iPad: Rui Tavares gosta, Miguel Esteves Cardoso não gosta
Não foi preciso arranjar um para o historiador, ele tem o seu e diz que merecia ser uma ferramenta do renascimento. O jornalista usou um emprestado: é pesado, não incentiva uma leitura longa, não acrescenta muito a quem já tem outras ferramentas. Testemunhos na primeira pessoa.
DaVinciPad
Na Antiguidade o papel não era abundante nem barato. A Humanidade tinha então duas estratégias para lidar com a escassez. A primeira era memorizar. Sabemos pelos autores gregos, latinos e hebraicos que os seus jovens estudantes decoravam milhares e milhares de palavras organizadas em versos, versículos ou listas - da Odisseia à Bíblia ou ao Código Justiniano.
A segunda consistia no recurso a superfícies lisas onde se acumulavam anotações que depois eram apagadas e substituídas por outras notas. A mais vulgarizada destas soluções era uma tabuinha de madeira emoldurada por um pequeno rebordo e coberta por uma camada de cera de abelha. Os alunos escreviam com um pequeno estilete pontiagudo (com que também pelo menos uma vez mataram um professor, o cristão Santo Ambrósio) e depois usavam uma pequena régua para alisar a cera e assim apagar as notas anteriores. A solução mais duradoura foi a da combinação de ardósia+giz, que os nossos pais ou avós ainda levavam para a escola em meados do século XX.
No Museu do Louvre está guardado num armário com demeans de outras coisas um pequenino e engenhoso instrumento que parece um híbrido de baralho de cartas e leque. Creio que é indiano; consiste em várias plaquinhas de marfim, do tamanho de cartas de jogar, unidas por um único parafuso num dos cantos, precisamente como se faz nos leques. Quem olha para aquilo não entende à primeira vista do que se tratava: uma versão extraordinariamente subtil de um bloco de notas. Em vez de ser apenas uma tablete, o seu possuidor poderia usar várias das placas para diferentes ideias, abri-las em arco ou fechá-las com um movement do pulso, extrair apenas uma ou duas para comparação. Quando já não houvesse espaço para mais notas, um simples pano molhado permitiria limpar tudo e começar de novo.
Outra coisa que os antigos sabiam perfeitamente é que cada uma destas mudanças de tecnologia - uma simples ardósia é "tecnologia", tanto quanto o mais sofisticado computador - tinha consequências inesperadas na nossa forma de pensar e agir. Mesmo pessoas muito sábias reagiam teimosamente mal a algumas das tecnologias que mais fizeram pela humanidade. Um dos casos mais célebres é o de Sócrates, que rejeitava uma tecnologia relativamente recente no seu tempo - a escrita - por considerar que ela poderia destruir a memorização e assim encorajar o facilitismo. Este e outros seus argumentos foram estudados por um historiador neozelandês chamado MacKenzie, que sugeriu que estes eram muito semelhantes aos que viriam depois a ser usados contra as máquinas de escrever, as calculadoras e os computadores pessoais.
Inversamente, também poderemos aprender a ler as criações tecnológicas do nosso tempo à luz dos objectos do passado.
A primeira lição deste exercício é a seguinte: os objetos têm a sua própria lógica. Para os entendermos não os podemos forçar à lógica que nós trazemos dos outros objetos anteriores, que têm a sua lógica anterior. Uma ardósia não é um pergaminho que não é um disco de vinil. Cada um destes objetos precisa de ser escutado com algum tempo. Cada um deles se desdobrará de uma maneira diferente.
A segunda é que cada um destes objetos acabará por se tornar no efeito acumulado daquilo que ele é (tecnologia) e daquilo que nós aprendermos a fazer com ele (cultura). Tecnologia+cultura.
