domingo, 30 de março de 2014

A teoria empirista de David Hume



A origem do conhecimento

"Podemos, pois, dividir todas as perceções da mente em duas classes ou tipos, que se distinguem pelos seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos intensas e vivas são comummente designadas pensamentos ou ideias. Ao outro tipo (…) chamemos-lhe impressões (…). Pelo termo impressão significo todas as nossas perceções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões distinguem-se das ideias, que são as impressões menos intensas, das quais somos conscientes quando refletimos sobre qualquer das sensações ou movimentos acima mencionados."
D. Hume, Investigação sobre o entendimento humano

Assim sendo todas as nossas ideias têm que encontrar uma impressão que lhes corresponda e só é possível a existência de um conhecimento verdadeiro do que é observável, todos os conhecimentos que ultrapassem o observável são abusivos ou ilusórios. 

O Empirismo de David Hume
“Para os empiristas como David Hume, todos os nossos conhecimentos provêm da experiência e a razão não possui princípios inatos anteriores à experiência.
Mas é preciso, então, explicar porque a todo o momento o nosso espírito se projeta além da experiência imediata. Ao colocarmos leite no fogo, por exemplo, dizemos: o leite vai ferver. A todo o momento, nós fazemos previsões análogas e os nossos juízos excedem a “esfera restrita dos nossos sentidos”. Se tomamos a experiência, o dado, por guia único, temos o direito de dizer “o leite ferve” no momento em que o vemos ferver, mas nada nos autoriza anteciparmo-nos ao curso das coisas, a exceder o que nos é dado no momento e a fazer previsões do tipo: o leite vai ferver.
Se prevemos alguma coisa, é porque vamos além da experiência presente, em nome de um princípio da razão: o princípio de causalidade. O aquecimento é a causa da ebulição; supomos, entre aquecimento e ebulição, uma relação necessária de tal modo que, ao aquecermos o leite, possamos prever que ele vai ferver passados alguns instantes. É pelo facto de admitirmos esta relação necessária que pensamos que o aquecimento necessariamente produzirá a ebulição, que ultrapassamos audaciosamente a experiência presente: o leite vai ferver.
Portanto, David Hume, para justificar o seu empirismo integral, depara-se com um problema difícil. É-lhe necessário demonstrar que os próprios princípios da razão, por exemplo, o princípio de causalidade, provêm da experiência.
À primeira vista, não se depreende como o princípio de causalidade pode ter origem na experiência.
É certo que verificamos que o leite ferve, após ter sido levado ao fogo. Comprovamos que ele aquece e depois ferve. Mas não podemos afirmar que ele ferve porque foi aquecido. É verdade que diariamente podemos fazer a mesma comprovação. O aquecimento é sempre seguido de ebulição. Mas o que verificamos é uma “conjunção constante” e não uma “conexão necessária”, não vemos a ação causal, o “porquê”. (...)E, no entanto, não nos limitamos a dizer que os acontecimentos se sucedem, mas afirmamos que eles se produzem e se determinam uns aos outros, que existem causas e efeitos. Qual será, então, a origem do princípio de causalidade?
Hume explica-o a partir do hábito e da associação de ideias. Porque esperamos ver a água a ferver quando a aquecemos? É porque, responde Hume, aquecimento e ebulição sempre estiveram associados na nossa experiência passada. Formou-se um hábito deste modo. Quando levamos um líquido ao fogo aguardamos a ebulição porque a nossa experiência passada habituou-nos a isto. Ao dizermos que o leite vai ferver, tiramos “uma conclusão que excede, no futuro, os casos passados” de que já tivemos experiência; é que a imaginação, irresistivelmente arrastada pela força do hábito, passa de um acontecimento dado àquele de ordinário o acompanha. Assim, o passado impulsiona a imaginação que, “como uma galera acionada pelos remos, desliza sem necessidade de novo impulso”. A experiência passada orienta a imaginação e esta, adestrada pelo hábito, projeta-a sobre o acontecimento que está para vir, quando em face do aquecimento. O leite vai ferver. Ao afirmar isto, aparentamos ultrapassar a experiência, mas o que fazemos na realidade é seguir uma tendência criada pelo hábito.
Somente o hábito nos faz imaginar uma ligação necessária entre o aquecimento e a dilatação.
Tal explicação é puramente psicológica e não traz à ideia de causalidade qualquer garantia objetiva; por outras palavras, Hume explica porque acreditamos na causalidade, mas não mostra a razão pela qual acreditamos. Ele mostra porque esperamos irresistivelmente que se produza a ebulição, quando assistimos ao aquecimento. Mas não demonstra que temos razão em fazê-lo, não justifica logicamente a nossa expectativa. Teoricamente, diz ele, poderia acontecer que o leite não fervesse. Pois nada prova que a experiência de amanhã confirmará a de ontem e a de hoje. Teoricamente, nada prova que o leite levado ao fogo não se congelará!
Efetivamente, segundo a teoria de Hume, não podemos falar de causas e efeitos, mas apenas de factos que, na nossa experiência passada, se sucederam uns aos outros. Consequentemente, se o princípio de causalidade é apenas um resumo dos nossos hábitos, ele poderá ser desmentido pela experiência futura. Em rigor, ele não passa de uma ilusão explicável pela psicologia do hábito e da expectativa. Não estamos mais certos de coisa alguma e o empirismo de Hume desemboca num verdadeiro cepticismo.” 
Huisman & Vergez, O conhecimento


