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sexta-feira, 14 de outubro de 2016
Sócrates
O legado de Sócrates
“Mas, meu caro Críton, por que haveremos
de prestar tanta atenção àquilo que ‹‹a
maior parte das pessoas›› pensa?”
SÓCRATES, no diálogo Críton, de Platão
(c. 390 a. C.)
Por que razão Sócrates foi condenado?
No Museu Britânico há uma estátua de Sócrates que pode ter sido esculpida em 330 a. C., apenas sessenta e nove anos após a sua morte. Sócrates é retratado como um homem baixo, musculado e careca, com barba e um nariz largo e achatado. Estes detalhes são compatíveis com aquilo que Platão, que era seu discípulo, nos diz sobre a sua aparência. Sócrates nada escreveu pelo que quase tudo o que sabemos a seu respeito provém de Platão, que era seu discípulo. Nos diálogos de Platão encontramos Sócrates nos lugares públicos de Atenas a discutir as grandes questões da Verdade e da Justiça com os jovens da cidade. Mas vemo-lo também ser acusado de
corromper esses jovens – e depois julgado e condenado à morte. A razão pela qual isso aconteceu é u pouco misteriosa. Os atenienses eram democratas, orgulhosos dos seus feitos e liberdade intelectuais. Por que haveriam de condenar um filosofo à morte
por causa daquilo que ele ensinava?
De acordo com Platão, Sócrates foi acusado de «corrromper a juventude›› e de ‹‹impiedade para com os deuses››. A primeira acusação é vaga e não nos são
dados detalhes. O próprio Sócrates sugeriu, talvez de forma enganadora, que estava a ser acusado apenas de ensinar os jovens a colocar questões. A segunda acusação também parece forçada. Sócrates não era anti-religioso, e no seu julgamento alegou ser fiel nas suas práticas religiosas. Porém, aparentemente tinha opiniões que não eram ortodoxas. O estudioso clássico Gregory Vlastos sugere que, embora ter ideias não convencionais sobre os deuses não fosse suficiente para conduzir a problemas com a justiça, «empurrá-las para as ruas de Atenas››, como Sócrates sem dúvida fizera,
poderia levá-lo facilmente a meter-se em dificuldades.
Ainda assim, a descrição de Platão faz-nos interrogar se esta será a história toda.
Por que razão, então, Sócrates foi condenado? Pode ser útil recordar que Sócrates, embora tenha sido venerado pelas gerações posteriores, não era uma figura popular na sua época. (Ele próprio sugere que as acusações resultaram do facto de as pessoas não gostarem de si.) O Oráculo de Delfos dissera-lhe que ele era o mais sábio dos homens, e Sócrates aceitou o elogio, mas com uma qualificação peculiar. Disse que era sábio porque tinha compreendido como era ignorante.
Esta afirmação parece agradavelmente modesta. O problema foi Sócrates ter considerado que a sua «missão divina›› era mostrar aos outros que também eles
eram ignorantes. Numa típica conversa socrática, Sócrates mostrava aos seus interlocutores, para manifesto desagrado destes, que todas as suas opiniões eram
erradas. Isto pode ter contribuído para que as pessoas tivessem vontade de o ver em apuros, mesmo que não justifique a sua condenação à morte.
A política também pode ter contribuído. Os atenienses tinham orgulho das suas instituições democráticas, mas Sócrates não partilhava esse sentimento. Segundo
Platão, era o crítico mais feroz da democracia. Objetava que a democracia colocava os homens em posição de autoridade não por causa da sua sabedoria ou do seu talento para governar, mas devido à sua capacidade de influenciar as massas com retórica vazia.
Numa democracia, aquilo que interessava não era a verdade, mas as relações públicas. Já existiam especialistas nessa área em Atenas. Os professores mais influentes da altura eram os sofistas, que ensinavam a arte da persuasão e eram abertamente cépticos quanto à «verdade». Se tivessem vivido 2400 anos depois, teriam sido spin-doctors, consultores de media ou especialistas de opinião pública.
Se a democracia ateniense fosse estável, a hostilidade de Sócrates poderia ter sido ignorada, do mesmo modo que hoje as democracias ocidentais toleram a crítica. Mas essa democracia não era estável; tinha sofrido uma série de ataques traumáticos. O último deles ocorrerá apenas cinco anos antes do julgamento de Sócrates, quando um grupo conhecido por «Trinta Tiranos» - liderado por Crítias, que fora um dos discípulos de Sócrates - organizou um golpe sangrento.
No seu julgamento, que ocorreu depois de a democracia ter sido restaurada, Sócrates censurou vivamente os Trinta Tiranos, chamando-lhes «perversos». Ainda assim, é fácil imaginar que os líderes de Atenas pudessem sentir-se mais confortáveis com Sócrates fora do horizonte.
Tentar explicar um acontecimento que ocorreu há 2400 anos é uma tarefa frustrante, sujeita a uma incerteza ainda maior pelo facto de as diversas pessoas envolvidas terem os seus próprios motivos. Quem sabe por que razão os mais de quinhentos jurados votaram como votaram? Platão não ajuda: apresenta-nos o discurso de Sócrates, mas não o dos acusadores. Seja como
for, Sócrates foi julgado, considerado culpado e condenado à morte. A sentença parece excessiva, mas em certa medida Sócrates foi responsável por ela. Depois de ter sido considerado culpado, permitiram-lhe, em conformidade com as regras do tribunal, que propusesse o seu próprio castigo. Em vez de sugerir algo razoável, propôs que lhe dessem uma pensão vitalícia pelos serviços prestados ao Estado - os «serviços» eram as atividades pelas quais acabara de ser condenado. Só depois de os seus amigos terem intervindo é que Sócrates se dispôs a pagar uma pequena multa.
Não é surpreendente que os jurados tenham aceite a proposta alternativa dos seus acusadores.
No entanto, a sentença não foi assim tão dura, já que ninguém esperava que Sócrates morresse efectivamente. O exílio era uma alternativa informal. Enquanto aguardava a execução, deram-lhe meios para fugir.
Várias cidades estavam dispostas a recebê-lo e chegaram emissários com dinheiro. Platão faz-nos perceber que ninguém teria impedido Sócrates de fugir. Os seus inimigos queriam forçá-lo a partir e os seus amigos estavam prontos para se despedir de si.
Mas Sócrates não partiu. Em vez disso, começou â examinar as razões para fugir e para não o fazer. Defendera sempre que a nossa conduta se deve guiar
pela razão. Em qualquer situação, afirmou, devemos fazer aquilo que tem as melhores razões do seu lado.
