que participam dos aspectos metabólicos da actividade dos neurónios. Há também uma outra conexão de um neurónio com outros, mais longa e através da qual se movimenta o impulso nervoso. Essa conexão é chamada axónio. Cada região do neurónio revela propriedades eléctricas, mas os impulsos geralmente ocorrem, na maioria das vezes, no axónio. 
Desde o aparecimento dos trabalhos de Ramón y Cajal, nenhuma outra disciplina se desenvolveu tanto neste século XX quanto a neurociência. Dispomos hoje de um conhecimento bastante preciso do funcionamento cerebral e das suas unidades básicas, bem como das reacções químicas que nele ocorrem. Sabemos que o cérebro é uma máquina complexa resultante da reunião de elementos fundamentais: o neurónio ou unidade básica, as sinapses ou conexões entre os neurónios e as ligações químicas que ali ocorrem, através de neurotransmissores e receptores. Essas combinações tornam-no uma máquina extremamente poderosa, na medida em que são capazes de gerar configurações e arranjos variados num número astronómico. 
Contudo, o grande desafio que a neurociência ainda enfrenta é a dificuldade (ou será uma impossibilidade?) de relacionar o que ocorre no cérebro com aquilo que ocorre na mente, ou seja, de encontrar algum tipo de tradução entre sinais eléctricos das células cerebrais e aquilo que percebo ou sinto como sendo meus pensamentos. A observação da actividade eléctrica do meu cérebro não permite saber se estou a pensar em estrelas coloridas ou numa vaca amarela. Alguém poderia até inferir — de algum tipo de observação do que ocorre no meu cérebro — que estou a sentir calor, mas não saberia dizer se o calor que eu sinto é maior ou menor do que o calor que o cientista, ao observar meu cérebro, estaria a sentir. 
Se ninguém pode observar esses fenómenos que ocorrem em mim e se ninguém os encontra no meu cérebro, então posso formular duas perguntas: Onde estarão eles a ocorrer? E o que serão eles se — pelo menos inicialmente — não posso supor que sejam objectos como quaisquer outros que se apresentam diante de mim, como parte da natureza? 
Estas duas questões estão na origem da determinação daquilo a que chamamos «subjectividade». As estrelas coloridas e cintilantes, bem como as vacas amarelas, existem para mim, pelo menos momentaneamente. Se ninguém mais pode observá-las, posso então dizer que estes são estados subjectivos. Os estados subjectivos encontram-se na nossa mente, mas não na natureza. Eu preciso de uma mente para ter estados subjectivos, já que esses não se podem encontrar nem mesmo no meu cérebro. Surge então uma pergunta preliminar: mas o que são as mentes? Se as mentes se caracterizam por ter estados subjectivos e esses não se podem encontrar no meu cérebro, estaremos então a afirmar que não precisamos de cérebros para ter mentes? Algumas pessoas sustentam tal ponto de vista, quase sempre a partir de crenças religiosas de vários tipos. Esse ponto de vista é, entretanto, contra-intuitivo: sabemos que, se danificarmos o cérebro de uma pessoa, muitas das suas actividades mentais serão também afectadas. Sabemos também que, se bebermos várias doses de cerveja, a nossa mente ficará alterada. O mesmo ocorre quando tomamos algum tipo de droga. Altero a minha mente porque alterei o meu corpo — sabemos que tanto o álcool como as outras drogas actuam sobre regiões do cérebro, alterando o seu equilíbrio químico. O problema que enfrentamos consiste em definir que tipo de relação existe entre a mente e o corpo ou entre a mente e o cérebro. 
Podemos começar por considerar que tipo de estratégia poderíamos adoptar para abordar esse problema. Uma delas consiste em apostar no avanço progressivo da ciência e supor que o problema da relação mente e cérebro seja um problema empírico, ou seja, um problema científico como qualquer outro que algum dia acabará por ser desvendado. O grande avanço da neurociência nos últimos anos e a progressiva e tentadora possibilidade de explicar a natureza do pensamento através da estrutura química do cérebro seria uma boa razão para adoptar essa estratégia. Outra estratégia consiste em apostar que esse é um problema que ultrapassa os limites daquilo que a ciência pode vir a esclarecer. Qualquer uma das estratégias significa uma aposta. Uma aposta que, de uma forma ou de outra, envolve uma tomada de decisão em favor de algum tipo de imagem do mundo. 
Um exame preliminar de como a relação entre mente e cérebro poderia ser concebida parece forçar-nos a optar por dois tipos de alternativas básicas: ou os estados mentais (e estados subjectivos) são apenas uma variação ou um tipo especial de estados físicos (monismo); ou os estados mentais e subjectivos definem um domínio completamente diferente — e talvez à parte — dos fenómenos físicos (dualismo). Essas duas alternativas são apenas a transcrição das apostas que podemos fazer, seja em favor de uma imagem do mundo ou de outra. A primeira sugere que existem apenas cérebros e que os estados subjectivos podem ser apenas uma ilusão a ser desfeita pela ciência. A segunda aposta na existência de algo a que chamamos "mentes" que, para alguns, só poderia ser explicado pela religião ou pela adopção de uma visão mística do mundo. 
É nesse sentido que o problema mente-cérebro é também visto como um problema ontológico: é preciso saber se o mundo é composto apenas de um tipo de substância, ou seja, a substância física, e se a mente é apenas uma variação desta última, ou se, na verdade, nos defrontamos com dois tipos de substâncias totalmente distintas, com propriedades irredutíveis entre si. Por outras palavras: há duas substâncias ou uma só? Há uma realidade ou pelo menos duas? Se há duas realidades, um mundo da matéria e outro imaterial, de que lado devemos situar as mentes? 
|João de Fernandes Teixeira 
Adaptação portuguesa de António Paulo da Costa 
Extracto retirado do livro Mente, Cérebro e Cognição (Petrópolis: Vozes, 2000), pp. 15-17. 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A Teoria CVJ (Conhecimento como crença verdadeira justificada)