Síntese:
1. Para o empirismo a origem do conhecimento é a experiência.
2. Na razão não existe nada que não tenha a sua origem nas impressões.
3. Todo o conhecimento substancial (sobre o mundo) tem como limite o observável.
4. Como todos os nossos conhecimentos gerais partem da experiência que nos dá sempre um conhecimento do particular, é o processo indutivo de inferência que permite alcançar conhecimento universal. Como há uma generalização a todos os casos daquilo que foi observado apenas em parte, não temos garantia lógica de que as verdades gerais sejam necessárias e universais. Assim, todo o conhecimento universal é apenas uma probabilidade não sendo impossível que se venha a revelar falso no confronto com a observação de novos dados (experiências futuras).
5. Com base na observação e na experiência apenas podemos afirmar que dois fenómenos se sucedem habitualmente um ao outro. Por isso, Hume conclui ser impossível afirmar que exista uma relação necessária de causa efeito entre esses dois fenómenos, isto é, nega a existência do princípio de causalidade por não haver uma impressão que lhe corresponda. As inferências causais não passam de convicções que se formam pela força do hábito (Hume diz que o hábito ou costume é um instinto que nos leva, irresistivelmente, a esperar que a conjunção de impressões a que atribuímos o nome de causa e efeito veja a ocorrer no futuro - por exemplo "O Sol vai nascer amanhã" é uma convicção que nasce da repetição da experiência, não havendo nenhuma garantia de que o Sol nascerá amanhã).
6. Do mesmo modo que retira fundamento lógico ao princípio de causalidade, David Hume também exclui do âmbito do conhecimento verdadeiro (justificado logicamente) a afirmação de objetos que não sejam dados na experiência, de Deus, por exemplo.
7. Ao negar o caráter de verdade aos conhecimentos gerais e ao estabelecer a experiência como única fonte do conhecimento, o empirismo estabelece limites ao conhecimento, desembocando num cepticismo. O cepticismo de David Hume é moderado: não nega a possibilidade do conhecimento, mas considera que não podemos conhecer para além da experiência possível. Não podemos, por exemplo, saber se a realidade existe para além das impressões ou se ela é tal como a percepcionamos. Em suma, não podemos justificar racionalmente as nossas crenças fundacionais (as impressões).

Hugo Araújo, Apontamentos para o exame nacional de 2007 (texto adaptado)
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Hume - Ficha Formativa
(Nível avançado)

Impressões e ideias
Hume pensa que os conteúdos da mente são as impressões e as ideias. A diferença entre umas e outras é que as impressões são mais vívidas que as ideias quando surgem na consciência. Hume diz que as ideias são pálidas imagens das impressões no pensamento. Isto compreende-se tendo em conta a sua afirmação central de que as ideias derivam e por isso dependem das impressões. Para defender esta afirmação central, Hume recorre ao exemplo da criança que tem a ideia de escarlate ou laranja, amargo ou doce, porque lhe foram apresentados objectos que produziram nela as impressões correspondentes; seria absurdo pensar que a criança produz as impressões a partir das ideias. Mas de onde vêm as impressões? As impressões são o resultado da experiência, que consiste na percepção e introspecção. Através da percepção vemos, ouvimos, cheiramos, etc., algo de que temos consciência e que é imediatamente presente à mente pelos sentidos. Por sua vez, a introspecção é a percepção dos conteúdos da mente — as impressões e as ideias.

A justificação do conhecimento e suas consequências

Hume defende que a justificação do conhecimento está nas impressões. Segundo Hume, este facto determina 1) a extensão do conhecimento e 2) que frases têm sentido. Para sabermos se uma frase tem sentido, o teste que terá de ser feito consiste simplesmente em ver se a proposição que ela exprime deriva de uma impressão.
Imagina que tens a ideia de uma montanha X com neve. Perante isto, Hume faria a seguinte pergunta: De que depende e deriva essa ideia? E tu provavelmente responderias que deriva da experiência de ver (impressão visual) a montanha X com neve. Imagina que tens a ideia de alegria intensa. A mesma pergunta seria feita e tu provavelmente responderias que essa ideia depende da experiência de ter certos estados mentais a que tens acesso imediato por introspecção e que são produzidos por um 18 no teste de Matemática ou pela vitória do teu clube no campeonato de futebol. Segue-se assim que a proposição expressa pela frase "A montanha X tem neve no mês de Janeiro" pode ser verificável ou falsificável pela observação; e que a proposição expressa pela frase "Sinto uma alegria intensa quando tenho um 18 a Matemática" pode ser verificável ou falsificável pela introspecção.
Hume diz que ambas as frases têm sentido e podem exprimir conhecimento. E como são verificáveis ou falsificáveis pela observação ou introspecção, exprimem proposições empíricas. Mas para Hume há também frases analíticas como "Um quadrado tem quatro lados" ou "Um dia húmido não é um dia seco". Uma frase é analítica quando a sua verdade ou falsidade depende exclusivamente do significado dos termos nela envolvidos. A negação de uma verdade analítica é auto-contraditória, o que não acontece quando se nega uma frase empírica. Para uma frase não ser desprovida de significado terá de ser empírica ou analítica. A conclusão que daqui se retira é devastadora e tem um enorme alcance. Basta pensares em frases como "Deus existe", "O homem é livre e moralmente responsável", ou "A alma é imortal", para concluíres que as proposições expressas não são empíricas nem analíticas — pelo menos, assim pensava Hume. Logo, como o mesmo se passa com todas as outras frases metafísicas, segundo Hume, todas são desprovidas de significado. E como são desprovidas de significado, não podem exprimir qualquer espécie de conhecimento. A este famoso argumento de Hume chama-se "argumento antimetafísico". Na sua vida pessoal, Hume foi consistente com este argumento. No leito de morte, houve quem aguardasse ansiosamente a sua conversão. Em vão. Nesse momento extremo, manteve a doçura e serenidade que o distinguiam.