Aqui estava, então, o teste decisivo ao seu compromisso com essa ideia. Enquanto a carruagem aguardava, disse a Críton que partiria se os melhores argumentos fossem para partir, mas que ficaria se os seus melhores argumentos fossem para ficar. Depois, tendo examinado a questão de todas as perspetivas, Sócrates concluiu que não poderia justificar a desobediência à ordem do tribunal. Por isso ficou, bebeu a cicuta – o veneno prescrito pelo tribunal - e morreu. Talvez pressentisse que o seu ato torna-lo-ia uma figura memorável para as gerações futuras. Avisou os atenienses de que não era a sua reputação, mas a deles, que ficaria manchada pela sua morte.[...]
Sócrates não foi «o primeiro filósofo» - tradicionalmente, esse título é reservado para Tales, que viveu um século antes. (Porquê Tales? Porque Aristóteles
o listou em primeiro lugar.) Ainda assim, os historiadores costumam designar Tales e os outros filósofos anteriores a Sócrates por «pré-socráticos», sugerindo assim que eles pertencem a uma espécie de pré-história filosófica e que Sócrates assinala o verdadeiro começo.
Aquilo que colocou Sócrates em destaque foi o seu método, e não tanto as suas doutrinas. Sócrates baseava-se na argumentação, insistindo que só se descobre
a verdade pelo uso da razão. O seu legado reside sobretudo na sua convicção inabalável de que mesmo as questões mais abstratas admitem uma analise racional. O que é a justiça? Será que a alma e imortal? Poderá alguma vez ser certo maltratar alguém? Será possível saber o que é certo fazer e, ainda assim, proceder de outro modo? Sócrates pensava que estes problemas não eram meras questões de opinião. Existem respostas verdadeiras para eles, que podemos descobrir se pensarmos de forma suficientemente profunda. Era também isto que incomodava os acusadores de Sócrates, os quais, segundo o relato de Platão, desconfiavam da razão e preferiam basear-se na opinião popular, no costume e na autoridade religiosa.
Sócrates acreditava que alguns argumentos eram tão fortes que o compeliam a permanecer em Atenas e a aceitar a morte.
Poderá isto ser verdade? Que argumentos poderiam ser assim tão poderosos? A questão essencial, disse a Críton, era a de saber se tinha a obrigação de obedecer às leis de Atenas. As leis tinham-lhe feito uma exigência. Teria de lhes obedecer? A sua discussão foi a primeira investigação filosófica sobre a natureza da obrigação política.
James Rachels, Problemas da Filosofia, Trad. de Pedro Galvão, Gradiva, Lisboa, 2010, pp.13-18.
Ver também:
O Método Socrático
Ver também:
O Método Socrático
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
O Método Socrático
A DIALÉTICA
Em geral, o método dialógico de Sócrates é constituído por dois momentos fundamentais:
- a ironia que denuncia as verdades feitas e o falso saber daqueles que pretendiam reduzir o verdadeiro ao verosímil;
- a maiêutica, técnica através da qual se consegue observar como é que uma ciência desconhecida se transforma progressivamente numa ciência conhecida. /.../ Segundo Platão, Sócrates fora buscar a sua arte da maiêutica à sua mãe que era parteira. Na Grécia clássica só as mulheres que já não podiam dar à luz estavam autorizadas a ajudar ao parto das outras. Sócrates considerava a sua arte como a arte de parturejar; só que agora são homens que dão à luz e é do parto das suas almas que se trata. Sócrates revelava aos outros aquilo que eles próprios sabiam sem de tal terem consciência. Ele pretendia que o seu questionamento sistemático levasse os outros a um ponto crucial de consciência crítica, procurando a verdade no seu interior, dando assim lugar ao "parto intelectual". A maiêutica é, assim, a fase positiva, construtiva, do método socrático que permite o acordo através das certezas universais obtidas pela definição após a discussão. /.../
Através de perguntas/respostas pretendia dar e devolver argumentos entre interlocutores através de um discurso curto e preciso cujo objectivo era a procura da verdade. A este método cuja arte subtil está na capacidade de argumentar chama-se "dialéctica".
Numa primeira fase Sócrates procura de forma polémica destruir a suposta coerência do raciocínio dos seus interlocutores. Sócrates faz com que os outros falem sobre aquilo que afirmam para os obrigar a reflectir sobre aquilo que fazem. Ele opõe-se à verdade estereotipada, ao dogmatismo e pretende destruir os preconceitos irreflectidos. Quer que os seus interlocutores se consciencializem da suposta "verdade" das suas afirmações levando-os a um exame de consciência que lhes dará conta da sua ignorância. É como se os conhecimentos das pessoas fossem postos em causa através da interrogação e não de uma forma expositiva. Assim os adversários de Sócrates são levados à dúvida relativamente aos seus próprios conhecimentos ficando embaraçados com as perguntas insidiosas e precisas, cujas respostas demonstram quão fracos são os seus argumentos e opiniões.
Mas Sócrates usava então uma das suas outras técnicas: dar a mão ao interlocutor apesar de achar que este estava vencido no argumento usado. O que Sócrates pretendia era que não houvessem vencedores nem vencidos mas caminhar conjuntamente para estabelecer a verdade.
/.../ Sócrates não responde às próprias questões que lança. Não dá respostas positivas. Sócrates não pretende informar mas formar. Aquilo que viesse do mestre em sentido único teria apenas um efeito exterior sobre a consciência do aluno; a formação só pode efectuar-se segundo o ritmo e as exigências próprias do desenvolvimento interior individual. Sócrates repete que nada sabe, nada tem para ensinar, nem ninguém a quem formar. E não tendo nada para oferecer a não ser a sua companhia basta que cada um pense por si próprio para se aperceber de que sabe mais do que ele. /.../
O modo como Sócrates se dirige ao seu interlocutor e desenvolve o seu método apresenta quatro características:
É um método dual, na medida em que se dirige sempre a um interlocutor determinado. Sócrates nunca se dirige a um grupo de homens, nem aos homens em geral. Há sempre um personagem concreto a quem dirige as suas perguntas, com quem dialoga segundo as particularidades desse indivíduo. /.../
É dialéctico. Sócrates jamais admitia como verdadeiro o que seu interlocutor não admitisse como verdadeiro. Assim o diálogo só se desenrola e toma caminho mediante aquilo a que o interlocutor dá acordo. Nunca Sócrates impõe as suas ideias a ninguém. /.../
É refutatório. Nos seus diálogos, Sócrates ocupa o lugar de interrogador. Aliás, nem podia ser de outro modo uma vez que ele parte para a discussão com uma atitude de dúvida constante, afirmando nada saber - "só sei que nada sei". Cabe ao seu interlocutor responder. Esta característica do modo pelo qual Sócrates se dirige ao seu interlocutor, está fortemente ligada ao primeiro momento em que há a destruição das ideias feitas, da tese que o interlocutor sustenta inicialmente como verdadeira. É através desta característica que Sócrates faz com que o seu interlocutor entre em contradição. /.../
A última característica é a parresia. Esta característica consiste em o interlocutor dizer o que pensa verdadeiramente sem se preocupar nem com a opinião ou a reação dos outros /.../, aderindo totalmente ao que é verdadeiro (trata-se da coragem de aderir à verdade sejam quais forem as consequências). O interlocutor compromete-se de um modo total com a verdade, sendo o caminho para a prática do bem e da virtude.
