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domingo, 2 de outubro de 2016

A Identidade Pessoal



“Entro no teletransportador. Já tinha ido a Marte antes, mas só pelo método antigo, uma viagem numa nave espacial que durava várias semanas. Esta máquina enviar-me-á à velocidade da luz. Só tenho que pressionar o botão verde. Como outros, estou nervoso. Irá resultar? Eu lembro-me do que me disseram que devia esperar. Quando pressionar o botão, devo perder a consciência durante cerca de uma hora. O scanner aqui na Terra irá destruir o meu cérebro e o meu corpo, enquanto registará o estado exato de todas as minhas células. Depois irá transmitir essa informação via rádio. Viajando à velocidade da luz, a mensagem levará três minutos a chegar até ao Replicador em Marte. Este irá então criar, com nova matéria, um cérebro e um corpo exactamente como os meus. Será nesse corpo que eu acordarei.

Embora acredite que será isso que acontecerá, ainda hesito. Mas então lembro-me de ver a minha mulher sorrir divertida quando, hoje ao pequeno almoço, lhe revelei o meu nervosismo. Como ela me lembrou, ela já foi teletransportada muitas vezes é não há nada de errado com ela. Pressiono o botão. Como esperado, perco e, parece que quase de imediato, retomo a consciência, mas num cubículo diferente. Ao examinar o meu novo corpo não encontro nenhuma mudança. Mesmo o corte no meu lábio superior, que fiz hoje de manhã ao barbear-me, ainda está lá.

Passam-se vários anos, durante os quais sou teletransportado inúmeras vezes. Estou de novo no cubículo, pronto para mais uma viagem até Marte. Mas quando pressiono o botão verde, não perco a consciência. Ouve-se um zumbido intenso, depois silêncio. Saio do cubículo e digo ao operador: “Isto não está a funcionar. O que é que eu fiz de errado?”

“Está a trabalhar”, ele respondeu, entregando-me um cartão impresso. Este tem escrito: “O novo scanner regista as suas características sem destruir o seu cérebro e o seu corpo. Esperamos que você aprecie as oportunidades que este avanço técnico proporciona”.

O operador diz-me que eu sou uma das primeiras pessoas a usar o novo scanner. Ele acrescenta que, se eu esperar uma hora, poderei usar o intercomunicador para falar comigo em Marte.

“Espere aí”, retorqui, “se estou aqui não posso estar também em Marte”. Alguém tossiu educadamente, um homem de bata branca que me pede para falar em privado. Vamos para o seu escritório, onde me diz para me sentar e fica parado por algum tempo olhando-me. Passado um pouco diz: “receio que estejamos a ter problemas com o novo scanner. Ele regista as suas características de forma tão  apurada quanto o antigo, como verá quando falar consigo em Marte. Mas parece que tem estado a danificar o sistema cardíaco das pessoas que são submetidas ao procedimento. Julgando pelos resultados obtidos até agora, embora você esteja bastante saudável em Marte, aqui na Terra deverá esperar uma falha cardíaca fatal nos próximos dias”.

O operador mais tarde chama-me ao intercomunicador. No ecrã vejo-me como acontece quando me vejo ao espelho todas as manhãs. Mas há duas diferenças. No ecrã a minha imagem não aparece invertida. E, enquanto estou aqui calado, posso ver-me no estúdio em Marte a começar a falar. [...]

Como a minha réplica sabe que estou prestes a morrer, tenta consolar-me com os mesmos pensamentos com que tentei há pouco tempo consolar um amigo que estava a morrer. É triste descobrir, do lado do receptor, o quanto esses pensamentos são desconsoladores. A minha réplica assegura-me que irá continuar a viver a minha vida onde a deixei. Ama a minha mulher e juntos eles cuidarão dos meus filhos. E acabará o livro que estou a escrever. Para além de ter todos os meus rascunhos, tem todas as minhas intenções. Tenho que admitir que ele pode acabar o meu livro tão bem quanto eu poderia. Todos estes factos consolam-se um pouco. Morrer sabendo que terei uma réplica a continuar a minha vida não é tão mau quanto, simplesmente, morrer. Mesmo assim em breve irei perder a consciência, para sempre.”
Derek  Parfit, Reasons an Persons, cap. 10.