Questões de revisão
1. Segundo Hume, que relação há entre as impressões e as ideias?
2. Segundo Hume, qual é a justificação última do conhecimento?


Causalidade, inferência indutiva, eu e mundo
O teste adoptado por Hume para determinar se uma frase tem sentido e pode exprimir conhecimento não o levou apenas ao abandono de crenças metafísicas. Noções centrais como as de causalidade, eu e mundo terão de ser drasticamente redefinidas.
Vejamos como. Em que experiência se baseia a noção de causalidade? Na experiência de ver repetidamente um certo tipo de objecto ou evento ser seguido por um objecto ou evento de outro tipo. Essa experiência de contiguidade leva a mente a inferir um determinado objecto ou evento sempre que tem a impressão do objecto ou evento que habitualmente o antecede. Segundo Hume, a causalidade é simplesmente uma conexão mental que a experiência do passado formou em nós; é um hábito mental produzido por factos contingentes ligados à natureza humana. Daqui resulta que a ideia tradicional de causalidade como conexão necessária entre duas coisas terá de ser abandonada e redefinida. Não temos a impressão de uma conexão necessária entre duas coisas; o que temos é apenas a impressão de contiguidade entre objectos ou eventos. O que deste modo se forma em nós é apenas um hábito mental e não há lugar para qualquer demonstração a priori da existência de relações causais no mundo.
Este hábito mental de estabelecer conexões causais está na base de inferências de factos observados para factos não observados e do passado para o futuro. Essas inferências são argumentos indutivos como os seguintes: da experiência de ter observado que a cadeira onde estou sentado aguenta o meu peso, concluo que será bastante provável que o mesmo aconteça no futuro; do facto de ter tido a experiência de que o pão alimenta e dá energia, concluo que todo o pão alimenta e dá energia. Mas o que nos leva a pensar assim? A resposta é que esperamos que os casos futuros sejam semelhantes aos casos do passado e que o curso da natureza continue uniformemente a ser o mesmo. A isto chama Hume o Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN).
Há alguma justificação para PUN, ou estamos mais uma vez na presença de um hábito mental contingente? Vejamos o que sucede se tentarmos justificar PUN através de um argumento indutivo. PUN afirma que as uniformidades do passado continuarão no futuro. Em que premissa podemos apoiar esta conclusão? Na premissa de que a natureza tem sido uniforme nas minhas observações do passado. Mas como Hume diz que todos os argumentos indutivos pressupõem PUN como premissa, o argumento é circular: pressupõe como premissa o que tenta estabelecer como conclusão. Logo, a justificação indutiva de PUN falha.
E será que uma justificação dedutiva de PUN teria sucesso? Mais uma vez, Hume diz que não. Se apreciares mais uma vez o argumento do parágrafo anterior, terás de concluir que ele não é dedutivamente válido. PUN não pode ser deduzido das observações feitas no passado. Um outro tipo de justificação dedutiva seria deduzir PUN das definições dos termos que usa. Nesse caso PUN seria uma verdade conceptual como "Um dia húmido não é um dia seco". Assim, tal como da definição de "dia húmido" podemos deduzir que "um dia húmido não é um dia seco", também seria possível deduzir que "a natureza é uniforme" da definição de "natureza". Mas é evidente que não há qualquer contradição se dissermos que a natureza deixará subitamente de ser uniforme. Logo, esta tentativa também falha. PUN não é uma verdade conceptual.
Mas se todas estas tentativas falham, o que é PUN então? Mais uma vez, é simplesmente um hábito mental contingente, ainda que bastante importante na aquisição de conhecimento empírico. Tal como a noção de causalidade, não tem uma demonstração a priori. Acontece que a natureza humana funciona assim, mas ninguém pode honestamente excluir a possibilidade de que um dia deixe de funcionar da mesma maneira.
Intuitivamente supomos que os "eus" são entidades que persistem através do tempo e da mudança. Claro que acontecem mudanças na vida de uma pessoa, mas presumimos que não são essenciais: no fundo de cada um de nós há um substrato do nosso pensamento, da nossa percepção, de todas as nossas propriedades psicológicas. Esse substrato permanece inalterável. Hume defende que esta concepção de eu não tem base empírica. Assim, se por introspecção tentarmos compreender o que é afinal este eu, veremos apenas uma sucessão de impressões momentâneas e efémeras numa espécie de teatro em contínua mudança. Nada mais vemos além disto. A introspecção não capta qualquer substrato inalterável. Ora, o erro da nossa concepção intuitiva está no facto de a mente sentir a experiência de objectos relacionados como se fosse a experiência de um objecto único e imutável. O que se passa é que vemos unidade naquilo que de facto é diversidade. Logo, a introspecção apenas nos autoriza a conceber o eu como um feixe de percepções mutáveis, e não como um substrato permanente.
A mesma estratégia é seguida por Hume quando se trata de examinar a noção de mundo externo. Intuitivamente supomos que o mundo externo é feito de objetos estáveis. Mas aquilo de que temos experiência direta é momentâneo e efémero. Logo, a nossa concepção intuitiva de que o mundo é feito de objetos distintos e contínuos está errada. A experiência não fornece justificação para pensar desse modo.

Questões de revisão
3. Por que razão pensa Hume que a causalidade não pode ser definida como uma conexão necessária entre duas coisas?
4. Em que se baseiam as inferências causais, segundo Hume?
5. Por que razão pensa Hume que o eu não é um substrato permanente?
6. Em que confusão pensa Hume que se baseia a ideia de eu como substrato permanente?
7. Será que, segundo Hume, podemos justificar a nossa crença em objetos estáveis? Porquê?