(Texto Adaptado)
Olga Pombo
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
A importância dos Sofistas
Contas feitas, depois de dois milénios e meio, damo-nos conta que o nosso mundo actual está muito próximo da visão do homem e da vida dos Sofistas. Hoje nas sociedades mais avançadas, marcadas pelo multiculturalismo e pelo acelerado processo de mundialização, acentuado pelo desenvolvimento da Internet e dos outros meios de comunicação, vive-se um relativismo muito próximo daquele que esteve na base da prática dos grandes mestres da sofística antiga.
Por outro lado, há uma valorização crescente da persuasão, por via da publicidade e do marketing político. As democracias ocidentais assumem-se como regimes políticos abertos, capazes de incorporarem reformas profundas das suas instituições, sem o recurso à violência, estabelecidas com base no consenso obtido através da argumentação persuasiva.
A palavra é de novo rainha, não a palavra entendida como um oráculo divino, mas a palavra instrumento de comunicação e veículo de ideias partilháveis, mobilizadoras em termos políticos. A opinião pública é um dos esteios da democracia - trata-se da Doxa reabilitada como importante meio de agregação social que garante, ao mesmo tempo, a coesão social e, também, se torna um dos alvos do discurso político e da acção política. O que coloca a liberdade de expressão como um dos valores mais importantes das democracias modernas.
No entanto, não vivemos num mundo perfeito: existem inúmeros dispositivos de manipulação da opinião pública e da adesão dos cidadãos a crenças e valores dependentes de interesses que lhes são alheios, ou que estão ligados a estratégias de poder que, em si, não têm nada de democrático.
Os cidadãos só poderão estar a salvo destes mecanismos de manipulação se tiverem ferramentas conceptuais que lhes permitam desmontá-los e entender as suas dinâmicas internas. Para isso há que apostar na educação, as pessoas devem desenvolver a sua razão, duma forma livre, criativa e crítica, para poderem ser agentes duma soberania democrática consciente e responsável.
Por estas razões só nas últimas décadas se começou a olhar os sofistas sem os preconceitos nascidos da ofensiva que contra eles foi lançada por Platão. Platão responsabilizou-os pela condenação à morte de Sócrates, o seu mestre e procurou defender a Filosofia como alternativa à sofística, encarada como uma prática sem ética e sem qualquer preocupação com a verdade.
Sócrates, contudo, não deixou de esgrimir as armas retóricas que os sofistas levaram a uma perfeição nunca ante vista, sem os sofistas Sócrates não teria existido.
Sócrates trouxe a filosofia para o centro da cidade (Pólis), tendo destruído os muros das escolas, algumas delas completamente fechadas à sociedade circundante - como é o caso da escola pitagórica - assumiu-se, enquanto filósofo, como um 'moscardo' que tinha como missão libertar os seus concidadãos da sua ignorância. Se tomarmos a alegoria da caverna como um roteiro do projecto socrático, podemos ver que Sócrates tinha uma intenção subversiva aos olhos dos que tomavam a sociedade como o esteio da vida humana.
Os sofistas não viviam nas nuvens - essa era a imagem recorrente que os gregos comuns colavam ao 'ofício' de 'filósofo' - eles acreditavam na solidez das instituições sociais e na densidade antropológica da cultura (Paideia) que era o verdadeiro cimento da Pólis.
O que Sócrates procurou foi secundarizar a cultura da cidade e torná-la dependente dum conjunto de valores universais, que seriam a base inabalável de um saber fundamental, propiciador de uma verdade não sujeita à volatilidade das paixões humanas. Na verdade estamos a falar do Sócrates de Platão, um Sócrates algo divinizado, transformado num modelo de filósofo que acabou por se tornar dominante na civilização ocidental. Mas podemos compreender que aos olhos dos seus contemporâneos Sócrates não tenha passado dum iconoclasta que pretendia destruir os alicerces da Pólis, a sua Cultura, sem ter nada na manga que os substituísse. Daí a sensação de perigo que a sua acção terá suscitado nos atenienses que o condenaram à morte. Talvez Sócrates, depois de morto, tenha sido elevado à condição de filósofo-modelo por ter vivido como o mais exímio dos sofistas.
Mas mesmo que esses valores existissem, a proposta socrática acabaria por tomar a forma de uma profunda revolução social, dado que os estatutos e os papéis sociais em uso corrente na Atenas daquele período dependiam do sistema de valores que davam sentido à vida na Pólis.
Os sofistas, por seu lado, reforçavam essa estrutura social, ao garantirem que o discurso pudesse ser submetido a um controlo social: o jogo da persuasão não envolve os valores fundamentais, uma vez que estes estão reduzidos ao mínimo que garante a coesão social. Mas isto não impedia a sociedade ateniense de ser sacudida ciclicamente por violentas convulsões políticas.
E é isso que leva Platão a defender um ideal de sociedade que não tem nada de democrático - Karl Popper defende na sua obra A sociedade aberta e os seus inimigos que Platão é um dos principais teóricos do totalitarismo que desembocou, no século XX nos regimes nazi e soviético.
Os sofistas são defensores de uma concepção de educação que hoje ainda nos é muito cara: a ideia de que há uma cultura geral agregadora dos homens numa comunidade que ultrapassa em muito os muros da Cidade e que permite não só uma convivência social entre iguais, mas também, uma abertura à diferença, encarada como constitutiva do ser humano, encarado com o uma individualidade que se compreende como portadora de um interesse auto-centrado que, sem colidir com o interesse geral ou grupal, se constitui como um foco dinamizador da acção social e da vida comunitária. Dito por outras palavras: os sofistas são talvez os primeiros defensores da radicalidade ontológica do indivíduo.