Atividades:

1. Na primeira experiência de teletransporte, o homem que é reconstituído em Marte é o mesmo que é desintegrado na Terra? Porquê?
2. No teletransporte com o novo scanner, ficamos com a mesma pessoa em dois locais diferentes ou com duas pessoas? Justifique.
3. Se a réplica for exatamente igual ao replicado, quando este sofrer o ataque cardíaco, o seu eu poderá continuar a existir na réplica?
4. O que é que se perde quando o replicado morrer? Explicite a sua resposta.
5. O que é que nos faz ser quem somos? Fundamente a sua resposta apresentando razões da sua autoria. Deve procurar argumentar de forma exaustiva.

Zombies e Mutantes: o epifenomenalismo


“A possibilidade dos mortos-vivos. Os mortos-vivos parecem-se com o leitor e comigo e comportam-se como o leitor e eu nos comportamos. A natureza física dos mortos-vivos não se distingue da nossa. Se o leitor abrisse o cérebro de um morto-vivo, chegaria à conclusão de que funciona exatamente do mesmo modo como funciona o seu cérebro ou o meu. Se o leitor picar um morto-vivo, ele soltará um “Ai!” exatamente como eu ou o leitor. Mas os mortos-vivos não têm consciência. Não há ‘fantasma’ algum dentro deles.

Porque se os mortos-vivos se parecem exatamente consigo e comigo e se comportam tal como nós, não há maneira de saber quais de nós são mortos-vivos e quais de nós têm consciência tal como o leitor e eu. Ou, pelo menos, tal como eu, uma vez, tendo considerado a possibilidade dos mortos-vivos, dou-me conta que de que não posso estar realmente seguro acerca de si, leitor, nem de qualquer outra pessoa. Talvez a consciência seja uma realidade extremamente rara correlata de um complexo sistema de alma e corpo. Talvez eu seja o único exemplo disso – talvez todas as outras pessoas sejam mortos-vivos.

Eis outra das maneiras como as coisas poderão ser:

A possibilidade dos mutantes. Os mutantes parecem-se com o leitor e comigo e comportam-se como eu e o leitor nos comportamos. A natureza física dos mutantes não se distingue da nossa. Se o leitor abrisse o cérebro de um mutante, chegaria à conclusão de que ele funciona exatamente do mesmo modo que o seu cérebro ou o meu. Se o leitor picar um mutante, ele soltará um “Ai!”, exatamente como eu ou o leitor.

Ao contrário dos mortos-vivos, os mutantes têm consciência. Há um fantasma dentro deles. Mas os acontecimentos que ocorrem no fantasma do mutante não são como é de esperar. Um mutante que seja picado, por exemplo, pode ter experiência de um acontecimento mental, como ouvir um dó central de um clarinete. Também ele soltará um “Ai!”, pois, dado que o cérebro dele funciona como o nosso e ele se comporta como nós, ser picado com um alfinete inicia processos que causam modificações que levam por fim a que ele solte um “Ai!”, tal como todos nós. Quando ele, neste caso, ouvir um dó central de um clarinete, talvez sinta uma dor horrível, mas isso não fará mais do que fazê-lo sorrir beatificamente. Um mutante que veja um marco de correio vermelho poderá vê-lo como se fosse amarelo; um mutante que veja narcisos poderá vê-los como se fossem azuis. Um acontecimento que ocorra na consciência de um mutante não apresenta qualquer relação com os acontecimentos que ocorrem na mente do leitor ou na minha. Ou, pelo menos, qualquer relação com os acontecimentos que ocorrem na minha mente. Pois, uma vez que considerei a possibilidade dos mutantes, dou-me conta de que não posso estar realmente seguro acerca de si, leitor, nem de qualquer outra pessoa. Talvez todas as outras pessoas, quando comparadas comigo, sejam mutantes.