Conclusão
Como acabaste de ver, a redefinição levada a cabo por Hume de crenças tão fundamentais como as de causalidade, inferência indutiva, eu e mundo externo pode abalar seriamente a tua confiança nas nossas capacidades de justificação racional. Essa é a razão que leva alguns filósofos a dizer que os seus argumentos são um exercício de cepticismo. Mas talvez Hume esteja apenas a dizer que o nosso conhecimento é mais limitado do que os racionalistas julgaram. Esta é precisamente a opinião de outros filósofos. Para eles, Hume é céptico em relação às afirmações de conhecimento a priori dos racionalistas, o que é muito diferente de ser céptico em relação à possibilidade global do conhecimento. Assim, em vez de ser um céptico, Hume é um "naturalista", alguém que argumenta a favor da ideia de que as nossas noções centrais não são estabelecidas pela razão, mas pelo funcionamento da natureza humana. Somos simplesmente feitos dessa maneira e isso é contingente, o que quer dizer que podíamos não ser feitos dessa maneira. Se Hume é céptico ou "naturalista", é uma questão que te cabe avaliar criticamente e tomar posição.
Hume mantém-se fiel à sua teoria empirista do conhecimento. Parece que a única justificação plausível do conhecimento genuíno é empírica. Mas afinal que conhecimento temos? Vimos no início desta lição que Hume só admitia frases empíricas ou analíticas. Mas como as verdades analíticas (segundo Hume, as verdades lógicas e matemáticas) dependem exclusivamente dos significados dos termos e apenas exprimem conhecimento linguístico e não substancial, o único conhecimento genuíno acerca do mundo é empírico. De fora deste quadro apertado é deixado um conjunto significativo de noções filosóficas fundamentais até aí aceites, como as noções já discutidas de eu, mundo e causalidade. Como não têm justificação empírica, estas noções terão de ser abandonadas. Diz-se, por isso, que Hume foi revolucionário e que a sua filosofia teve o saudável efeito de obrigar a discutir e redefinir noções fundamentais.

Questões de discussão
8. "Hume está errado. Por duas razões. 1) Há impressões que derivam de ideias e 2) sem conceitos prévios que fazem parte de uma linguagem as impressões nada significam." Concordas? Porquê?
9. Hume é um céptico ou um "naturalista"? Porquê?

|Faustino Vaz, Crítica na Rede / Arte de Pensar

segunda-feira, 24 de março de 2014

O fundacionismo (e as crenças fundacionais)


A teoria fundacionista é uma teoria  tradicional da epistemologia e que se ocupa em fazer uma descrição da justificação. Esta corrente afirma que existem crenças fundacionais e que estas são justificadas em si mesmas e a partir delas todas as outras crenças devem ser justificadas. Na visão de Lehrer, o fundacionismo prega que há algumas coisas que estamos completamente justificados em aceitar sem argumentos.
As condições para uma crença ser básica são: a) que ela seja auto-justificada e b) que todas as crenças justificadas dependem da auto-justificação das crenças básicas. 

Um exemplo de crença básica, que inclusive poderia ser dado por um empirista, é “eu vejo alguma coisa móvel”.Uma das críticas que se faz a este tipo de proposição é que são muito fracas para dar apoio à gama de coisas que nós,pelo menos, aparentemente conhecemos. Além de outras objeções como: as crenças básicas são arbitrárias, já que se o fundacionista tentar explicar porque uma determinada crença é básica ela deixará de ser o que ele quer que ela seja.Temos plena consciência que a teoria passou por várias modificações e há distinções entre tipos de fundacionismo, mas o objetivo aqui é explanar traços gerais da teoria e a partir daí servir como porta de entrada para uma série de discussões.
http://conceitodeconhecimento.wordpress.com/2009/10/16/fundacionismo-epistemico/

Teste 4 - Matriz

Nota: neste teste é obrigatório o uso de folha de teste.
A estrutura do teste será idêntica à do teste 3.


Neste teste sairão os conteúdos/objectivos sistematizados na Matriz do Teste 3, acrescidos dos seguintes conteúdos/objectivos:
- Compreender e discutir a solução cartesiana para o problema da possibilidade do conhecimento.
- Avaliar a resposta de Descartes aos cépticos.
- Explicar a dúvida metódica, atendendo às suas características e função.
- Explicar o cogito.
- Compreender o cogito como a base do racionalismo cartesiano.
- Caracterizar o racionalismo cartesiano a partir do dualismo gnoseológico.
- Compreender a posição de Descartes em relação à experiência (aos sentidos).
- Distinguir os diversos tipos de ideias: inatas, factícias e adventícias.
- Explicar o inatismo (apriorismo cartesiano).
- Explicar a importância do cogito para a descoberta do critério de verdade - a clareza e a distinção.
- Explicar a função das provas da existência de Deus no que se refere à crença na existência do mundo exterior e na fundamentação do critério de verdade.
- Analisar criticamente a resposta cartesiana: a circularidade e a ideia de perfeição.
- Compreender e discutir a solução de David Hume para o problema da possibilidade do conhecimento (o fundacionismo empirista).
- Distinguir os conteúdos da mente de acordo com David Hume: impressões e ideias (simples e complexas).
- Compreender que todos os conteúdos da mente são, de acordo com David Hume, percepções.
- Compreender que as ideias são sempre cópias de impressões ("Nada está na mente sem que tenha passado pelos sentidos".
- Explicar a doutrina da tábua rasa: a recusa empirista do inatismo e apriorismo (para David Hume não há ideias inatas e a mente nasce vazia, sem qualquer conteúdo).
- Distinguir os dois tipos de conhecimento de acordo com David Hume: as questões de facto (ou 'relações de facto' e as relações de ideias.
- Distinguir verdades contingentes (relativas às 'relações de facto') e verdades necessárias (relativas às relações de ideias).
- Compreender que as verdades matemáticas (relações de ideias) não nos dizem nada sobre o mundo (As relações de ideias não nos dão um conhecimento substancial - sobre o mundo exterior).
- Reconhecer que, para David Hume, todo o nosso conhecimento do mundo exterior é empírico (a posteriori).
- Explicar a origem das inferências causais: a "conjunção constante" (a experiência repetida) e o 'hábito ou costume'.
- Reconhecer que não temos uma impressão da causalidade e que as inferências causais não são racionais - dependem dum instinto.
- Reconhecer que os animais fazem inferências causais.
- Explicar que, segundo David Hume, a razão não é uma faculdade superior, que distinguiria os homens dos animais, mas, antes o resultado da acção da memória e da imaginação (também presentes nos animais).
- Compreender que, para David Hume, o cogito cartesiano não é um conhecimento a priori.
- Interpretar a crítica de David Hume à clareza e distinção como critério de verdade: a existir um critério de verdade deverá ser a força e vivacidade das impressões ( “A mais vívida das ideias é ainda mais ténue que a mais ténue das impressões”).
- Explicar o cepticismo moderado de David Hume.