Quando o iPad foi apresentado por Steve Jobs, o fundador e líder da Apple, este mostrou uma imagem na qual se via um cruzamento entre a "rua da tecnologia" e a "rua das artes liberais". A Apple, explicou ele, situava-se na interseção entre estas duas vertentes; aliás, já não era a primeira vez que Steve Jobs mostrava essa metáfora visual, como se com ela quisesse provar um qualquer argumento especialmente importante; noutra ocasião sugeriu que o lugar da companhia era nas "humanidades"; o nome oficial da "Apple Computer, Inc." foi alterado para apenas "Apple", elidindo a referência aos computadores. Estes pormenores escapam normalmente aos jornalistas, aos comerciantes e mesmo aos consumidores, normalmente obcecados em saber quantos gigabytes cabem em cada versão da máquina, se ela tem câmara ou não, etc. Extraordinariamente, já ouvi queixas de gente que diz não comprar um iPad por lhe faltar uma saída USB; como se uma saída USB, que há pouco mais de dez anos não existia e que pode ser inútil no iPad, já fosse para nós uma questão de vida ou de morte.Como crítica mais profunda, um amigo antropólogo escreveu que o iPad não é um instrumento de input mas de output; ou seja, um lugar de onde extraímos coisas (como a televisão, que nos serve para ver) e não um lugar onde inserimos, acrescentamos ou criamos coisas. Implicitamente, isto significaria que o iPad implica uma atitude mais passiva da nossa parte.
Dá para entender de onde vem esta ideia: na realidade, o que o iPad parece à primeira vista é apenas e só um ecrã. Nós vemos ecrã e pensamos TV. Como não vemos teclado, não pensamos computador. Como não vemos caneta, não pensamos computador.
Este meu texto é, no entanto, uma cabal refutação dessa ideia - e é-o mesmo até independentemente da qualidade dos argumentos que eu apresentar. O simples facto é que este texto foi inteiramente escrito num iPad, como aliás todos os meus textos desde há algumas semanas. Já não me lembro qual foi a última vez que toquei no teclado do meu computador portátil. Estou neste momento a escrever num avião cujas luzes estão apagadas, equilibrando o iPad em cima dos meus joelhos, enquanto os meus vizinhos dormem numa viagem intercontinental. Nem a lâmpada do meu assento está ligada. O teclado virtual, além de ser surpreendentemente prático e rápido, não faz qualquer barulho porque não tem partes móveis; parece apenas que estou a acariciar o superfície lisa da tablete/ecrã, que na verdade é um vidro precedido por sensores que detetam o calor dos meus dedos. Ao mesmo tempo, o iPad está a dar-me música em modo aleatório (Peggy Lee agora; há pouco era Bach; antes disso música eletrónica) que ouço através dos auscultadores. A bateria dura cerca de dez horas e deve chegar ao meu aeroporto de destino. No aeroporto onde embarquei não precisei de (ao contrário do que se passa com os computadores) abrir a mala para fazer o iPad passar pelo raio-X.
O iPad é às vezes uma janela; outras vezes um poço onde vou buscar novas aplicações; uma banca onde vou buscar o jornal do dia; um bloco de notas onde desenho esquemas com os dedos que depois envio por email. Antes de escrever este texto, brinquei com um videojogo de futebol para distrair um pouco a cabeça. Se desejar abrir outras aplicações, o iPad transforma-se numa caixa de ritmos, num sintetizador, numa paleta de tintas. Ele próprio muda de aplicação e também nisso é melhor do que um computador, que nos obriga a fazer tudo através de um teclado-e-rato, seja ou não esta a solução mais adequada. Aqui no iPad o teclado só aparece quando eu vou escrever e não ler, e pode tornar-se num piano ou num tambor. Se eu estiver a olhar para um vídeo ou a ler uma estória em quadrinhos, o teclado desaparece tranquilamente.
Por isso argumentar se o iPad é um instrumento passivo ou ativo perde um pouco o sentido. Ele é um excelente instrumento de input, e de output também. De inserção e de fruição. O que acontece é que ele passa de forma tão ágil de um papel para outro que os mistura numa espécie de contínuo.Mais do que ativo ou passivo, o iPad é um instrumento imersivo. Focamo-nos no que estamos a fazer nele, seguramo-lo com ambas as mãos, temos tendência a curvar-nos um pouco, quase como quem assume posição fetal. Mas também podemos levantar-nos e levá-lo de reunião em reunião como um caderno que nunca chega ao fim e cujas notas ficam facilmente guardadas para sempre. Imagino que ele vá ser muito prático para médicos internos, que passam o dia de um lado para o outro no hospital; o iPad é uma versão extensiva da tradicional prancheta. Mas também desce o ritmo connosco e depois de um dia de trabalho é um excelente companheiro para quem está apenas anichado num sofá. Permite ler livros como numa biblioteca e comprá-los como numa livraria.