O leitor poderá dizer: pois bem, vamos supor que essas são possibilidades completamente em aberto. Talvez eu jamais possa saber como é realmente a mente de outra pessoa, que acontecimentos mentais ocorrem nela ou, até mesmo, se ela tem realmente alguma vida mental. Mas não poderei eu supor, ainda assim, que as vidas mentais das outras pessoas são muito parecidas com a minha? Não poderei razoavelmente usar-me a mim próprio como um modelo para tudo o resto? Sendo uma hipótese ou conjectura, não será grande coisa como conhecimento, mas talvez seja uma conjectura razoável a fazer. Este é o chamado «argumento por analogia a favor da existência de outras mentes”. O problema deste argumento é parecer incrivelmente fraco. Como o grande filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) perguntava “ e como posso eu, de um modo tão irresponsável, generalizar a partir de um caso?”. O simples facto de num caso – o meu próprio – haver, talvez por sorte, uma vida mental de um tipo particular e definido, associado a um cérebro e a um corpo, parece ser um fundamento muito frágil para se supor que há exatamente a mesma associação em todos os outros casos. Se eu tiver uma caixa com uma carocha lá dentro, isso apenas me dá motivos muito fracos para supor que qualquer outra pessoa que tenha uma caixa tem também uma carocha dentro dela.

O leitor poderá sentir-se inclinado a afastar a possibilidade dos mortos-vivos e dos mutantes. Poderá considerar que elas fazem parte de fantasias filosóficas, irreais ou, em qualquer caso, inverificáveis. Mas isto não é uma reação inteligente. As possibilidades são de facto inverificáveis. Os neurofisiólogos, por exemplo, não podem encontrar experiência consciente do modo como encontram neurónios, sinapses e padrões de actividade cerebral – (…) não podem mostrá-las [experiências conscientes] num monitor/tela (screen) aos estudantes num anfiteatro da escola. Por que razão falam tanto os filósofos de possibilidades extravagantes que as outras pessoas têm todo o prazer em ignorar (uma das coisas que fazem da filosofia uma área proibitiva e lhe dá má reputação)? A razão está em que as possibilidades são usadas para pôr à prova uma concepção acerca de como são as coisas.

Considere-se outra vez o morto-vivo. O seu funcionamento físico é idêntico ao nosso. Reage ao mundo do mesmo modo. Os seus projetos realizam-se ou falham da mesma maneira: a saúde dele depende das mesmas variáveis de que depende a nossa. Ele pode rir nos sítios certos e chorar em tragédias apropriadas. Pode ser divertido estar com ele. Assim sendo, que diferença faz a falta de consciência? Ou, pondo as coisas ao contrário, o que está a consciência por hipótese a fazer em nós? Devemos concluir que em nós, que não somos mortos-vivos, há acontecimentos mentais, mas não fazem nada? Será a consciência como o zunido do motor – algo que não faz parte da máquina que faz acontecer as coisas? (Esta teoria é conhecida por «epifenomenalismo»). Mas, se as mentes não fazem coisa alguma, por que razão evoluíram? Por que razão tratou a natureza de fazer mentes?”
Simon Blackburn, Think, Oxford University Press, 1999, pp.53-57; trad. port. Desidério Murcho/ Pedro Santos, Lisboa, Gradiva, 2001, pp. 61-66.

Epifenomenalismo – teoria segundo a qual as actividades mentais, os fenómenos psíquicos, são meros produtos de processos neurais e não possuem influência causal sobre o curso dos fenómenos físicos ou mentais. (Houaiss)
“A consciência estaria ligada ao mecanismo do corpo, simplesmente como um produto do seu trabalho, sendo completamente desprovida do poder de modificar esse trabalho, tal como um apito que acompanha o trabalho de uma locomotiva não tem influência sobre a sua maquinaria.” (Thomas Huxley, Method and Results. Collected Essays I, London, Macmillan, 1898, p.240 e sgs.).

Texto recolhido no site:

http://filosofiadareligiao.no.sapo.pt/

sábado, 1 de outubro de 2016

Como é ser um morcego?