O Racionalismo


"A posição epistemológica vê no pensamento, na razão, a fonte principal do conhecimento humano chama-se racionalismo. Segundo ele, o conhecimento só merece na realidade este nome quando é logicamente necessário e universalmente válido. 
Quando a nossa razão julga que uma coisa tem que ser assim e não pode ser de outro modo, que tem de ser assim, portanto, sempre e em todas as partes, então, e só então, nos encontramos ante um verdadeiro conhecimento, na opinião dos racionalistas. 
 Uma forma determinada do conhecimento serviu evidentemente de modelo à interpretação racionalista do conhecimento. Não é difícil dizer qual é: é o conhecimento matemático. Este é, com efeito, um conhecimento predominantemente conceptual e dedutivo. 
O pensamento impera com absoluta independência de toda a experiência, seguindo somente as suas próprias leis. Todos os juízos que formula distinguem-se, além disso, pelas características da necessidade lógica e da validade universal. O racionalismo alcançou maior importância na Idade Moderna em Descartes. Segundo ele são inatos um certo número de conceitos, justamente os mais importantes, os conceitos fundamentais do conhecimento. Estes conceitos não procedem da experiência, mas representam um património originário da razão. (É a teoria das ideias inatas).
O mérito do racionalismo consiste em ter visto e feito sobressair o significado do fator racional no conhecimento humano mas é exclusivista ao fazer do pensamento a fonte única ou própria do conhecimento. Além disso, o racionalismo deriva de princípios formais proposições materiais; deduz de meros conceitos conhecimentos. (Penso na intenção de derivar do conceito de Deus a sua existência). Apresenta assim um espírito dogmático que provocou reações opostas como, por exemplo, o empirismo." 
Pinedo e Pinedo, ttp://www.eumed.net/libros-gratis/2009a/482/O%20racionalismo.htm

Síntese:
1. O racionalismo toma a razão como única fonte de conhecimento.
2. Pressupõe a existência de ideias inatas, descobertas por intuição racional, de conhecimento das quais deduz todos os outros conhecimentos que devem ser logicamente necessários e universalmente válidos.
3. Para conferir ao conhecimento esse caráter de universalidade e necessidade, toma a matemática como modelo a seguir para todos os tipos de conhecimento.
4. Rejeita a experiência como fonte de conhecimento por considerar que ela é enganadora e conduz a conhecimentos particulares e contingentes (por oposição à universalidade e necessidade próprias do conhecimento racional construído a partir do modelo matemático do conhecimento).
5. Apesar de ter sido importante a valorização da razão como fonte de conhecimento, os racionalistas têm tendência para um certo exclusivismo (apenas admitindo uma única fonte de conhecimento) e dogmatismo (ao considerar a possibilidade de construirmos um conhecimento absolutamente verdadeiro e ao derivar as ideias a existência das coisas). 
Hugo Araújo, Apontamentos para o exame nacional de 2007

Ficha Formativa - Descartes (Escolha múltipla)

1. Segundo Descartes, o critério de verdade é:
A. A delicadeza e a exatidão;
B. a clareza e a distinção;
C. a delicadeza  e a distinção;
D. a clareza e a não contradição.

2. De acordo com Descartes os conteúdos da nossa mente podem classificar-se como:
A. Ideias inatas; ideias fictícias; ideias adventícias;
B. ideias factícias; ideias complexas; ideias simples,
C. ideias adventícias; ideias inatas; ideias factícias.
D. ideias simples, ideias inatas, ideias claras e distintas.

3. A dúvida cartesiana é hiperbólica porque:
A. Só se aplica aos objectos da experiência;
B. aplica-se a todas as nossas crenças;
C. aplica-se a todas as ideias factícias:
D. aplica-se só aos objectos da razão.

4. O cogito é:
A. A base da dúvida metódica;
B. alcançado através da experiência;
C. a a prova de que a verdade não existe;
D. a primeira verdade alcançada através da dúvida.

5. Identifique a afirmação verdadeira:
A. Descartes é céptico porque parte da dúvida.
B. Descartes não é céptico porque a dúvida é metódica.
C. Descartes é céptico porque não procura a verdade e a encontra por acaso.
D. Descartes é céptico porque consegue duvidar de tudo.