Na sua versatilidade e amplitude, o iPad mereceria ser uma ferramenta do renascimento. Generalista, engenhoso e infinitamente curioso, precisamente como se diz que eram os homens renascentistas.
A este propósito, há outra história que já foi contada por Steve Jobs mais do que uma vez como tendo sido das mais importantes escolhas da sua vida, mas que nunca parece ser valorizada pelos comentadores. Conta o fundador da Apple que por razões mistas de falta de dinheiro e de motivação teve de abandonar a universidade. Depois de cancelar a sua inscrição ainda pôde aproveitar durante uns meses as aulas como estudante livre, mas sem ter um curso formal para cumprir. Foi assim que, mais ou menos por acidente, foi parar a uma aula de tipografia. O próprio Steve Jobs costuma creditar o conhecimento técnico e algo pormenorista da tipografia como tendo sido uma razão para que no futuro os computadores da Apple tenham sido dos primeiros a ter várias famílias de fonte, caracteres de espaçamento variável e outras possibilidades antigas como letras capitulares, identações e por aí adiante. Mas a história é mais relevante do que isso.
A tipografia enquanto arte+tecnologia do renascimento, plasmada por invento-res+artesões+humanistas como Johannes Gutenberg ou Aldo Manúcio, é obviamente um momento paradigmático das interações entre novos suportes e nova cultura. Nas suas implicações, o iPad pode provavelmente vir a ser a invenção mais relevante da Apple (como de costume, já havia outras tabletes/computadores, mas esta é a primeira que acerta na resposta). Acima de tudo, porém, a tipografia é precisamente o reino da atenção ao pormenor; na tipografia os objetos têm a sua lógica própria, as letras precisam das suas próprias soluções e o desenho é uma missão de resolução de problemas. Certas letras de imprensa são como são porque de outra forma o tipo de chumbo, ou o seu molde, se quebrariam; a distância entre elas é variável porque a combinação entre um "s" e um "t" é mais frequente (e mais elegante) do que entre um "k" e um "a" (que pode ficar esquisita se as letras não forem bem desenhadas).
Apesar de ser novidade, a invenção - e os renascentistas sabiam-no bem - não nasce de um ato de vontade instantâneo e não pode por isso ser compreendida de forma impaciente. Ela não é uma imposição da nossa teimosia à lógica das coisas. A invenção - e a apreciação que possamos ter dela - só pode nascer de uma atenção permanente, paciente e intensa à lógica própria dos objetos. Sent from my iPad
Rui Tavares aderiu ao novo acordo ortográfico e este texto respeita essa sua opção.
O Mac no condicional
Não gosto do iPad. Porque não preciso dele. Como já tenho um iMac, um iBook e um iPhone, o iPad acrescenta pouco à minha felicidade. Tudo depende do grau de Mac que há na sua vida. Se há zero Mac na sua vida, o iPad é não só a melhor maneira de entrar no mundo Mac como a mais Mac. A “macquidão” tudo determina. Tudo depende de se ser ou não um “macquista”. O iPad é para quem se interessa por essa questão. Para um “macquista”, habituado ao mundo fechado da Apple e do iTunes mas sabendo como lhes dar a volta, caso seja preciso, o iPad é fechado de mais. Por exemplo, proíbe downloads que todos os outros Macs deixam passar.
O iPad não é um computador portátil — não dá jeito trabalhar nele. Nem é um iPhone gigante sem telefone. A guerra de definições do iPad deixou de ter graça há muito tempo.
O iPad é um visionador portátil. Para navegar na Net, ver filmes, ler livros, ouvir música, jogar jogos. É isso que faz bem e muito depressa, com uma bateria que dura que se farta — mais de 12 horas a ver filmes. A melhor demonstração é o vídeo em que Jesse Rosten mostra o que se consegue fazer com um iPad e tiras de velcro: http://www. apple.com/ipad/velcro/. É um visionador de colo, onde se toca. Isto torna-o num objecto íntimo. O iPhone segura-se na mão e põe-se no bolso. O iPad nunca se arruma. Fica ali à espera que peguemos nele outra vez.
