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Há que Potenciar a Razão
“A razão
não é simplesmente uma espécie de tendência automática. A razão está em boa
medida baseada no confronto com os outros, quer dizer, raciocinar é uma
tendência natural baseada, ou para nós fundada, no uso da palavra, no uso da
linguagem; e o uso da linguagem é o que nos obriga a interiorizar o nosso papel
social. A linguagem é sociedade interiorizada
O elemento
racional está em todos os nossos comportamentos, faz parte das nossas mais
elementares funções mentais. Se alguém nos disser que ao meio-dia comeu uma
feijoada e que a paella estava muito boa, imediatamente dizemos:
"não pode ser; ou feijoada ou paella". O próprio acto de nos
darmos conta de que há coisas incompatíveis, de que as coisas não podem ser e
não ser ao mesmo tempo, ou que as coisas contraditórias não podem afirmar-se
simultaneamente, ou que tudo deve ter alguma causa, supõe exercícios de
racionalidade.
Esse tipo
de mecanismos elementares estão em todos nós e não poderíamos sobreviver sem
eles. Há em todos os lados, em todas as culturas e em todos os tempos algumas
disposições naturais para o desenvolvimento de modelos racionais.
Uma das
características da razão é que serve para se ser autónomo, quer dizer, os
indivíduos que usam a sua razão são mais autónomos que as pessoas que não
desenvolveram a sua capacidade racional. É evidente que autonomia não quer
dizer isolamento, falta de solidariedade, solipsismo, mas serve pelo menos para
cada qual se auto-controlar, se auto-dirigir, optar entre opções diferentes,
proteger as coisas que se consideram importantes, empreender empreendimentos,
etc. Creio que a autonomia é fundamental, e essa autonomia é exactamente o que
a razão permite. O não desenvolvimento da razão faz-nos dependentes. De facto,
as crianças muito pequenas e as pessoas que, por qualquer desgraça, perderam alguma
das faculdades racionais a primeira coisa de que sofrem é uma dependência dos
outros.
Precaver-se
contra explicações racionais, guardar chaves da capacidade racional é a
melhor maneira de manter independência face aos outros. Por isso há que
procurar potenciar a capacidade racional de assumir inclusive as limitações do
nosso próprio conhecimento. Uma das características da razão é assumir os
limites do conhecimento e não acreditar que, por mera acumulação, se pode
estender até ao infinito.
Creio que
uma das principais missões da razão é estabelecer os diversos campos de verdade
que existem. É claro que a razão tem que ver com a verdade. A ideia actual de
que nada é verdade é bastante discutível.
Evidentemente,
da verdade absoluta, com maiúscula e um nimbo de luz à volta, ao facto de que
nada seja verdade, e que portanto qualquer coisa é mais ou menos tão igualmente
certa quanto outra, há um longo percurso. Quer dizer, a razão busca verdades,
opiniões mais reais, mais próximas ao real, com mais carga de realidade que
outras. Não está igualmente próxima da realidade qualquer tipo de forma de ver,
de entender, de operar. A razão é essa busca de verdade, essa busca de maior
realidade, com tudo o que a descoberta da realidade comporta.
É
importante estabelecer campos diferentes de verdade. A verdade que se pode
encontrar no campo das matemáticas não é a mesma do campo da história. Há
campos diferentes que é importante estabelecer. A razão serve para estabelecer
esses campos de verdade diferentes. Às vezes, por exigir a verdade que pertence
a um campo a outro campo diferente, perdemos a substância racional que pode
haver numa proposta explicativa.
Vivemos
numa época em que se ouve a opinião, para mim disparatada, de que todas as
opiniões são respeitáveis. Como é que podem ser respeitáveis todas as
opiniões?! Se algo caracteriza as opiniões é o facto de não serem todas
respeitáveis. Se todos tivéssemos acreditado que todas as opiniões são
respeitáveis, ainda não teríamos descido da primeira árvore. Todas as pessoas
são respeitáveis, sejam quais forem as suas opiniões, mas nem todas as opiniões
são respeitáveis. Uma pessoa que diz que dois e dois são cinco, não pode ser
encarcerada, não pode ser objecto de nenhuma represália, mas o que é evidente é
que a ideia de que dois e dois são cinco não é tão respeitável como a ideia de
que dois e dois são quatro.
A
mitificação da opinião própria conduz a considerá-la como algo que se subtrai à
discussão, em vez de algo que se põe sobre a mesa, algo que não é nem meu nem
teu mas que temos que discutir – discutere é, em latim, ver se uma
árvore tem raízes, se as coisas têm raízes –, ver se está enraizada em algo.
Quando se propõe uma opinião, não se propõe como quem se fecha num castelo,
como quem se encouraça, não se supõe que todas as opiniões são igualmente
válidas, mas pelo contrário que estão abertas a confrontar-se com provas e
dados.
Se não,
não são opiniões, são dogmas. A ideia de que todas as opiniões valem o mesmo,
de que a opinião do aluno do infantário vale tanto, em questões matemáticas,
como a do professor de aritmética, não é verdade.
A posição
autenticamente livre, aberta e revolucionária é sustentar que é a razão que
vale e que as opiniões devem submeter-se-lhe, e não que são as opiniões que por
si mesmas, por ter uma pessoa por trás, se convertem em invioláveis porque a
pessoa o é. A razão não se nota somente quando alguém argumenta como também
quando alguém compreende argumentos. Ser racional é poder ser persuadido por
argumentos, não apenas persuadir com argumentos. Ninguém pode aspirar à
condição de racional se as suas razões, as vê muito claras, mas nunca vê
claramente nenhuma razão alheia. Ver as razões dos outros faz parte,
necessariamente, da racionalidade. Aceitar ter sido persuadido por razões
costuma ser muito mal visto, como se dar mostras de racionalidade fosse algo
muito mau, quando o facto de alguém mudar de opinião demonstra que a razão lhe
continua a funcionar.
A razão
cobre um campo que abarca o meramente racional, no qual nos entendemos com as
coisas o melhor possível, e o razoável, no qual nos entendemos com os sujeitos.
É razoável incluir na minha própria a razão própria de outro sujeito, a
possibilidade de aceitar os seus fins, de aceitar os seus objectivos, a sua
própria busca da experiência como parte da minha própria razão.
Não
vivemos só num mundo de objectos, mas também de sujeitos. Não entende
racionalmente o mundo quem crê que tudo são objectos, do mesmo modo que a chave
do sentido é o que se compartilha com outros sujeitos.”
Fernando Savater
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