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Os Sofistas
Para além de formar o homem, a educação deve, sobretudo, formar o cidadão. A finalidade cívica da educação passa, claramente, a primeiro plano. É originariamente grega a ideia, tão actual, de que a educação é a preparação para a cidadania.
Habitante da Pólis, o homem só é o que é porque vive na cidade e sem ela não é nada. E o que diz respeito à cidade, é comum, isto é, afecta a todos enquanto comunidade e afecta cada um enquanto cidadão ou membro dessa comunidade. Neste sentido, é evidente que, antes de mais, o homem é um político (zoon politikon), como bem o captou Aristóteles, distinguindo-o, assim, do animal pela sua qualidade de cidadão; e o Biós politikos, que é a forma própria e sublime da vida do homem como habitante da pólis.
A consciência da cidadania desde cedo faz sentir a necessidade de uma nova educação, uma vez que, a antiga educação, com o seu receituário básico, simples e elementar de ginástica e música, não servia para a formação do cidadão, nem correspondia às novas necessidades individuais nem às novas exigências sociais e políticas.
Politicamente, a forma democrática de organização do Estado foi a forma de governo escolhida pela Cidade-Estado de Atenas. Ora, no estado democrático ateniense, a exigência de todos os indivíduos enquanto homens livres, ou seja, cidadãos, participarem activamente no Estado e na vida pública são deveres cívicos, e assim a participação nas assembleias torna-se indispensável. Neste contexto, compreende-se que tenha surgido uma nova estirpe de "educadores", os sofistas - com o estrondoso sucesso que se lhes conhece - que se apresentam como professores no sentido actual do termo, (os primeiros professores da história) e que oferecem, a troco de dinheiro (só por curiosidade, Protágoras pedia dez mil dracmas pelos seus serviços!... Note-se que uma dracma representava o salário diário de um operário qualificado...) o ensino da "virtude", o ensino da aretê política ou, como também lhe chamam os sofistas, a technê política (technê, em grego, significa técnica, ofício, habilidade, arte, ciência aplicada).
Os sofistas convertem, pois, a educação numa técnica ou numa arte, na qual eles são mestres e, por isso, capazes de a transmitirem e de a ensinarem. Assim os jovens, seus alunos, que vierem a dominar a technê política alcançarão, a aretê política.
Mas esta technê política, está em conexão com as finalidades práticas que se propõe - formação de homens de Estado e de dirigentes da vida pública - e vai conduzir à valorização do homem (cidadão individualmente considerado) e vai orientar-se num sentido amoral ou mesmo imoral. Os seus contemporâneos vão acusar os sofistas de imoralidade.
Deste modo, um homem situado no coração da pólis, quer vencer na vida política, quer fazer valer os seus interesses ou as suas convicções, quer ganhar um lugar de destaque, quer ser eleito para cargos públicos, quer ser governante e aceder ao poder. Para isso, para ter êxito político, precisa de saber falar bem, de encantar o auditório, de construir discursos persuasivos, de formular os argumentos que justifiquem e validem as suas posições, fazendo-as prevalecer como as melhores. Precisa, pois, da arte sofística da oratória, da retórica e da dialéctica. Mas porque o que é necessário é ter sucesso na vida pública e política, vencer a todo o custo e a qualquer preço, e isso só é possível convencendo os outros das minhas razões, retórica e dialéctica tornam-se armas potentíssimas que é preciso saber esgrimir com perícia; técnicas cujo domínio permite utilizá-las segundo as nossas conveniências, mas técnicas que se podem aplicar a qualquer conteúdo. Ora, os artífices desta técnica são os sofistas, ("Sofistas e oradores são a mesma coisa" PLATÃO, Górgias, 520b), pelo que o Górgias, condenando a retórica que conduz à imoralidade, condena simultaneamente toda a sofística.
Não admira que os sofistas venham a ser acusados de imoralidade, de administrar uma educação perversa e pervertida, de corromper a juventude e de sublevar os valores tradicionais, minando as bases da ordem social e da política estabelecida.
Para saber um pouco mais...
O palco dos sofistas? As casas particulares, as aulas improvisadas... Os sofistas viajavam de cidade em cidade à procura de alunos, levando consigo aqueles que já conseguiam arrebanhar. Poderão eles ser considerados pensadores? Talvez apenas pedagogos, educadores dos homens. Por um lado, educadores do espírito pela transmissão de um saber enciclopédico; por outro, a formação do espírito nos seus diversos campos. Um grande antagonismo espiritual... "Ao lado da formação meramente formal do entendimento, existiu igualmente nos sofistas uma educação formal no mais alto sentido da palavra, a qual não consistia já numa estruturação do entendimento e da linguagem, mas partia da totalidade das forças espirituais. É Protágoras quem a representa." Para este sofista, são a poesia e a música as principais forças modeladoras da alma, assim como a gramática, a dialéctica e a retórica. Sempre em busca da conquista de plateias, os sofistas procuravam desenvolver o dom de pronunciar discursos convincentes e oportunos, usando palavras decisivas e bem fundamentadas.
Os sofistas vinculam-se à tradição educativa dos grandes poetas, desde Homero a Hesíodo, de Simónides a Píndaro. Estes últimos tornaram a poesia no palco de uma discussão intensa sobre educação, ao levarem o problema da possibilidade de ensinar a arete para os seus poemas. Os sofistas fizeram o resto, fornecendo livros dos grandes poetas aos seus discípulos e transportando para o seio da sua prosa artística os mais diversos géneros de poesia moral e interpretando, metodicamente, os grandes poetas, a cujos ensinamentos se vincularam afincadamente. No entanto, esta interpretação era fria, imediata e intemporal. Os sofistas não embebiam o poema em si, mas sim todo o conhecimento que este lhes pudesse transmitir. Para eles, Homero é uma útil enciclopédia, onde figuram regras fulcrais para a vida e todos os conhecimentos humanos, como a construção de carros, as estratégias... "A educação heróica da epopeia e da tragédia é interpretada de um ponto de vista francamente utilitário." Para os sofistas, o uso dos poemas justifica-se pelo facto de estes permitirem alcançar uma pronúncia e dicção correcta das palavras.