Imagem de Gilbert Garcin


Suponhamos que o conhecimento requer estas três condições. Será que isto é suficiente? Será que estas condições não são apenas separadamente necessárias, mas também conjuntamente suficientes? Chamarei CVJ à teoria que afirma que assim é. Esta teoria diz que ter conhecimento é a mesma coisa que ter crenças verdadeiras justificadas:
(CVJ) Para que qualquer indivíduo S e para qualquer proposição p, S conhece p se e somente se

1. S acredita em p
2. p é verdadeira
3. a crença de S em p está justificada

A Teoria CVJ afirma uma generalização. Diz o que é o conhecimento para qualquer pessoa e para qualquer proposição p. Por exemplo, suponhamos que S és tu e que p = «A Lua é feita de queijo verde». A teoria CVJ diz o seguinte: se sabes que a Lua é feita de queijo verde, então os enunciados 1, 2 e 3 devem ser verdadeiros. E se não sabes que a Lua é feita de queijo verde, então pelo menos um dos enunciados de 1 a 3 deve ser falso. A a expressão «se, e somente se» diz-nos que são dadas condições necessárias e suficientes para o conceito definido.

Três Contraexemplos à Teoria CVJ
Em 1963, o filósofo Edmund Gettier publicou dois contraexemplos para a teoria CVJ. O que é um contraexemplo? É um exemplo que contradiz o que diz uma teoria geral. Um contraexemplo contra uma generalização mostra que a generalização é falsa. A teoria CVJ diz que todos os casos de crença verdadeira justificada são casos de conhecimento. Gettier pensa que estes dois exemplos mostram que um indivíduo pode ter uma crença verdadeira justificada mas não ter conhecimento. Se Gettier tiver razão, então as três condições indicadas pela teoria CVJ não são suficientes.
Eis um dos exemplos de Gettier:
Smith trabalha num escritório. Ele sabe que alguém será promovido em breve. O patrão, que é uma pessoa em quem se pode confiar, diz a Smith que Jones será promovido. Smith acabou de contar as moedas no bolso de Jones, encontrando aí 10 moedas. Smith tem então boas informações para acreditar na seguinte proposição:

a) Jones será promovido e Jones tem 10 moedas no bolso.
Smith deduz, então, deste enunciado o seguinte:
b) O homem que será promovido tem 10 moedas no bolso.