6. Identifique a afirmação errada:
A. O principal problema de Descartes é o de encontrar a garantia de que o nosso conhecimento é absolutamente seguro.
B. A condição necessária para que algo seja declarado conhecimento absolutamente seguro é resistir completamente à dúvida.
C. Descartes consegue provar que os sentidos não nos enganam.
D. O primeiro conhecimento absolutamente seguro é a existência do sujeito que tem consciência de que os sentidos e o entendimento o podem enganar.

7. Ao recorrer à dúvida metódica, Descartes pretende:
A. Mostrar que os sentidos por vezes nos enganam;
B. rejeitar definitivamente tudo o que não seja indubitável;
C. encontrar um fundamento seguro para o conhecimento.
D. Nenhuma das respostas anteriores é correta.

8. De acordo com a filosofia cartesiana, Deus existe porque:
A. O universo físico tem de ter uma causa;
B. a organização do Universo aponta para um criador inteligente;
C. a própria ideia de ser perfeito implica a sua existência.
D. Nenhuma das respostas anteriores é correta.

9. Segundo Descartes, o cogito é uma verdade indubitável porque:
A. A existência do nosso corpo pode ser uma ilusão;
B. podemos provar que Deus existe;
C. somos um sujeito pensante;
D. compreendemo-lo com toda a clareza e distinção.

10. Segundo Descartes, apenas é verdadeira a seguinte afirmação:
A. Sabemos que o mundo exterior é real porque os sentidos o comprovam;
B. sabemos que o mundo exterior é real porque sabemos que o sujeito existe;
C. sabemos que o mundo exterior é real porque o cogito é um princípio indubitável que
garante a sua existência;
D. sabemos que Deus existe porque o mundo exterior é real.

11. Descartes, no percurso que faz da dúvida até ao primeiro princípio indubitável,
considera que:
A. Não pode atribuir qualquer importância aos dados empíricos na aquisição do
conhecimento verdadeiro;
B. pode atribuir alguma importância aos dados empíricos na aquisição do conhecimento
verdadeiro;
C. tem de atribuir alguma importância aos dados empíricos na aquisição do conhecimento
verdadeiro;
D. tem de atribuir uma importância fundamental aos dados empíricos na aquisição do
conhecimento verdadeiro.

12. Na filosofia cartesiana, a ideia de Deus que o sujeito possui teve origem:
A. Numa ideia, proveniente dos sentidos, que o sujeito descobriu na sua própria razão;
B. na necessidade de encontrar um criador para tudo o que existe;
C. no eu pensante, ao submeter todos os conhecimentos que possui à dúvida radical;
D. em Deus, que a deixou em nós como a sua marca.

>Correção

Introdução ao Racionalismo de Descartes


Como Descartes ultrapassa o cepticismo


Comodescartesultrapassaocepticismo 120217104847-phpapp02 from Helena Serrão

Descartes (...) procurava verdades que nenhum cético pudesse desafiar. Para descobri-las, começou por adotar um método de dúvida cética, rejeitando todas as crenças que poderiam, sob qualquer condição imaginável, ser falsas ou duvidosas. Rejeitou prontamente as crenças baseadas nos sentidos porque estes às vezes nos enganam. Rejeitou as crenças sobre a realidade física porque o que consideramos ser tal realidade pode fazer apenas parte de um sonho. Rejeitou as crenças baseadas no raciocínio porque podemos ser sistematicamente enganados por uma força demoníaca (o 'Génio Maligno').

Neste ponto, Descartes parece ter criado um ceticismo maior que o de Montaigne. Mas Descartes passou a perguntar se podemos duvidar ou rejeitar a crença na nossa própria existência. Aqui descobrimos que toda tentativa de o fazer é imediatamente anulada pela nossa consciência de que, nós mesmos, estamos duvidando. Assim, a primeira verdade que Descartes alegou que não poderia ser colocada em dúvida foi “penso, logo existo” (o cogito). A partir desta verdade alguém poderia extrair o critério de que tudo o que concebemos clara e distintamente é verdadeiro. Usando este critério, estabelecemos que Deus existe, que é todo-poderoso, o criador de tudo o que existe, e que, porque é perfeito, não nos pode enganar. Portanto, tudo o que Deus nos faz acreditar clara e distintamente tem de ser verdadeiro. Assim, a nova filosofia de Descartes visa refutar o novo ceticismo.
Richard Popkin, in  http://criticanarede.com/ceticismo.htm

domingo, 23 de março de 2014

Da dúvida ao Cogito

Imagem de Gilbert Garcin


"Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, e neles cometem paralogismos, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outro todas as razoes de que até então me servia nas demonstrações. Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem ocorrer também quando dormimos, se que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. 
Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade – eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos seriam impotentes para a abalar, julguei que podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava. 
Depois, examinando atentamente que coisa eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu existisse; mas que, apesar disso, não podia admitir que não existia; e que antes, pelo contrario, por isso mesmo que pensava, ao duvidar da verdade das outras coisas, tinha de admitir como muito evidente muito certo que existia; ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para não ter já nenhuma razão para crer que existia, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro; por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é apenas o pensamento, que para existir não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de nenhuma coisa material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, mais fácil mesmo de conhecer que este, o qual, embora não existisse, não impediria que ela fosse o que é. 
Depois disso, considerei duma maneira geral o que é indispensável a uma proposição para ser verdadeira e certa; porque, como acabava de encontrar uma com esses requisitos, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E tendo notado que nada há no que eu penso, logo existo, que me garanta que digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente; havendo apenas alguma dificuldade em notar quais são as coisas que concebemos distintamente." 
René Descartes, Discurso do Método

Interpretação do texto:

O texto foi escrito por um filósofo francês do século XVII que se dedicou ao estudo dos problemas do conhecimento e construiu um sistema de índole racionalista. Vivia-se então numa época de crise e de incerteza que se refletia nas posições céticas adotadas pelos contemporâneos de Descartes. Ora Descartes tinha uma formação matemática e desejava garantir a existência de um conhecimento verdadeiro.
No texto, extraído do Discurso do Método, uma das suas obras mais divulgadas:
1. Começa precisamente por levantar o problema da dúvida em três domínios fundamentais:
a) Dúvida acerca do conhecimento sensorial;
b) Dúvida acerca da capacidade da razão humana;
c) Dúvida quanto á possibilidade de distinguir sonho de realidade.