Penso que todos acreditamos que os morcegos têm experiências. Afinal de contas, são mamíferos e não se pode duvidar que eles tenham experiências sem duvidar que os ratos, os pombos ou as baleias tenham experiências. Escolhi os morcegos em vez de vespas ou solhas pois, quando que se desce demasiado fundo na árvore filogenética, as pessoas perdem gradualmente a crença de que possa existir lá qualquer experiência. Os morcegos, embora mais próximos de nós do que essas outras espécies, apresentam contudo uma gama de actividades e uma constituição sensorial tão diferentes das nossas que o problema que quero pôr se torna excepcionalmente evidente (embora também se pudesse pôr em relação a outras espécies). Mesmo sem a ajuda da reflexão filosófica, qualquer pessoa que tenha passado algum tempo num espaço fechado com um morcego assustado sabe como é confrontar-se com uma forma de vida fundamentalmente estranha.

Afirmei que o que está na origem da crença de que os morcegos têm experiências é o facto de haver algo que é como ser um morcego. Agora sabemos que a maior parte dos morcegos (os michrochiroptera, para ser mais exacto) percepcionam o mundo exterior primordialmente por meio de sonar ou ecolocalização, detectando as reverberações dos seus guinchos curtos, subtilmente modulados e de alta frequência nos objectos ao seu alcance. Os seus cérebros são constituídos de forma a correlacionar os impulsos que libertam com os ecos subsequentes e a informação assim adquirida permite-lhes discriminar distâncias, tamanhos, formas, movimento e texturas com uma precisão comparável à da visão humana. Mas o sonar de um morcego, ainda que obviamente uma forma de percepção, não é operacionalmente semelhante a nenhum dos sentidos que possuímos e não temos qualquer razão para supor que seja subjectivamente como algo que possamos experienciar ou imaginar. Isto parece criar dificuldades relativamente à noção de como é ser um morcego. Temos que tentar descobrir se haverá algum método que nos permita extrapolar para a vida interior de um morcego a partir do nosso próprio caso5 e, se isso não for possível, temos que pensar em métodos alternativos que nos possam permitir a compreensão dessa noção.

A nossa própria experiência fornece-nos o material básico para a nossa imaginação, sendo o seu alcance por isso limitado. Não vale a pena tentar imaginar que temos uma membrana nos braços que nos permite voar no crepúsculo e na alvorada e apanhar insectos com a boca, ou que temos uma visão muito pobre e que percebemos o mundo à nossa volta com a ajuda de um sistema de sinais sonoros de alta frequência reflectidos, nem tão pouco nos vale a pena imaginar que passamos o dia pendurados de cabeça para baixo num sótão. Na medida em que posso imaginar isto (o que não é muito), isto só me diz como seria para mim comportar-me como um morcego se comporta. Mas essa não é a questão. Eu quero saber como é para um morcego ser um morcego. Mas quando tento imaginar tal, fico limitado aos recursos que a minha mente tem para me oferecer, e esses recursos são inadequados para essa tarefa. Não posso alcançar esse conhecimento imaginando possíveis adições à minha experiência actual, nem imaginando subtracções graduais à mesma, nem sequer ainda imaginando combinações de adições, subtracções e modificações.

Ainda que eu conseguisse ver e comportar-me como uma vespa ou como um morcego sem mudar a minha constituição fundamental, as minhas experiências em nada seriam como as experiências desses animais. Por outro lado, é legítimo duvidar se a suposição que eu deveria possuir a constituição neurofisiológica interna de um morcego faz qualquer sentido. Mesmo que eu pudesse transformar-me gradualmente num morcego, nada na minha actual constituição me permite imaginar como seriam as minhas experiências num tal estado futuro da minha metamorfose. O melhor testemunho viria das experiências dos morcegos, se pudéssemos ao menos saber como elas são.

Assim, se a extrapolação a partir do nosso próprio caso está ligada à nossa ideia de como é ser um morcego, então essa extrapolação permanece forçosamente incompletável. Não podemos ter mais do que uma concepção esquemática de como é. Por exemplo, podemos atribuir tipos gerais de experiência baseando-nos para tal na constituição e no comportamento do animal. É deste modo que descrevemos o sonar de um morcego como uma forma de percepção frontal tridimensional; pensamos que os morcegos sentem alguns tipos de dor, medo, fome, desejo sexual, e pensamos que eles possuem outras formas de percepção que nos são mais familiares para além do sonar. Mas pensamos também que estas experiências têm em cada caso um carácter subjectivo específico que está para além da nossa capacidade de concepção. E, a haver vida consciente algures noutras partes do universo, é bem provável que algumas das suas formas sejam indescritíveis, ainda que recorramos aos termos experienciais mais gerais de que dispomos. (Aliás, o problema não se confina a casos exóticos, pois verifica-se entre duas pessoas. Por exemplo, o carácter subjectivo da experiência de uma pessoa surda e cega de nascença é-me inacessível e o carácter subjectivo da minha experiência é-lhe provavelmente também inacessível. Isso não nos impede de acreditar que a experiência do outro tem um tal carácter subjectivo.)

