terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

A importância da Razão

A idade moderna ficou marcada pela revolução científica e tecnológica iniciada no Renascimento e que culminou com o Iluminismo do Século XVIII, o século das 'Luzes'. Os filósofos iluministas pretenderam emancipar a humanidade face à superstição e ao obscurantismo, colocando a Razão no centro do mundo, considerando que todos os assuntos relacionados com a existência humana devem ser analisados pela Razão e todas as tomadas de decisão devem assentar na Razão. A Razão seria, então, a bússola da humanidade, o critério de avaliação de tudo o que fosse determinante para a humanidade. Este movimento está na origem da Constituição dos Estados Unidos da América e da Revolução Francesa (1789) que marca a viragem histórica do absolutismo para as democracias modernas, assentes nos Direitos Humanos, valores cuja universalização se tornou um imperativo racional. Contudo, este movimento não se fez sem violência - a Revolução Francesa foi um movimento extremamente sangrento (basta lembrar-nos do que ficou conhecido como o período do Terror), mas o apelo à Razão enquanto critério último de valoração é ainda hoje válido e trata-se do paradigma civilizacional que tem mais hipóteses de instauração de uma ordem mundial pacífica. É de notar que os totalitarismos se afirmam como uma recusa dos valores da modernidade (a universalidade dos Direitos do Homem e o primado da argumentação racional como forma de resolução de conflitos).

- A liberdade, a igualdade e a fraternidade são valores universais e invioláveis.

"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade." (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 1º).

Isto significa que a Ética deve ser a principal fonte de orientação dos seres humanos as suas decisões fundamentais, tanto a nível individual como coletivo. 
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Há que potenciar a Razão

A razão não somente é idêntica em todos os campos, e creio que uma das principais missões da razão é estabelecer os diversos campos de verdade que existem. É claro que a razão tem que ver com a verdade. A ideia pós-moderna de que nada é verdade… Evidentemente, da verdade absoluta, com maiúscula e um nimbo de luz à volta, ao facto de que nada seja verdade, e que portanto qualquer coisa é mais ou menos tão igualmente certa quanto outra, há um longo percurso. Quer dizer, a razão busca verdades, opiniões mais reais, mais próximas ao real, com mais carga de realidade que outras. Não está igualmente próxima da realidade qualquer tipo de forma de ver, de entender, de operar. A razão é essa busca de verdade, essa busca de maior realidade, com tudo o que a descoberta da realidade comporta. Nem sempre a descoberta da realidade é gratificante, porque, enquanto que os nossos sonhos, os nossos anseios, posto que fomos nós quem os inventou, são-nos sempre favoráveis ou gratificantes, a razão dirige-se a uma realidade que não depende de nós, que não nos compraz, que não espera agradar-nos. Portanto, às vezes as descobertas da realidade são bastante mais desagradáveis que as ilusões que sobre ela possamos construir.

É importante estabelecer campos diferentes de verdade. A verdade que se pode encontrar no campo das matemáticas não é a mesma do campo da história. Há campos diferentes que é importante estabelecer.(...) Há campos de verdade em que os termos operam de uma maneira diferente conforme os lados. Se falamos, por exemplo, do Sol, num registo podemos dizer que é um astro de grandeza mediana, com umas características determinadas; noutro registo podemos dizer também que o Sol é um deus, uma divindade, para alguém que o adore ou siga a teoria heliocêntrica. Podemos dizer também que o Sol é o rei do nosso sistema solar, e dessa forma introduzimos uma linha de metáfora, de comparações literárias, etc. Em cada um desses registos há as suas próprias verdades. Quer dizer, é verdade que, entendendo rei num determinado sentido, o Sol é o rei do Sistema Solar; pois é, como o rei, o astro mais importante, central, que determina a existência de vida ou a não existência nos outros astros. Se o entendermos em sentido literal e pensarmos que o Sol é o rei dinasticamente coroado, não entenderemos o assunto.

A razão serve para estabelecer esses campos de verdade diferentes. Às vezes, por exigir a verdade que pertence a um campo a outro campo diferente, perdemos a substância racional que pode haver numa proposta explicativa. Vem-me à memória um episódio que aconteceu a Caietano López, bom amigo e além disso catedrático de Física e especialista em determinadas questões, e que uma vez, há já uns anos, numa altura em que era moda falar do big bang, os jornalistas começaram a telefonar para El País, onde então trabalhávamos, a perguntar o que era o big bang. Depois de falar com um deles, Caietano estava espantado porque o jornalista lhe tinha dito "está bem, mas diga-me se existe ou não existe Deus no big bang", ao que, evidentemente, não pôde responder. Esse salto de um campo, em que se está a traçar um tipo de verdades, a outro campo em que as verdades são diferentes, é tentar misturar coisas que não têm nada que ver, estar constantemente a baralhar os planos e a buscar um tipo de verdade onde não pode ser encontrada. É um dos perigos que temos no caminho especulativo actual. Não estamos muito seguros de quais são os campos em que se podem pedir determinadas verdades. Preparar ou educar para a razão é também ajudar ou ensinar a discernir que tipo de verdades e que tipo de requisitos de verdade se podem exigir em cada um dos campos, e que tipo de níveis de aceitação da verdade.