Suponha-se agora que Jones não receberá a promoção, embora Smith não o saiba. Em vez disso, será o próprio Smith a ser promovido. E suponha-se que Smith também tem dez moedas dentro do bolso. Smith acredita em b, e b é verdadeira. Gettier afirma também que Smith acredita justificadamente em b, dado que a deduziu de a. Apesar de a ser falsa, Smith tem excelentes razões para pensar que é verdadeira. Gettier conclui que Smith tem uma crença verdadeira justificada em b, mas que Smith não sabe que b é verdadeira.
O outro exemplo de Gettier exibe o mesmo padrão. Um sujeito deduz validamente uma proposição verdadeira a partir de uma proposição que está muito bem apoiada por informações, embora esta seja falsa, apesar de o sujeito não o saber. Quero agora descrever um tipo de contraexemplo à teoria CVJ na qual o sujeito raciocina não dedutivamente.
O filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970) refere um relógio muito fiável que está numa praça. Esta manhã olhas para ele para saber que horas são. Como resultado ficas a saber que são 9.55. Tens justificações para acreditar nisso, baseado na suposição correta de que o relógio tem sido muito fiável no passado. Mas supõe que o relógio parou há exatamente 24 horas, apesar de tu não o saberes. Tens a crença verdadeira justificada de que são 9.55, mas não sabes que esta é a hora correcta.
Que Têm os Contra-Exemplos em Comum?
Em todos estes casos, o sujeito tem dados para acreditar na proposição em causa que são altamente credíveis, mas não infalíveis. O patrão está geralmente certo sobre quem vai ser promovido, o relógio está geralmente certo quanto às horas. Mas é claro que geralmente não é sempre. As fontes da informação que os sujeitos exploraram nestes exemplos são altamente credíveis, mas não são perfeitamente credíveis. Todas as fontes de informação eram susceptíveis de erro, pelo menos até certo ponto.
Será que estes exemplos refutam realmente a teoria CVJ? Depende de como entendemos a ideia de justificação. Se dados altamente credíveis são suficientes para justificar uma crença, então estes contraexemplos refutam realmente a teoria CVJ. Mas se a justificação requer dados perfeitamente infalíveis, então estes exemplos não refutam a teoria.
A minha opinião é de que os dados que justificam uma crença não precisam de ser infalíveis. Penso que podemos ter crenças racionais bem apoiadas mesmo quando não nos empenhamos em estar absolutamente certos de que o que acreditamos é verdadeiro. Assim, concluo que a crença verdadeira justificada não é suficiente para o conhecimento.
|Elliott Sober. Tradução de Paula Mateus. Texto retirado do livro Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008), in http://criticanarede.com/fil_con



Actividades:
1. O conhecimento pode ser definido, de forma geral, como crença verdadeira justificada? Justifique a sua resposta com base nos contra-exemplos de Gettier.
2. Formule dois contraexemplos à teoria CVJ.













quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Tipos de Conhecimento


Elliott Sober
Tradução de Paula Mateus

Texto retirado do site Critica na Rede

No quotidiano falamos de conhecimento, de crenças que estão fortemente apoiadas por dados, e dizemos que elas têm justificação ou que estão bem fundamentadas. A epistemologia é a parte da filosofia que tenta entender estes conceitos. Os epistemólogos tentam avaliar a ideia, própria do senso comum, de que possuímos realmente conhecimento. Alguns filósofos tentaram apoiar com argumentos esta ideia do senso comum. Outros fizeram o contrário. Os filósofos que defendem que não temos conhecimento, ou que as nossas crenças não têm justificação racional, estão a defender uma versão de cepticismo filosófico.
Antes de discutirmos se temos ou não conhecimento, temos de tornar claro o que é o conhecimento. Podemos falar de conhecimento em três sentidos diferentes, mas apenas um nos vai interessar. Considerem-se as seguintes afirmações acerca de um sujeito, ao qual chamarei S:
  1. S sabe andar de bicicleta.
  2. conhece o Presidente dos EUA.
  3. S sabe que a Serra da Estrela fica em Portugal.
Chamo conhecimento proposicional (ou saber-que) ao tipo de conhecimento apresentado em 3. Note-se que o objecto do verbo em 3 é uma proposição — uma coisa que é verdadeira ou falsa. Existe uma proposição — a Serra da Estrela fica em Portugal — e S sabe que essa proposição é verdadeira.
As frases 1 e 2 não têm esta estrutura. O objecto do verbo em 2 não é uma proposição, mas uma pessoa. O mesmo aconteceria se disséssemos que conhece
Lisboa. Uma frase como 2 diz que S está ou esteve na presença de uma pessoa, de um lugar ou de uma coisa. Por isso dizemos que 2 corresponde a um caso de conhecimento por contacto.
Existe alguma ligação entre estes dois tipos de conhecimento? Possivelmente, para que conheça o Presidente dos Estados Unidos, terá de ter conhecimento proposicional acerca dele. Mas qual? Para que S conheça o Presidente terá de saber em que Estado ele nasceu? Isso não parece essencial. E o mesmo parece acontecer relativamente a todos os outros factos acerca dele: não parece haver qualquer proposição específica que seja necessário saber para se possa dizer que se conhece o Presidente. Conhecer uma pessoa implica, isso sim, ter um tipo qualquer de contacto directo com ela.
Chamemos ao tipo de conhecimento exemplificado em 1 conhecimento de aptidões (saber-fazer ou saber como) . Que significa dizer que se sabe fazer alguma coisa? Penso que isto tem pouco a ver com o conhecimento proposicional. Uma pessoa pode saber andar de bicicleta aos cinco anos, e para isso não precisa de saber qualquer proposição acerca desse facto. O contrário também pode acontecer: uma pessoa pode ter muito conhecimento proposicional acerca de um assunto — de pintura, por exemplo — , e não ter qualquer conhecimento de aptidões a esse respeito.
Vamos aqui abordar apenas o conhecimento proposicional. Queremos saber o que é necessário para que um indivíduo S saiba que p, sendo p uma proposição qualquer — como a de que a Serra da Estrela fica em Portugal. Daqui em diante, quando falarmos de conhecimento, estaremos sempre a referir-nos ao conhecimento proposicional.
Elliott Sober
Retirado do livro Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008)

O Empirirsmo e o Racionalismo (O problema da origem do conhecimento)

Imagem de Gilbert Garcin
O problema da origem do conhecimento
Introdução
A epistemologia, também chamada teoria do conhecimento ou gnosiologia, é o ramo da filosofia interessado na investigação da natureza, fontes e validade do conhecimento. Entre as questões principais que ela tenta responder estão as seguintes: O que é o conhecimento? Como nós o alcançamos? Podemos conseguir meios para defendê-lo contra o desafio céptico? Essas questões são, implicitamente, tão velhas quanto a filosofia.
Um passo óbvio na direcção de responder à primeira questão é tentar uma definição de conhecimento. A definição padrão, preliminarmente, é a de que o conhecimento é crença verdadeira justificada. Esta definição parece plausível porque, ao menos, ela dá a impressão de que para conhecer algo alguém deve acreditar nele, que a crença deve ser verdadeira, e que a razão de alguém para acreditar deve ser satisfatória à luz de algum critério, pois alguém não poderia dizer conhecer algo se a sua razão para acreditar fosse arbitrária ou aleatória. Assim, cada uma das três partes da definição parece expressar uma condição necessária para o conhecimento, e a reivindicação é a de que, tomadas em conjunto, elas são suficientes.