Olga Pombo, http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras/links/sofistas.htm
_________________
Sobre a Sofística
“O choque provocado pelos sofistas – sucesso e escândalo – na sociedade ateniense foi profundo. Ele reflecte-se na literatura da época, nomeadamente no teatro de Eurípides e de Aristófanes, que desde os anos 430 para o primeiro e 420 para o segundo põem em cena as múltiplas formas que a arte da palavra assume, maravilhando-se com o poder do discurso e das inovações recentes introduzidas neste domínio, mas denunciando os discursos demasiado hábeis e os professores de subtileza argumentativa, empregando as palavras sophos, sophisma e sophistês. Textos escritos mais tardiamente, mas referindo-se ao mesmo período do último terço do século V, contêm um testemunho semelhante: em particular certos diálogos de Platão, nos quais Sócrates conversa com os principais sofistas sobre retórica, ou tal passagem de Tucídides que faz dizer a Cléon, em 427, que os Atenienses, apaixonados pelas justas de palavras e por argumentos novos, importam os procedimentos dos sofistas para a eloquência deliberativa e transformam esta em política-espectáculo: «gentes dominadas pelo prazer de escutar», são, quando se sentam na assembleia, «semelhantes mais a um público lá instalado para sofistas do que a cidadãos que deliberam sobre a sua cidade» (Tucídides, III, 38, 7). A atracção pedagógica que exerciam os professores de eloquência traduz-se no topos da visita ao sofista, que consiste em mostrar um futuro aluno ansioso por ser aceite pelo mestre e pronto a se lhe entregar com toda a confiança, contanto que ele o ensine a falar (Aristófanes, Nuvens, 427 e ss.; Platão, Protágoras, 312).
A convergência destes textos, tão diferentes nos seus objectivos, atesta a amplitude das inovações introduzidas pelos sofistas. Desde logo, a sofística e a retórica serão ligadas para sempre no pensamento antigo, mesmo se a sofística não se reduz à retórica, mesmo se numerosos oradores se recusam a ser apelidados de sofistas. Platão insiste nisso não sem malícia: a despeito de todas as diferenças que podem ser estabelecidas entre as duas categorias, «sofistas e oradores confundem-se, misturam-se, sobre o mesmo domínio, em torno dos mesmos assuntos» (Górgias, 465 c, 520 a). E de facto, com os sofistas, a palavra constitui-se em disciplina autónoma e teorizada. O objecto «falar» foi isolado e torna-se em si mesmo objecto de reflexão e de arte. Esta arte engloba as teorias sobre a persuasão e sobre os fundamentos filosóficos do discurso, investigações técnicas (no domínio da argumentação e do estilo), um ensino. Os discursos começaram a ser publicados e não apenas pronunciados. O cadinho destas inovações foi Atenas, onde todos os sofistas permaneciam mais ou menos longamente.”
Laurent Pernot, La rhétorique dans l'antiquité, pp. 34-36.
(Adaptado)
O ensino
“A prática oratória apoiava-se sobre um ensino muito activo. Numerosos eram os mestres de retórica existentes em Atenas, desde os mais reputados aos mais modestos. Numerosas eram as escolas, caracterizadas por níveis diferentes e finalidades diferentes. Podia aprender-se a falar, como disse Platão, seja em vista da «arte» (tekhnê), seja em vista da «educação» (paideia) (Protágoras, 312), quer dizer, seja a fim de fazer da retórica uma profissão, seja de maneira desinteressada, a fim de se instruir e de se cultivar. Os métodos eram certamente variados e em grande parte orais. Pode facilmente imaginar-se que compreendiam lições teóricas, estudos de casos, a aprendizagem de discursos modelos propostos pelo mestre, exercícios práticos de composição, sobre assuntos reais ou fictícios, e ainda justas entre estudantes, sem esquecer o treino do gesto e da voz.
A escola que conhecemos melhor é a de Isócrates [...]. O ciclo de estudos durava até três ou quatro anos. Os estudantes, vindos não apenas da Ática, mas de todo o mundo grego, pagavam honorários elevados e ofereciam presentes, mediante os quais lhes eram propostos dois modos de ensino. Primeiro, sobre o que o mestre chamava as ideiai, palavra muito ampla que designa todas as «formas» do discurso, desde o conteúdo (acusação, elogio, etc.) até às figuras de estilo, passando pelas ideias, os temas e as formas de raciocínio, ou seja, todo o espectro da arte da palavra. Depois a audição de discursos compostos pelo mestre, que eram discutidos e explicados em comum, numa atmosfera de seminário [...]. Para além dos preceitos técnicos, Isócrates considerava fornecer uma formação completa, ao mesmo tempo intelectual e moral, em nome da convicção de que não é possível falar bem sem pensar bem e ser um homem de bem. Realista, até mais não, o mestre sublinhava que a educação não pode tudo e que ela não dá frutos, a menos que encontre um terreno favorável: as lições e os exercícios devem apoiar-se sobre os dons naturais. Os numerosos alunos saídos da escola de Isócrates ilustram o carácter generalista duma educação que formou oradores, escritores (como os historiadores Teopompo e Éforo), cidadãos activos nos negócios públicos e homens políticos importantes, entre os quais o estratego Timóteo, filho de Conon.
O ensino ateniense recorria a textos escritos: discursos-modelos, recolhas de exórdios e de perorações, e sobretudo a esses manuais ou tratados a que chamavam Tekhnai («Artes», subentendido «de retórica»). Os Tekhnai, na maior parte, incidiam sobre o género judiciário; utilitários, forneciam os meios de compor sem esforço um defensor.”
Laurent Pernot, La rhétorique dans l'antiquité, pp. 60-61.
(Adaptado)
A Retórica
“Esta, dizíamos, é uma arte. Este termo, tradução do grego technè, é ambíguo, e é-o mesmo duplamente. Primeiro, porque designa igualmente bem um saber-fazer espontâneo como uma competência adquirida pelo ensino. Em seguida, porque designa ora uma simples técnica, ora pelo contrário o que na criação ultrapassa a técnica e pertence ao «génio» do criador. Em qual ou em quais destes sentidos se pensa quando se diz que a retórica é uma arte? Em todos.
Em primeiro lugar, existe uma retórica espontânea, uma aptidão para persuadir pela palavra que não é talvez inata — não entremos aqui neste debate —, mas que também não é devida a uma formação específica; e, depois, uma retórica que se ensina, sob o nome, por exemplo, de «técnicas de expressão e de comunicação», e que serve para formar vendedores ou homens políticos, a ensinar-lhes o que outros vendedores, outros homens políticos, parecem saber naturalmente. Quais são os mais eficazes, quais sabem «melhor como preceder»? Sem dúvida os segundos. Mas nos segundos, tal como nos primeiros, encontramos os mesmos procedimentos, intelectuais e afectivos, estes procedimentos que fazem da retórica uma técnica.