Outra das obrigações no desenvolvimento da razão é o confronto com a ideia da opinião como última ratio de tudo o que há. Vivemos numa época em que se ouve a opinião, para mim disparatada, de que todas as opiniões são respeitáveis. Como é que podem ser respeitáveis todas as opiniões?! Se algo caracteriza as opiniões é o facto de não serem todas respeitáveis. Se todos tivéssemos acreditado que todas as opiniões são respeitáveis, ainda não teríamos descido da primeira árvore. Todas as pessoas são respeitáveis, sejam quais forem as suas opiniões, mas nem todas as opiniões são respeitáveis. Uma pessoa que diz que dois e dois são cinco, não pode ser encarcerada, não pode ser objecto de nenhuma represália, mas o que é evidente é que a ideia de que dois e dois são cinco não é tão respeitável como a ideia de que dois e dois são quatro. A mitificação da opinião própria conduz a considerá-la como algo que se subtrai à discussão, em vez de algo que se põe sobre a mesa, algo que não é nem meu nem teu mas que temos que discutir – discutere é, em latim, ver se uma árvore tem raízes, se as coisas têm raízes –, ver se está enraizada em algo. Quando se propõe uma opinião, não se propõe como quem se fecha num castelo, como quem se encouraça, não se supõe que todas as opiniões são igualmente válidas, mas pelo contrário que estão abertas a confrontar-se com provas e dados. Se não, não são opiniões, são dogmas. A ideia de que todas as opiniões valem o mesmo, de que a opinião do aluno do infantário vale tanto, em questões matemáticas, como a do professor de aritmética, não é verdade. E a ideia de que é um sinal de democracia ou de liberdade que qualquer ideia valha tanto como qualquer outra e que é indiferente que quem a sustenta ignore os mecanismos do assunto, não possa aduzir nenhuma prova, não tenha dados, seja incapaz de raciocinar a sua postura, que essa vale tanto como a opinião de quem conhece o assunto, parece-me preocupante.

No entanto, há uma mitificação da opinião igual a essa espécie de encastelamento de quem se sente ofendido quando contrariado, como se as opiniões se pudessem ferir, e como se cada qual pudesse sentir feridas as suas opiniões. A ideia de que as opiniões formam um corpo connosco, e que o dizer "é a minha opinião" dá um grau de razão superior ao da opinião do vizinho, parece-me preocupante, sobretudo porque se considera um sinal de liberalidade intelectual reconhecer as opiniões de cada um, quando a única liberalidade que existe é reconhecer que as opiniões devem estar fundadas na razão e que ninguém tem direito a expor as suas opiniões se não tem razões para as justificar. A posição autenticamente livre, aberta e revolucionária é sustentar que é a razão que vale e que as opiniões devem submeter-se-lhe, e não que são as opiniões que por si mesmas, por ter uma pessoa por trás, se convertem em invioláveis porque a pessoa o é.

Ensinar estas coisas e ensinar a diferença que há entre o respeito pelas pessoas e os modelos de uma capacidade de escuta, a razão não se nota somente quando alguém argumenta como também quando alguém compreende argumentos. Ser racional é poder ser persuadido por argumentos, não apenas persuadir com argumentos. Ninguém pode aspirar à condição de racional se as suas razões, as vê muito claras, mas nunca vê claramente nenhuma razão alheia. Ver as razões dos outros faz parte, necessariamente, da racionalidade. Aceitar ter sido persuadido por razões costuma ser muito mal visto, como se dar mostras de racionalidade fosse algo muito mau, quando o facto de alguém mudar de opinião demonstra que a razão lhe continua a funcionar. O mundo está cheio de pessoas que se orgulham de pensar o mesmo que pensavam aos 18 anos; provavelmente não pensavam nada, nem agora nem aos 18 anos, e graças a isso mantêm-se invulneráveis a todo o tipo de argumentação, razões, conhecimento do mundo, etc.

Educar para que as pessoas sejam vulneráveis aos raciocínios também faz parte da educação racional, e isto entra na distinção fundamental entre o racional e o razoável. A razão cobre um campo que abarca o meramente racional, no qual nos entendemos com as coisas o melhor possível, e o razoável, no qual nos entendemos com os sujeitos. É razoável incluir na minha própria a razão própria de outro sujeito, a possibilidade de aceitar os seus fins, de aceitar os seus objectivos, a sua própria busca da experiência como parte da minha própria razão. O funcionamento racional e o funcionamento razoável estão ligados, e há que educar em ambos. O razoável será esse outro uso que eu consiga dar aos conhecimentos racionais que tenho. Naturalmente que os usos também estão ligados à razão, mas a outra função diferente, isto é, ao reconhecimento de que não me movo só entre objectos, mas também entre sujeitos. E que o característico dos objectos é que eu posso impor-lhes os meus fins; e dos sujeitos, que eu devo conhecer os seus fins para de alguma forma os contrastar com os meus e buscar a possível cooperação.

Essa é uma distinção importante porque às vezes, por exemplo em questões de economia, dá-se uma visão da razão e considera-se o racional como o único que conta, e não o razoável. Buscam uma maximização de benefícios mas não a dimensão razoável, o reconhecimento de outros objectivos, de outros fins, de outras formas de vida que devem ter-se em conta. Porque uma razão meramente racional mas não razoável é inumana, está mutilada das suas características básicas. E esta é uma tendência actual, que pode tornar antipática e odiosa a invocação da razão por só se fazer a partir do nível racional e não do razoável. Tudo funciona como se fosse um jugo de objectos, sem reconhecer que também há sujeitos e isto é profundamente irracional. Muitas vezes os apelos à racionalidade são no fundo apelos à irracionalidade porque se trata de uma razão mutilada da sua dimensão razoável. Do mesmo modo, nem tudo o que pode racionalmente fazer-se é razoável que seja feito, é uma posição bastante contrária à verdadeira razão, que tem as duas dimensões. Não vivemos só num mundo de objectos, mas também de sujeitos. Não entende racionalmente o mundo quem crê que tudo são objectos, do mesmo modo que a chave do sentido é o que se compartilha com outros sujeitos. 

Fernando Savater "Potenciar a Razão"

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