A origem do conhecimento
Paralelamente a esse debate sobre como definir o conhecimento há um outro sobre como o conhecimento é adquirido. Na história da epistemologia tivemos duas principais escolas de pensamento sobre o que constitui o meio mais importante para o conhecer. Uma é a escola "racionalista", que mantém que a razão é responsável por esse papel. A outra é a "empirista", que mantém que é a experiência, principalmente o uso dos sentidos, ajudados, quando necessário, por instrumentos, que é responsável por tal papel.
O paradigma de conhecimento para os racionalistas é a matemática e a lógica, onde verdades necessárias são obtidas por intuição e inferência racionais. Questões sobre a natureza da razão, a justificação da inferência e a natureza da verdade, especialmente da verdade necessária, são um desafio para esta corrente.
O paradigma dos empiristas é a ciência natural, onde observações e experimentações são cruciais para a investigação.
|Elliott Sober. Tradução de Paula Mateus. Texto retirado do livro Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008), in http://criticanarede.com/fil_con

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Imagina que enfrentaste o cepticismo e superaste o desamparo em que ele queria deixar-te. Vais pressupor que sabemos algumas coisas. Mesmo que esse conhecimento seja trivial, isso basta para os nossos propósitos. Por exemplo, sabes que "a teoria de Darwin é tratada na página 99 do manual de Biologia"; se alguém te perguntar por que razão o sabes, a tua resposta será "porque consultei o manual e vi que a teoria de Darwin era tratada na página 99". Sabes que "o mar está calmo" porque foste à praia e viste que o mar estava calmo. Nos dois casos, afirmas que tens conhecimento com base no que viste. A experiência de ver é a justificação para as tuas crenças. Daí podermos dizer que a experiência é a origem destes conhecimentos. A teoria associada à ideia de que a origem do conhecimento está na experiência é o empirismo. Na sua forma extrema, o empirismo defende que, em última instância, todo o conhecimento deriva de, ou consiste em, verdades obtidas apenas a partir da experiência (a posteriori).

Considera um exemplo diferente. Imagina que tens três gatinhos e dois cestos e que vais distribuir alguns gatinhos por um dos cestos e alguns gatinhos pelo outro. Quantas maneiras tens de o fazer? Poderás descobrir experimentando e contando todas as possibilidades. Ou poderás descobrir raciocinando da seguinte maneira: o primeiro gatinho pode ir para o cesto direito ou para o esquerdo, o que dá duas maneiras de começar; cada uma destas maneiras pode ser continuada pondo o segundo gatinho no cesto direito ou no cesto esquerdo, o que faz duas vezes duas ou quatro maneiras de realizar a tarefa; por último, o terceiro gatinho pode ir para o cesto direito ou esquerdo, o que dará um total de quatro vezes duas ou oito maneiras de distribuir os gatinhos pelos cestos. Neste caso, descobres quantas maneiras tens de distribuir os gatinhos sem recorrer a indícios empíricos; sabes a verdade previamente a qualquer indício empírico. Se tiveste dificuldade em entender este exemplo, podes simplesmente pensar num exercício de aritmética elementar como somar 85 a 23. Caso resolvas o exercício apenas pelo pensamento, dispensando o recurso a uma máquina de calcular, também neste caso sabes a verdade previamente a qualquer indício empírico. Diz-se por isso que estes conhecimentos são a priori: a sua origem está na razão. A teoria associada à ideia de que a origem do conhecimento está na razão é o racionalismo. Na sua forma extrema, o racionalismo defende que, em última instância, todo o conhecimento deriva ou depende de verdades obtidas apenas a partir da razão (a priori).