Mas trata-se de uma simples técnica? Não, trata-se de bem mais. O verdadeiro orador é um artista no sentido em que descobre argumentos tanto mais eficazes quanto não os esperávamos, figuras de que ninguém teria tido a ideia e que se revelam adequadas; um artista cujos desempenhos não são programáveis e não se impõem senão mais tarde. Les Provinciales de Pascal (sempre ele, mas em retórica é incontornável!) dão um belo exemplo; onde os seus amigos jansenistas esperavam uma argumentação técnica, que não teria deixado de ser enfadonha, Pascal retomou as mesmas ideias sob a forma de um panfleto irónico, eficaz porque claro e divertido, e que ainda nos diz respeito. A arte de persuadir criou bastantes obras-primas.”
Olivier Reboul, Introduction à la rhétorique, p. 6.
(Adaptado)
http://rotasfilosoficas.blogs.sapo.pt/32351.html
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http://sofistas.no.sapo.pt/
Por outro lado, há uma valorização crescente da persuasão, por via da publicidade e do marketing político. As democracias ocidentais assumem-se como regimes políticos abertos, capazes de incorporarem reformas profundas das suas instituições, sem o recurso à violência, estabelecidas com base no consenso obtido através da argumentação persuasiva.
A palavra é de novo rainha, não a palavra entendida como um oráculo divino, mas a palavra instrumento de comunicação e veículo de ideias partilháveis, mobilizadoras em termos políticos. A opinião pública é um dos esteios da democracia - trata-se da Doxa reabilitada como importante meio de agregação social que garante, ao mesmo tempo, a coesão social e, também, se torna um dos alvos do discurso político e da acção política. O que coloca a liberdade de expressão como um dos valores mais importantes das democracias modernas.
No entanto, não vivemos num mundo perfeito: existem inúmeros dispositivos de manipulação da opinião pública e da adesão dos cidadãos a crenças e valores dependentes de interesses que lhes são alheios, ou que estão ligados a estratégias de poder que, em si, não têm nada de democrático.
Os cidadãos só poderão estar a salvo destes mecanismos de manipulação se tiverem ferramentas conceptuais que lhes permitam desmontá-los e entender as suas dinâmicas internas. Para isso há que apostar na educação, as pessoas devem desenvolver a sua razão, duma forma livre, criativa e crítica, para poderem ser agentes duma soberania democrática consciente e responsável.
Por estas razões só nas últimas décadas se começou a olhar os sofistas sem os preconceitos nascidos da ofensiva que contra eles foi lançada por Platão. Platão responsabilizou-os pela condenação à morte de Sócrates, o seu mestre e procurou defender a Filosofia como alternativa à sofística, encarada como uma prática sem ética e sem qualquer preocupação com a verdade.
Sócrates, contudo, não deixou de esgrimir as armas retóricas que os sofistas levaram a uma perfeição nunca ante vista, sem os sofistas Sócrates não teria existido.
Sócrates trouxe a filosofia para o centro da cidade (Pólis), tendo destruído os muros das escolas, algumas delas completamente fechadas à sociedade circundante - como é o caso da escola pitagórica - assumiu-se, enquanto filósofo, como um 'moscardo' que tinha como missão libertar os seus concidadãos da sua ignorância. Se tomarmos a alegoria da caverna como um roteiro do projecto socrático, podemos ver que Sócrates tinha uma intenção subversiva aos olhos dos que tomavam a sociedade como o esteio da vida humana.
Os sofistas não viviam nas nuvens - essa era a imagem recorrente que os gregos comuns colavam ao 'ofício' de 'filósofo' - eles acreditavam na solidez das instituições sociais e na densidade antropológica da cultura (Paideia) que era o verdadeiro cimento da Pólis.
O que Sócrates procurou foi secundarizar a cultura da cidade e torná-la dependente dum conjunto de valores universais, que seriam a base inabalável de um saber fundamental, propiciador de uma verdade não sujeita à volatilidade das paixões humanas. Na verdade estamos a falar do Sócrates de Platão, um Sócrates algo divinizado, transformado num modelo de filósofo que acabou por se tornar dominante na civilização ocidental. Mas podemos compreender que aos olhos dos seus contemporâneos Sócrates não tenha passado dum iconoclasta que pretendia destruir os alicerces da Pólis, a sua Cultura, sem ter nada na manga que os substituísse. Daí a sensação de perigo que a sua acção terá suscitado nos atenienses que o condenaram à morte. Talvez Sócrates, depois de morto, tenha sido elevado à condição de filósofo-modelo por ter vivido como o mais exímio dos sofistas.
Mas mesmo que esses valores existissem, a proposta socrática acabaria por tomar a forma de uma profunda revolução social, dado que os estatutos e os papéis sociais em uso corrente na Atenas daquele período dependiam do sistema de valores que davam sentido à vida na Pólis.
Os sofistas, por seu lado, reforçavam essa estrutura social, ao garantirem que o discurso pudesse ser submetido a um controlo social: o jogo da persuasão não envolve os valores fundamentais, uma vez que estes estão reduzidos ao mínimo que garante a coesão social. Mas isto não impedia a sociedade ateniense de ser sacudida ciclicamente por violentas convulsões políticas.
E é isso que leva Platão a defender um ideal de sociedade que não tem nada de democrático - Karl Popper defende na sua obra A sociedade aberta e os seus inimigos que Platão é um dos principais teóricos do totalitarismo que desembocou, no século XX nos regimes nazi e soviético.
Os sofistas são defensores de uma concepção de educação que hoje ainda nos é muito cara: a ideia de que há uma cultura geral agregadora dos homens numa comunidade que ultrapassa em muito os muros da Cidade e que permite não só uma convivência social entre iguais, mas também, uma abertura à diferença, encarada como constitutiva do ser humano, encarado com o uma individualidade que se compreende como portadora de um interesse auto-centrado que, sem colidir com o interesse geral ou grupal, se constitui como um foco dinamizador da acção social e da vida comunitária. Dito por outras palavras: os sofistas são talvez os primeiros defensores da radicalidade ontológica do indivíduo.
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Os Sofistas
Para além de formar o homem, a educação deve, sobretudo, formar o cidadão. A finalidade cívica da educação passa, claramente, a primeiro plano. É originariamente grega a ideia, tão actual, de que a educação é a preparação para a cidadania.
Habitante da Pólis, o homem só é o que é porque vive na cidade e sem ela não é nada. E o que diz respeito à cidade, é comum, isto é, afecta a todos enquanto comunidade e afecta cada um enquanto cidadão ou membro dessa comunidade. Neste sentido, é evidente que, antes de mais, o homem é um político (zoon politikon), como bem o captou Aristóteles, distinguindo-o, assim, do animal pela sua qualidade de cidadão; e o Biós politikos, que é a forma própria e sublime da vida do homem como habitante da pólis.