2. Refere a decisão de não aceitar nada como verdadeiro ate encontrar uma verdade que resista a toda e qualquer dúvida (um conhecimento indubitável).
Esta atitude de Descartes é uma forma de garantir a validade absoluta de um conhecimento capaz de resistir à dúvida mais exagerada. Por isso se considera que a dúvida cartesiana é metódica, universal (abrange todos os conhecimentos) e voluntária.

3. Enuncia a primeira verdade a que Descartes chegou: o cogito ou a existência de um ser pensante (penso, logo existo).
Esta primeira verdade vai ser aceite por Descartes que sobre ela assentará o seu sistema filosófico.
Trata-se de uma verdade de natureza puramente racional, ou seja, que depende unicamente do uso da razão humana e na sua descoberta não foi necessária a contribuição dos sentidos. A existência do cogito é a primeira informação segura a que Descartes chegou depois de deliberadamente ter posto tudo em dúvida e encerra o sujeito que conhece em si mesmo, reduzindo-o a ser “uma coisa que pensa” (res cogitans).
Duvida ainda da existência dos outros seres humanos e das coisas materiais, incluindo o seu próprio corpo.
O objetivo cartesiano de alcançar a verdade começa a cumprir-se no momento da dúvida, no momento em que se rompe com o sensível e com o conhecimento até então constituído e se procura a verdade na própria razão.

4. Seguidamente o texto de Descartes define a natureza do cogito afirmando a sua independência em relação ao corpo e a sua natureza de puro pensamento. 
Contrariamente ao nosso conhecimento vulgar que nos leva a acreditar mais facilmente na existência das coisas e do corpo do que na existência da mente, Descartes conclui que o conhecimento desta é mais acessível e é anterior ao conhecimento das coisas corpóreas; o corpo não faz parte da mente e é de outra natureza.

5. Apresenta, finalmente, o critério de verdade válido para Descartes. Serão aceites como verdadeiras unicamente aquelas ideias que se apresentem à razão como sendo claras e distintas, características que Descartes encontra na apreensão intuitiva e racional da ideia do cogito. A apreensão do cogito fornece o critério de verdade das ideias: a clareza e a distinção.

Como verificamos Descartes parte da dúvida e alcança uma primeira verdade por via unicamente racional. Neste momento da construção do sistema cartesiano Descartes só admite a existência de um eu cuja natureza se resume a produzir pensamento. Será que existe alguma coisa fora e para além do seu eu? Como vai conseguir sair para fora do cogito e demonstrar a existência da realidade material?
Descartes não pode basear-se nos sentidos uma vez que os excluíra como fonte fiável de conhecimento.
Só lhe resta refletir sobre si mesmo e procurar na mente, no cogito, a possibilidade de provar a existência de algo para além do seu próprio pensamento. O que é que esta reflexão lhe vai permitir descobrir?
Diferentes tipos de ideias: ideias que “nasceram comigo” (ideias inatas); outras que vieram de fora (ideias adventícias); outras que foram feitas e inventadas por mim (ideias factícias).
Ao examinar a natureza das ideias, Descartes valoriza as que são inatas e entre elas descobre a ideia de Deus como ser perfeito e como o homem é um ser imperfeito, que não pode por  si só criar a ideia de perfeição, esta ideia é inata e só pode ter origem no próprio Deus que a colocou na nossa mente. Esta ideia ao fazer-nos conceber Deus como um ser perfeito, incapaz de nos enganar, passa a ser garantia de que o conhecimento construído pela razão é verdadeiro. Assim, alem da existência do cogito, Descartes passa a admitir a existência de Deus e a existência do mundo.
Hugo Araújo, Apontamentos para o exame nacional de 2007

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Uma síntese mais avançada da perspectiva cartesiana:

