domingo, 23 de março de 2014

Da dúvida ao Cogito

Imagem de Gilbert Garcin


"Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, e neles cometem paralogismos, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outro todas as razoes de que até então me servia nas demonstrações. Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem ocorrer também quando dormimos, se que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. 
Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade – eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos seriam impotentes para a abalar, julguei que podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava. 
Depois, examinando atentamente que coisa eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu existisse; mas que, apesar disso, não podia admitir que não existia; e que antes, pelo contrario, por isso mesmo que pensava, ao duvidar da verdade das outras coisas, tinha de admitir como muito evidente muito certo que existia; ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para não ter já nenhuma razão para crer que existia, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro; por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é apenas o pensamento, que para existir não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de nenhuma coisa material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, mais fácil mesmo de conhecer que este, o qual, embora não existisse, não impediria que ela fosse o que é. 
Depois disso, considerei duma maneira geral o que é indispensável a uma proposição para ser verdadeira e certa; porque, como acabava de encontrar uma com esses requisitos, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E tendo notado que nada há no que eu penso, logo existo, que me garanta que digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente; havendo apenas alguma dificuldade em notar quais são as coisas que concebemos distintamente." 
René Descartes, Discurso do Método

Interpretação do texto:

O texto foi escrito por um filósofo francês do século XVII que se dedicou ao estudo dos problemas do conhecimento e construiu um sistema de índole racionalista. Vivia-se então numa época de crise e de incerteza que se refletia nas posições céticas adotadas pelos contemporâneos de Descartes. Ora Descartes tinha uma formação matemática e desejava garantir a existência de um conhecimento verdadeiro.
No texto, extraído do Discurso do Método, uma das suas obras mais divulgadas:
1. Começa precisamente por levantar o problema da dúvida em três domínios fundamentais:
a) Dúvida acerca do conhecimento sensorial;
b) Dúvida acerca da capacidade da razão humana;
c) Dúvida quanto á possibilidade de distinguir sonho de realidade.

2. Refere a decisão de não aceitar nada como verdadeiro ate encontrar uma verdade que resista a toda e qualquer dúvida (um conhecimento indubitável).
Esta atitude de Descartes é uma forma de garantir a validade absoluta de um conhecimento capaz de resistir à dúvida mais exagerada. Por isso se considera que a dúvida cartesiana é metódica, universal (abrange todos os conhecimentos) e voluntária.

3. Enuncia a primeira verdade a que Descartes chegou: o cogito ou a existência de um ser pensante (penso, logo existo).
Esta primeira verdade vai ser aceite por Descartes que sobre ela assentará o seu sistema filosófico.
Trata-se de uma verdade de natureza puramente racional, ou seja, que depende unicamente do uso da razão humana e na sua descoberta não foi necessária a contribuição dos sentidos. A existência do cogito é a primeira informação segura a que Descartes chegou depois de deliberadamente ter posto tudo em dúvida e encerra o sujeito que conhece em si mesmo, reduzindo-o a ser “uma coisa que pensa” (res cogitans).
Duvida ainda da existência dos outros seres humanos e das coisas materiais, incluindo o seu próprio corpo.
O objetivo cartesiano de alcançar a verdade começa a cumprir-se no momento da dúvida, no momento em que se rompe com o sensível e com o conhecimento até então constituído e se procura a verdade na própria razão.

4. Seguidamente o texto de Descartes define a natureza do cogito afirmando a sua independência em relação ao corpo e a sua natureza de puro pensamento. 
Contrariamente ao nosso conhecimento vulgar que nos leva a acreditar mais facilmente na existência das coisas e do corpo do que na existência da mente, Descartes conclui que o conhecimento desta é mais acessível e é anterior ao conhecimento das coisas corpóreas; o corpo não faz parte da mente e é de outra natureza.

5. Apresenta, finalmente, o critério de verdade válido para Descartes. Serão aceites como verdadeiras unicamente aquelas ideias que se apresentem à razão como sendo claras e distintas, características que Descartes encontra na apreensão intuitiva e racional da ideia do cogito. A apreensão do cogito fornece o critério de verdade das ideias: a clareza e a distinção.