A consciência da cidadania desde cedo faz sentir a necessidade de uma nova educação, uma vez que, a antiga educação, com o seu receituário básico, simples e elementar de ginástica e música, não servia para a formação do cidadão, nem correspondia às novas necessidades individuais nem às novas exigências sociais e políticas.
Politicamente, a forma democrática de organização do Estado foi a forma de governo escolhida pela Cidade-Estado de Atenas. Ora, no estado democrático ateniense, a exigência de todos os indivíduos enquanto homens livres, ou seja, cidadãos, participarem activamente no Estado e na vida pública são deveres cívicos, e assim a participação nas assembleias torna-se indispensável. Neste contexto, compreende-se que tenha surgido uma nova estirpe de "educadores", os sofistas - com o estrondoso sucesso que se lhes conhece - que se apresentam como professores no sentido actual do termo, (os primeiros professores da história) e que oferecem, a troco de dinheiro (só por curiosidade, Protágoras pedia dez mil dracmas pelos seus serviços!... Note-se que uma dracma representava o salário diário de um operário qualificado...) o ensino da "virtude", o ensino da aretê política ou, como também lhe chamam os sofistas, a technê política (technê, em grego, significa técnica, ofício, habilidade, arte, ciência aplicada).
Os sofistas convertem, pois, a educação numa técnica ou numa arte, na qual eles são mestres e, por isso, capazes de a transmitirem e de a ensinarem. Assim os jovens, seus alunos, que vierem a dominar a technê política alcançarão, a aretê política.
Mas esta technê política, está em conexão com as finalidades práticas que se propõe - formação de homens de Estado e de dirigentes da vida pública - e vai conduzir à valorização do homem (cidadão individualmente considerado) e vai orientar-se num sentido amoral ou mesmo imoral. Os seus contemporâneos vão acusar os sofistas de imoralidade.
Deste modo, um homem situado no coração da pólis, quer vencer na vida política, quer fazer valer os seus interesses ou as suas convicções, quer ganhar um lugar de destaque, quer ser eleito para cargos públicos, quer ser governante e aceder ao poder. Para isso, para ter êxito político, precisa de saber falar bem, de encantar o auditório, de construir discursos persuasivos, de formular os argumentos que justifiquem e validem as suas posições, fazendo-as prevalecer como as melhores. Precisa, pois, da arte sofística da oratória, da retórica e da dialéctica. Mas porque o que é necessário é ter sucesso na vida pública e política, vencer a todo o custo e a qualquer preço, e isso só é possível convencendo os outros das minhas razões, retórica e dialéctica tornam-se armas potentíssimas que é preciso saber esgrimir com perícia; técnicas cujo domínio permite utilizá-las segundo as nossas conveniências, mas técnicas que se podem aplicar a qualquer conteúdo. Ora, os artífices desta técnica são os sofistas, ("Sofistas e oradores são a mesma coisa" PLATÃO, Górgias, 520b), pelo que o Górgias, condenando a retórica que conduz à imoralidade, condena simultaneamente toda a sofística.
Não admira que os sofistas venham a ser acusados de imoralidade, de administrar uma educação perversa e pervertida, de corromper a juventude e de sublevar os valores tradicionais, minando as bases da ordem social e da política estabelecida.
Para saber um pouco mais...
O palco dos sofistas? As casas particulares, as aulas improvisadas... Os sofistas viajavam de cidade em cidade à procura de alunos, levando consigo aqueles que já conseguiam arrebanhar. Poderão eles ser considerados pensadores? Talvez apenas pedagogos, educadores dos homens. Por um lado, educadores do espírito pela transmissão de um saber enciclopédico; por outro, a formação do espírito nos seus diversos campos. Um grande antagonismo espiritual... "Ao lado da formação meramente formal do entendimento, existiu igualmente nos sofistas uma educação formal no mais alto sentido da palavra, a qual não consistia já numa estruturação do entendimento e da linguagem, mas partia da totalidade das forças espirituais. É Protágoras quem a representa." Para este sofista, são a poesia e a música as principais forças modeladoras da alma, assim como a gramática, a dialéctica e a retórica. Sempre em busca da conquista de plateias, os sofistas procuravam desenvolver o dom de pronunciar discursos convincentes e oportunos, usando palavras decisivas e bem fundamentadas.
Os sofistas vinculam-se à tradição educativa dos grandes poetas, desde Homero a Hesíodo, de Simónides a Píndaro. Estes últimos tornaram a poesia no palco de uma discussão intensa sobre educação, ao levarem o problema da possibilidade de ensinar a arete para os seus poemas. Os sofistas fizeram o resto, fornecendo livros dos grandes poetas aos seus discípulos e transportando para o seio da sua prosa artística os mais diversos géneros de poesia moral e interpretando, metodicamente, os grandes poetas, a cujos ensinamentos se vincularam afincadamente. No entanto, esta interpretação era fria, imediata e intemporal. Os sofistas não embebiam o poema em si, mas sim todo o conhecimento que este lhes pudesse transmitir. Para eles, Homero é uma útil enciclopédia, onde figuram regras fulcrais para a vida e todos os conhecimentos humanos, como a construção de carros, as estratégias... "A educação heróica da epopeia e da tragédia é interpretada de um ponto de vista francamente utilitário." Para os sofistas, o uso dos poemas justifica-se pelo facto de estes permitirem alcançar uma pronúncia e dicção correcta das palavras.
Olga Pombo, http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras/links/sofistas.htm
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Sobre a Sofística
“O choque provocado pelos sofistas – sucesso e escândalo – na sociedade ateniense foi profundo. Ele reflecte-se na literatura da época, nomeadamente no teatro de Eurípides e de Aristófanes, que desde os anos 430 para o primeiro e 420 para o segundo põem em cena as múltiplas formas que a arte da palavra assume, maravilhando-se com o poder do discurso e das inovações recentes introduzidas neste domínio, mas denunciando os discursos demasiado hábeis e os professores de subtileza argumentativa, empregando as palavras sophos, sophisma e sophistês. Textos escritos mais tardiamente, mas referindo-se ao mesmo período do último terço do século V, contêm um testemunho semelhante: em particular certos diálogos de Platão, nos quais Sócrates conversa com os principais sofistas sobre retórica, ou tal passagem de Tucídides que faz dizer a Cléon, em 427, que os Atenienses, apaixonados pelas justas de palavras e por argumentos novos, importam os procedimentos dos sofistas para a eloquência deliberativa e transformam esta em política-espectáculo: «gentes dominadas pelo prazer de escutar», são, quando se sentam na assembleia, «semelhantes mais a um público lá instalado para sofistas do que a cidadãos que deliberam sobre a sua cidade» (Tucídides, III, 38, 7). A atracção pedagógica que exerciam os professores de eloquência traduz-se no topos da visita ao sofista, que consiste em mostrar um futuro aluno ansioso por ser aceite pelo mestre e pronto a se lhe entregar com toda a confiança, contanto que ele o ensine a falar (Aristófanes, Nuvens, 427 e ss.; Platão, Protágoras, 312).