Se alguém estiver tentado a negar que possamos acreditar na existência de factos como este cuja natureza exacta não podemos conceber de maneira nenhuma, então esse alguém deverá reflectir sobre o facto de que, ao contemplarmos os morcegos, estamos na mesma posição em que morcegos inteligentes ou marcianos7 estariam se tentassem conceber como é sermos nós. A constituição das suas próprias mentes tornar-lhes-ia essa tarefa impossível, mas nós sabemos bem que eles estariam completamente errados se concluíssem que não há algo tão específico como sermos nós: que somente alguns tipos gerais de estados mentais nos poderiam ser atribuídos (talvez a percepção e o apetite fossem conceitos em comum entre nós, ou talvez não). Sabemos que estariam errados ao tirar essa conclusão céptica pois sabemos como é sermos nós. E sabemos que, embora a nossa consciência possua uma enorme variedade e complexidade e que, embora não tenhamos o vocabulário para a descrevermos adequadamente, o seu carácter subjectivo é extremamente específico e em certos aspectos descritível em termos que só podem ser compreendidos por outras criaturas como nós. O facto de que não podemos esperar vir alguma vez a incluir na nossa linguagem uma descrição detalhada da fenomenologia dos marcianos ou dos morcegos não deve levar-nos a pôr de lado como sem sentido a tese que defende que os morcegos e os marcianos têm experiências completamente comparáveis às nossas em abundância de pormenores. Seria óptimo se alguém conseguisse desenvolver conceitos e uma teoria que nos permitissem pensar acerca dessas coisas, mas uma tal compreensão pode estar-nos permanentemente vedada devido aos limites que a nossa natureza nos impõe. E negar a realidade ou a significação lógica daquilo que nunca poderemos descrever ou compreender é a forma mais evidente de irracionalidade.

Isto traz-nos até às fronteiras de um tópico que exige muito mais tratamento do que aquele que eu aqui lhe posso dar, a saber, a relação entre factos por um lado e esquemas conceptuais ou sistemas representacionais por outro. O meu realismo acerca do domínio subjectivo em todas as suas formas implica a minha crença na existência de factos que estão para além dos conceitos humanos. É sem dúvida possível a um ser humano acreditar que há factos para a representação ou a compreensão dos quais os humanos nunca possuirão os conceitos necessários. De facto, seria estupidez duvidar disto, dado o carácter limitado das possibilidades humanas. Afinal de contas, teria havido números transfinitos mesmo que toda a humanidade tivesse sido exterminada pela Peste Negra antes de Cantor os ter descoberto. Mas podemos ainda pensar que há factos que nunca poderão ser representados ou compreendidos pelos seres humanos, ainda que a nossa espécie dure para sempre, simplesmente porque a nossa estrutura não nos permite trabalhar com os conceitos necessários. Esta impossibilidade pode mesmo até ser testemunhada por outros seres, embora não seja evidente que a existência de tais seres, ou a possibilidade da sua existência, seja uma condição prévia para dar sentido à hipótese de que há factos que são inacessíveis aos seres humanos. (Afinal de contas, a natureza dos seres que têm acesso aos factos inacessíveis aos humanos é presumivelmente também ela um facto inacessível aos humanos.) A reflexão sobre o como é ser um morcego parece levar-nos, deste modo, à conclusão de que há factos que não consistem na verdade de proposições exprimíveis numa linguagem humana. Podemos sentir-nos obrigados a reconhecer a existência de tais factos sem sermos capazes de os enunciar ou compreender.

Thomas Nagel
Tradução de Luís M. S. Augusto