Como verificamos Descartes parte da dúvida e alcança uma primeira verdade por via unicamente racional. Neste momento da construção do sistema cartesiano Descartes só admite a existência de um eu cuja natureza se resume a produzir pensamento. Será que existe alguma coisa fora e para além do seu eu? Como vai conseguir sair para fora do cogito e demonstrar a existência da realidade material?
Descartes não pode basear-se nos sentidos uma vez que os excluíra como fonte fiável de conhecimento.
Só lhe resta refletir sobre si mesmo e procurar na mente, no cogito, a possibilidade de provar a existência de algo para além do seu próprio pensamento. O que é que esta reflexão lhe vai permitir descobrir?
Diferentes tipos de ideias: ideias que “nasceram comigo” (ideias inatas); outras que vieram de fora (ideias adventícias); outras que foram feitas e inventadas por mim (ideias factícias).
Ao examinar a natureza das ideias, Descartes valoriza as que são inatas e entre elas descobre a ideia de Deus como ser perfeito e como o homem é um ser imperfeito, que não pode por  si só criar a ideia de perfeição, esta ideia é inata e só pode ter origem no próprio Deus que a colocou na nossa mente. Esta ideia ao fazer-nos conceber Deus como um ser perfeito, incapaz de nos enganar, passa a ser garantia de que o conhecimento construído pela razão é verdadeiro. Assim, alem da existência do cogito, Descartes passa a admitir a existência de Deus e a existência do mundo.
Hugo Araújo, Apontamentos para o exame nacional de 2007

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Uma síntese mais avançada da perspectiva cartesiana:

O Cogito

Descartes recorreu a argumentos cépticos como um instrumento para chegar ao conhecimento seguro. Apesar de o fazer, Descartes não é um céptico. Vejamos, por exemplo, o argumento do sonho e o argumento do génio maligno. No primeiro, Descartes defende que não é possível fazer a distinção entre estar acordado e estar a sonhar, porque podes sonhar que estás a fazer um teste para te certificares de que estás acordado. No segundo, a suposição de um génio maligno bastante poderoso que se empenha em enganar-te mesmo quando acreditas que 2 + 2 = 4, leva-te a suspender o juízo em relação às verdades lógicas e matemáticas, por mais simples que sejam. Mas por mais que tentes duvidar da tua existência, supondo que estás apenas a sonhar ou a ser enganado por um génio maligno que te leva a pensar que existes, terás nesse momento a certeza de que alguma coisa existe para que ocorra a atividade de duvidar. Terá de haver um sonhador para sonhar a sua própria existência e um enganado para ser enganado. Descartes conclui que, enquanto pensar que está a ser enganado por um génio maligno, terá de existir como ser pensante. Trata-se do famoso cogito ergo sum (penso; logo, existo).
Através de argumentação a priori, Descartes obteve conhecimento acerca de algo que realmente existe: ele próprio como ser pensante. Para compreenderes melhor o que garante este conhecimento teremos de analisar a certeza implicada pelas crenças "Estou a pensar" e "Existo". Em primeiro lugar, ambas são incorrigíveis, o que se define do seguinte modo: se alguém acredita que está a pensar ou que existe, então não pode estar errado. Em segundo lugar, têm a propriedade de ser auto-verificáveis, a qual contribui para a incorrigibilidade e se define do seguinte modo: se alguém afirma estas proposições, então essa afirmação é verdadeira.
Vejamos melhor o que isto quer dizer. Considera a proposição expressa pela frase P: "Estou a pensar". Se pensares que P é falsa, exprimes nesse momento uma contradição. Mas não se trata de uma contradição lógica porque "Eu não estou a pensar" e "Eu não existo" não são falsas em todas as circunstâncias possíveis devido à sua forma lógica, como acontece com a proposição expressa pela frase "O mar tem peixes e o mar não tem peixes"; como é óbvio, em estados do mundo em que eu não existisse, aquelas proposições seriam verdadeiras. As negações de "Estou a pensar" e de "Existo" derrotam-se a si próprias do ponto de vista pragmático, auto-falsificam-se no preciso momento em que são ditas, e não devido à sua forma lógica; podemos compará-las à proposição expressa pela frase "Estou ausente" dita por ti quando o teu professor de filosofia faz a chamada. Assim, sempre que alguém diz ou mentalmente concebe "Estou a pensar" e "Existo", as proposições expressas por estas frases terão de ser verdadeiras. Mas estas não são verdades lógicas como "Chove ou não chove" ou verdades analíticas como "Nenhum solteiro é casado"; são verdades pragmáticas, as quais se definem por se auto-falsificarem quando alguém afirma a sua negação.