A convergência destes textos, tão diferentes nos seus objectivos, atesta a amplitude das inovações introduzidas pelos sofistas. Desde logo, a sofística e a retórica serão ligadas para sempre no pensamento antigo, mesmo se a sofística não se reduz à retórica, mesmo se numerosos oradores se recusam a ser apelidados de sofistas. Platão insiste nisso não sem malícia: a despeito de todas as diferenças que podem ser estabelecidas entre as duas categorias, «sofistas e oradores confundem-se, misturam-se, sobre o mesmo domínio, em torno dos mesmos assuntos» (Górgias, 465 c, 520 a). E de facto, com os sofistas, a palavra constitui-se em disciplina autónoma e teorizada. O objecto «falar» foi isolado e torna-se em si mesmo objecto de reflexão e de arte. Esta arte engloba as teorias sobre a persuasão e sobre os fundamentos filosóficos do discurso, investigações técnicas (no domínio da argumentação e do estilo), um ensino. Os discursos começaram a ser publicados e não apenas pronunciados. O cadinho destas inovações foi Atenas, onde todos os sofistas permaneciam mais ou menos longamente.”
Laurent Pernot, La rhétorique dans l'antiquité, pp. 34-36.
(Adaptado)
O ensino
“A prática oratória apoiava-se sobre um ensino muito activo. Numerosos eram os mestres de retórica existentes em Atenas, desde os mais reputados aos mais modestos. Numerosas eram as escolas, caracterizadas por níveis diferentes e finalidades diferentes. Podia aprender-se a falar, como disse Platão, seja em vista da «arte» (tekhnê), seja em vista da «educação» (paideia) (Protágoras, 312), quer dizer, seja a fim de fazer da retórica uma profissão, seja de maneira desinteressada, a fim de se instruir e de se cultivar. Os métodos eram certamente variados e em grande parte orais. Pode facilmente imaginar-se que compreendiam lições teóricas, estudos de casos, a aprendizagem de discursos modelos propostos pelo mestre, exercícios práticos de composição, sobre assuntos reais ou fictícios, e ainda justas entre estudantes, sem esquecer o treino do gesto e da voz.
A escola que conhecemos melhor é a de Isócrates [...]. O ciclo de estudos durava até três ou quatro anos. Os estudantes, vindos não apenas da Ática, mas de todo o mundo grego, pagavam honorários elevados e ofereciam presentes, mediante os quais lhes eram propostos dois modos de ensino. Primeiro, sobre o que o mestre chamava as ideiai, palavra muito ampla que designa todas as «formas» do discurso, desde o conteúdo (acusação, elogio, etc.) até às figuras de estilo, passando pelas ideias, os temas e as formas de raciocínio, ou seja, todo o espectro da arte da palavra. Depois a audição de discursos compostos pelo mestre, que eram discutidos e explicados em comum, numa atmosfera de seminário [...]. Para além dos preceitos técnicos, Isócrates considerava fornecer uma formação completa, ao mesmo tempo intelectual e moral, em nome da convicção de que não é possível falar bem sem pensar bem e ser um homem de bem. Realista, até mais não, o mestre sublinhava que a educação não pode tudo e que ela não dá frutos, a menos que encontre um terreno favorável: as lições e os exercícios devem apoiar-se sobre os dons naturais. Os numerosos alunos saídos da escola de Isócrates ilustram o carácter generalista duma educação que formou oradores, escritores (como os historiadores Teopompo e Éforo), cidadãos activos nos negócios públicos e homens políticos importantes, entre os quais o estratego Timóteo, filho de Conon.
O ensino ateniense recorria a textos escritos: discursos-modelos, recolhas de exórdios e de perorações, e sobretudo a esses manuais ou tratados a que chamavam Tekhnai («Artes», subentendido «de retórica»). Os Tekhnai, na maior parte, incidiam sobre o género judiciário; utilitários, forneciam os meios de compor sem esforço um defensor.”
Laurent Pernot, La rhétorique dans l'antiquité, pp. 60-61.
(Adaptado)
A Retórica
“Esta, dizíamos, é uma arte. Este termo, tradução do grego technè, é ambíguo, e é-o mesmo duplamente. Primeiro, porque designa igualmente bem um saber-fazer espontâneo como uma competência adquirida pelo ensino. Em seguida, porque designa ora uma simples técnica, ora pelo contrário o que na criação ultrapassa a técnica e pertence ao «génio» do criador. Em qual ou em quais destes sentidos se pensa quando se diz que a retórica é uma arte? Em todos.
Em primeiro lugar, existe uma retórica espontânea, uma aptidão para persuadir pela palavra que não é talvez inata — não entremos aqui neste debate —, mas que também não é devida a uma formação específica; e, depois, uma retórica que se ensina, sob o nome, por exemplo, de «técnicas de expressão e de comunicação», e que serve para formar vendedores ou homens políticos, a ensinar-lhes o que outros vendedores, outros homens políticos, parecem saber naturalmente. Quais são os mais eficazes, quais sabem «melhor como preceder»? Sem dúvida os segundos. Mas nos segundos, tal como nos primeiros, encontramos os mesmos procedimentos, intelectuais e afectivos, estes procedimentos que fazem da retórica uma técnica.
Mas trata-se de uma simples técnica? Não, trata-se de bem mais. O verdadeiro orador é um artista no sentido em que descobre argumentos tanto mais eficazes quanto não os esperávamos, figuras de que ninguém teria tido a ideia e que se revelam adequadas; um artista cujos desempenhos não são programáveis e não se impõem senão mais tarde. Les Provinciales de Pascal (sempre ele, mas em retórica é incontornável!) dão um belo exemplo; onde os seus amigos jansenistas esperavam uma argumentação técnica, que não teria deixado de ser enfadonha, Pascal retomou as mesmas ideias sob a forma de um panfleto irónico, eficaz porque claro e divertido, e que ainda nos diz respeito. A arte de persuadir criou bastantes obras-primas.”
Olivier Reboul, Introduction à la rhétorique, p. 6.
(Adaptado)
http://rotasfilosoficas.blogs.sapo.pt/32351.html
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http://sofistas.no.sapo.pt/
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