A grande maioria das pessoas usa o computador portátil só para fazer as coisas que o iPad faz. O iPad é feito para essas pessoas. É óptimo para ler revistas e jornais — a cores — mas, para livros, só para quem leia durante uma hora ou menos. Para já, porque faz mal aos olhos. O ecrã é iluminado e muito espelhado. Depois, porque é pesado de mais para segurar nas mãos.
Pode montar-se num tripé, mas a leitura é diferente quando não se segura o que se está a ler nas mãos. Com um leitor de eBooks — eu tenho um velho eBook —, pode-se ler durante o tempo que se quiser, porque as páginas são brancas e pretas e não são iluminadas, como os livros. São mais baratos e mais leves e, sobretudo, a não ser no caso do Kindle, é uma canja importar PDF de livros, artigos e revistas.
O Kindle tem acesso a muito mais livros do que o iPad. Em Portugal, o dono de um iPad não pode comprar livros nenhuns — a não ser pela porta de trás, arranjando um cartão de crédito com morada nos Estados Unidos. Tem uma biblioteca de livros antigos e nada mais. O único livro moderno é o (excelente) manual de instruções do iPad.
Para terminar esta espécie de crítica, aqui ficam as vantagens e desvantagens:
Vantagens
É bonito; é facílimo de usar; o processador é muito rápido; as teclas (na posição horizontal) têm o tamanho ideal; navega muito bem na Net e a bateria é excepcionalmente duradoura.
Desvantagens
É pesado de mais para segurar durante mais de meia hora e não é um computador portátil (não tem USB, não há Word; está fechado).
Simplificar ou complicar?
O iPad é interessante porque pretende ser um simplificador. O iPhone é para comunicar e informar. Os MacBooks são para trabalhar. O novo iMac 27 é para trabalhar e ver filmes como deve ser. O iPad é para divertir.
Olha-se para o iPhone, para o MacBook ou para o iMac e pensa-se em trabalho. Olha-se para o iPad e pensa-se em divertimento.
Ou, pelo menos, é assim que a Apple quer que nós pensemos.
Enquanto estamos a ver um filme no iMac, acontece-nos muito querer ir ver o nome de um actor à Net. Sem parar o filme, usamos o iPhone. Mas o ecrã do iPhone é pequenino e é preciso estar sempre a puxar daqui para ali para conseguir ler o que vem a seguir. Com o iPad, apanha-se logo a página inteira. É uma maravilha.
Mas não deixa de ser uma coisa que se tem ali ao lado. O ecrã é muito maior do que o do iPhone mas continua a ser muito pequeno para ver fi lmes, para não falar no excessivo espelhamento, que faz com que as nossas próprias caras entrem pelos filmes adentro.A Apple está a fazer uma experiência interessantíssima em que ganhará sempre. Começou com o iPod Touch, que era um iPhone sem telefone. O iPad é um iPod Touch gigante. Acaba de lançar o novo Mac mini — por 700 dólares — que pode funcionar com o seu televisor HDTV.
Nunca houve uma tão vasta escolha de computadores da Apple. Agora serão os consumidores a dizer quais as combinações de aparelhos que preferem.
O iPad é uma maneira engenhosa da Apple mostrar que se pode ter quase tudo nas mãos — mas, ainda assim, com necessidade de ir um bocadinho mais longe no mundo dos Macs.
É para principiantes, para espectadores e, no caso de quem já tenha um Macbook e um iPhone, coleccionistas.
É o segundo grande produto da Apple (se a Apple TV se puder considerar um grande produto) que não vou comprar. Mas para quem nunca tenha tido nem um Mac, nem um iPhone nem um iPod... e já tenha um telemóvel de que goste... e não precise de um computador a sério... então, nesse caso, seria uma folia não comprar um iPad. Já.
|Rui Tavares e Miguel Esteves Cardoso, Público
Sem comentários:
Enviar um comentário