Questões de revisão
3. Será que Descartes é realmente um céptico? Porquê?
>Resposta

4. De que modo Descartes obteve conhecimento do Cogito?
Deus

Chegado aqui, Descartes pode dizer que tem certezas na primeira pessoa acerca de si próprio como eu pensante. Mas isto é pouco. Subsiste a questão de saber se o mundo exterior existe. Daí que Descartes precise de uma ligação ou "ponte" que lhe permita vencer a distância entre este eu pensante e o mundo. A premissa "Deus existe e não é enganador" irá desempenhar esse papel. Ora, a existência deste Deus que não é enganador precisa, por sua vez, de ser provada. Sem essa prova não há maneira de refutar o cepticismo. Descartes teria nesse caso apenas umas quantas verdades acerca de si próprio e nada mais seria seguro. Destruindo a hipótese do génio maligno ao estabelecer a existência de um Deus sumamente bom e sábio, Descartes obtém a garantia absoluta de que o mundo é como pensamos que é, na condição de usarmos corretamente as faculdades com que Deus equipou o homem.
Para o fazer, Descartes apresenta argumentos a priori a favor da existência de Deus que supõe conclusivos. Esses argumentos são a priori porque se baseiam na ideia de Deus que Descartes descobre em si apenas com a ajuda da razão. O facto de Descartes não ter optado por argumentos a posteriori a favor da existência de Deus quando os tinha à sua disposição, poderá mais uma vez indicar a importância que depositava no uso da razão. Neste contexto, esses argumentos não serão analisados. O que é importante saberes é que, segundo Descartes, também este conhecimento de Deus resulta do raciocínio, e não da experiência; Deus, tal como o Cogito, não pode ser provado recorrendo à observação. Nenhum indício sensorial ou experimental pode mostrar que as proposições "Existo como ser pensante quando estou a pensar" e "Deus existe" são verdadeiras, ou justificar que acredites nelas.

O mundo exterior

Sustentado o mundo no pilar de Deus, Descartes irá tratar das coisas físicas. A questão que o ocupa é a de saber qual é a natureza das coisas físicas. Para isso, sujeita à nossa consideração o seguinte exemplo. Temos um pedaço de cera com uma certa forma, tamanho, cor, perfume; através dos sentidos, temos experiência destas propriedades; mas se o aproximares do fogo, estas propriedades alteram-se, embora o pedaço de cera seja o mesmo. Logo, estas propriedades não pertencem à natureza ou essência da cera. Isto quer dizer que a experiência não me permite captar a essência da cera e o mesmo sucede com qualquer outra coisa física. Deste modo, só o raciocínio descobre a essência da cera; assim, a cera muda de forma, tamanho, cor, perfume e o mesmo se dirá de qualquer outra propriedade de que temos experiência através dos sentidos; mas se deixar de ser uma coisa extensa no espaço deixará de ser o que é. Logo, a extensão pertence à sua essência e à de qualquer outra coisa física.

Questões de revisão
5. Por que razão Deus é conhecido a priori?
6. As propriedades essenciais dos objectos da experiência podem ser conhecidos por intermédio dos sentidos?

Conclusão
O que somos e o que temos perante nós e como o conhecemos? Temos um eu pensante que funciona sobretudo de maneira dedutiva, um mundo cuja essência é extensão e um Deus que é a garantia do bom uso das nossas capacidades racionais. Nas suas propriedades essenciais, o eu e o mundo são conhecidos a priori. 

Questões de discussão
7. Descartes estabelece a existência de Deus para justificar a confiança nas nossas capacidades racionais; mas, por sua vez, as nossas capacidades racionais justificam a existência de Deus. Este argumento é questionável? Porquê?
8. Discute a seguinte afirmação: "Se Descartes levasse consistentemente a dúvida filosófica até ao fim, a própria noção de dúvida seria suspensa e o seu pensamento ficaria paralisado."


|Faustino Vaz, Crítica na Rede / Arte de Pensar
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