O a priori e o a posteriori são modos de conhecimento. Os exemplos dos gatinhos e da soma é elucidativo: podes saber certas coisas de um modo a priori ou a posteriori. Se sabes através da experiência, sabes a posteriori, se sabes pelo pensamento apenas, sabes a priori. Em si, as crenças não são a priori ou a posteriori. Mas não penses que a noção de a priori é pacífica entre os filósofos especializados na discussão de questões epistémicas. Aceitar que podemos conhecer coisas a priori é, em geral, aceitar que podemos saber coisas acerca do mundo sem olhar para ele, independentemente da experiência. Contudo, não é fácil explicar como isso é possível, e alguns filósofos rejeitam que isso seja possível.
Arrumar os filósofos mais importantes da Idade Moderna em racionalistas e empiristas poderá ser útil para fins didácticos, mas deves ter consciência desde já que na maior parte dos casos se trata de uma simplificação grosseira por não dar conta das diferenças subtis entre os filósofos em questão. Poucos foram os filósofos que exemplificaram sem sombra de dúvida a forma extrema de racionalismo ou a forma extrema de empirismo. Isto quer dizer que na maior parte dos casos há apenas uma diferença relativamente ao tipo de explicação que se tem do a priori. Dito isto, vais agora estudar Descartes, filósofo francês do século XVII, do lado do racionalismo; e do lado do empirismo, David Hume, filósofo escocês do século XVIII.

Questões de revisão:

1. Segundo o empirismo, qual é a justificação última das crenças?
2. Segundo o racionalismo, qual é a justificação última das crenças?
3. Mostra, recorrendo a exemplos diferentes dos que são apresentados no texto,  o que é o a priori e o a posteriori, explicando esses exemplos.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

"O homem é a medida de todas as coisas"

Imagem de Gilbert Garcin

Protágoras de Abdera (480 - 411 a.C.)

A base da filosofia de Protágoras está na máxima:

 "O Homem é a medida  de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são." 


Com essa máxima Protágoras tinha por objetivo negar a existência de um critério absoluto para distinguir o ser do não ser (e a verdade da falsidade). O critério para a diferenciação torna-se o homem, cada homem. Ele explica melhor: "Tal como cada coisa se apresenta para mim, assim ela é para mim, tal como ela se apresenta para você, assim ela é para você." O vento que sopra é frio ou quente? A resposta vai depender de cada pessoa, para algumas vai estar frio e para outras vai estar quente, dessa forma ninguém vai estar errado e a verdade vai estar em cada sujeito e no que ele pensa sobre a sua experiência.

Se os homens são a medida de todas as coisas, por consequência, nenhuma medida pode ser a medida para todos os homens. As coisas assim vão ser definidas pelas pessoas que as definem, o que vale para determinada situação não vai valer para outras. As coisas vão ser conhecidas particularmente por cada indivíduo.

Protágoras ensinava também técnicas e métodos para  tornar um argumento fraco num argumento forte. Ele ensinava a aptidão de fazer sobressair um ponto de vista sobre um ponto de vista contrário. Os homens têm em si a faculdade de julgar com justiça, a função do sofista é fazer com que eles expressem essa capacidade.

Para ele as coisas são portanto relativas aos indivíduos e aos seus pareceres. Não existe uma verdade absoluta assim como não existem padrões morais absolutos, o que existem são coisas mais oportunas, úteis e convenientes. A pessoa sábia vai ser aquela que consegue distinguir o que é mais vantajoso e decente para cada situação. O sábio vai conseguir também convencer os outros a reconhecer essa qualidade superior e fazer com que eles a ponham em prática.

Protágoras afirmou também que em relação aos deuses ele não poderia afirmar se existem ou se não existem pois muitas coisas o impediam de fazer tais afirmações, ele considerava o assunto obscuro e a vida demasiado breve para se encontrar uma resposta para a questão. Mostrava-se agnóstico nas suas crenças pois o divino vai além da capacidade humana de compreensão dessa experiência sendo o homem limitado no seu saber. Para ele era possível criarmos argumentos tanto a favor como contra a existência dos deuses.

Ele dizia ainda que os sábios e os bons oradores deveriam guiar através de conselhos as outras pessoas.

Aforismos:
- Sobre qualquer questão existem dois argumentos contrários entre si.
- Sobre os deuses não posso saber se existem ou se não existem.
- Das coisas belas umas são belas por natureza e outras por lei, mas as coisas justas não são justas por causa da natureza, os homens estão continuamente a disputar pela justiça e a alteram também continuamente.
- Toda a vida do homem tem necessidade de ordem e de adaptação.