O Cogito

Descartes recorreu a argumentos cépticos como um instrumento para chegar ao conhecimento seguro. Apesar de o fazer, Descartes não é um céptico. Vejamos, por exemplo, o argumento do sonho e o argumento do génio maligno. No primeiro, Descartes defende que não é possível fazer a distinção entre estar acordado e estar a sonhar, porque podes sonhar que estás a fazer um teste para te certificares de que estás acordado. No segundo, a suposição de um génio maligno bastante poderoso que se empenha em enganar-te mesmo quando acreditas que 2 + 2 = 4, leva-te a suspender o juízo em relação às verdades lógicas e matemáticas, por mais simples que sejam. Mas por mais que tentes duvidar da tua existência, supondo que estás apenas a sonhar ou a ser enganado por um génio maligno que te leva a pensar que existes, terás nesse momento a certeza de que alguma coisa existe para que ocorra a atividade de duvidar. Terá de haver um sonhador para sonhar a sua própria existência e um enganado para ser enganado. Descartes conclui que, enquanto pensar que está a ser enganado por um génio maligno, terá de existir como ser pensante. Trata-se do famoso cogito ergo sum (penso; logo, existo).
Através de argumentação a priori, Descartes obteve conhecimento acerca de algo que realmente existe: ele próprio como ser pensante. Para compreenderes melhor o que garante este conhecimento teremos de analisar a certeza implicada pelas crenças "Estou a pensar" e "Existo". Em primeiro lugar, ambas são incorrigíveis, o que se define do seguinte modo: se alguém acredita que está a pensar ou que existe, então não pode estar errado. Em segundo lugar, têm a propriedade de ser auto-verificáveis, a qual contribui para a incorrigibilidade e se define do seguinte modo: se alguém afirma estas proposições, então essa afirmação é verdadeira.
Vejamos melhor o que isto quer dizer. Considera a proposição expressa pela frase P: "Estou a pensar". Se pensares que P é falsa, exprimes nesse momento uma contradição. Mas não se trata de uma contradição lógica porque "Eu não estou a pensar" e "Eu não existo" não são falsas em todas as circunstâncias possíveis devido à sua forma lógica, como acontece com a proposição expressa pela frase "O mar tem peixes e o mar não tem peixes"; como é óbvio, em estados do mundo em que eu não existisse, aquelas proposições seriam verdadeiras. As negações de "Estou a pensar" e de "Existo" derrotam-se a si próprias do ponto de vista pragmático, auto-falsificam-se no preciso momento em que são ditas, e não devido à sua forma lógica; podemos compará-las à proposição expressa pela frase "Estou ausente" dita por ti quando o teu professor de filosofia faz a chamada. Assim, sempre que alguém diz ou mentalmente concebe "Estou a pensar" e "Existo", as proposições expressas por estas frases terão de ser verdadeiras. Mas estas não são verdades lógicas como "Chove ou não chove" ou verdades analíticas como "Nenhum solteiro é casado"; são verdades pragmáticas, as quais se definem por se auto-falsificarem quando alguém afirma a sua negação.

Questões de revisão
3. Será que Descartes é realmente um céptico? Porquê?
>Resposta

4. De que modo Descartes obteve conhecimento do Cogito?
Deus

Chegado aqui, Descartes pode dizer que tem certezas na primeira pessoa acerca de si próprio como eu pensante. Mas isto é pouco. Subsiste a questão de saber se o mundo exterior existe. Daí que Descartes precise de uma ligação ou "ponte" que lhe permita vencer a distância entre este eu pensante e o mundo. A premissa "Deus existe e não é enganador" irá desempenhar esse papel. Ora, a existência deste Deus que não é enganador precisa, por sua vez, de ser provada. Sem essa prova não há maneira de refutar o cepticismo. Descartes teria nesse caso apenas umas quantas verdades acerca de si próprio e nada mais seria seguro. Destruindo a hipótese do génio maligno ao estabelecer a existência de um Deus sumamente bom e sábio, Descartes obtém a garantia absoluta de que o mundo é como pensamos que é, na condição de usarmos corretamente as faculdades com que Deus equipou o homem.
Para o fazer, Descartes apresenta argumentos a priori a favor da existência de Deus que supõe conclusivos. Esses argumentos são a priori porque se baseiam na ideia de Deus que Descartes descobre em si apenas com a ajuda da razão. O facto de Descartes não ter optado por argumentos a posteriori a favor da existência de Deus quando os tinha à sua disposição, poderá mais uma vez indicar a importância que depositava no uso da razão. Neste contexto, esses argumentos não serão analisados. O que é importante saberes é que, segundo Descartes, também este conhecimento de Deus resulta do raciocínio, e não da experiência; Deus, tal como o Cogito, não pode ser provado recorrendo à observação. Nenhum indício sensorial ou experimental pode mostrar que as proposições "Existo como ser pensante quando estou a pensar" e "Deus existe" são verdadeiras, ou justificar que acredites nelas.

O mundo exterior

Sustentado o mundo no pilar de Deus, Descartes irá tratar das coisas físicas. A questão que o ocupa é a de saber qual é a natureza das coisas físicas. Para isso, sujeita à nossa consideração o seguinte exemplo. Temos um pedaço de cera com uma certa forma, tamanho, cor, perfume; através dos sentidos, temos experiência destas propriedades; mas se o aproximares do fogo, estas propriedades alteram-se, embora o pedaço de cera seja o mesmo. Logo, estas propriedades não pertencem à natureza ou essência da cera. Isto quer dizer que a experiência não me permite captar a essência da cera e o mesmo sucede com qualquer outra coisa física. Deste modo, só o raciocínio descobre a essência da cera; assim, a cera muda de forma, tamanho, cor, perfume e o mesmo se dirá de qualquer outra propriedade de que temos experiência através dos sentidos; mas se deixar de ser uma coisa extensa no espaço deixará de ser o que é. Logo, a extensão pertence à sua essência e à de qualquer outra coisa física.

Questões de revisão
5. Por que razão Deus é conhecido a priori?
6. As propriedades essenciais dos objectos da experiência podem ser conhecidos por intermédio dos sentidos?

Conclusão
O que somos e o que temos perante nós e como o conhecemos? Temos um eu pensante que funciona sobretudo de maneira dedutiva, um mundo cuja essência é extensão e um Deus que é a garantia do bom uso das nossas capacidades racionais. Nas suas propriedades essenciais, o eu e o mundo são conhecidos a priori. 

Questões de discussão
7. Descartes estabelece a existência de Deus para justificar a confiança nas nossas capacidades racionais; mas, por sua vez, as nossas capacidades racionais justificam a existência de Deus. Este argumento é questionável? Porquê?
8. Discute a seguinte afirmação: "Se Descartes levasse consistentemente a dúvida filosófica até ao fim, a própria noção de dúvida seria suspensa e o seu pensamento ficaria paralisado."


|Faustino Vaz, Crítica na Rede / Arte de Pensar
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Esquemas:



Descartes - O Filme

Descartes: uma introdução