A teoria da justiça de Rawls e a teoria ética deontológica de Kant
Os princípios da Justiça e o Imperativo categórico
No contexto da sociedade moderna bem ordenada, imaginada por John Rawls, há diferenças e desigualdades intrínsecas. As diferenças, segundo ele, fazem parte da sociedade não estatal ou civil; têm a ver com o facto de que as pessoas possuem interesses, convicções, preferências, tipos biológicos, culturais e intelectuais que são discrepantes, constituindo na prática a ideia daquilo que classicamente denominamos de pluralismo social. Por outro lado, as desigualdades económicas têm a ver diretamente com o que acontece no Mercado, ou seja, na estrutura económica existem homens inseridos em áreas (classes/grupos) sociais diferentes que terão diferentes expectativas de vida e de sucesso material. Conforme ressaltou John Rawls neste sentido, é no Mercado que as desigualdades são marcadas especialmente de forma profunda.
Considerando essa realidade social, onde coexistem o conceito da igualdade postulado pelo Estado de Direito Democrático, o conceito da desigualdade do Mercado e o conceito da diferença postulado pela Sociedade civil, o maior desafio para John Rawls é exatamente formalizar um modelo de contrato alternativo que seja capaz de permitir aos interessados resolverem os seus conflitos adotando a cooperação como princípio social básico inserido no ambiente democrático plural. Para desenhar esse modelo contratual inovador em relação ao contratualismo moderno, e também revolucionário em relação ao Utilitarismo, John Rawls desenvolveu uma releitura crítica das ideias de Kant, Locke e Rousseau. Nessa direção, ele não imaginou como os indivíduos iriam fundar hipoteticamente o Estado civil, como fizeram os pioneiros contratualistas, mas pensou agora em discutir como as pessoas poderiam reutilizar o Estado de Direito Democrático - já instituído - no momento crucial em que elas estejam a tentar realizar a justiça com o máximo de respeito e cidadania.
A escolha racional dos princípios constitucionais em favor de uma justiça humanizada implica o reconhecimento mútuo de que, independentemente do que acontecer no futuro, todos os participantes querem ser tratados com igualdade e respeito. Na verdade, todos os cidadãos desejam a igualdade de oportunidade para manifestarem as suas opiniões, interesses e preferências. Nesse aspecto, John Rawls afirmou que: “a partir do momento em que todos se posicionam da mesma forma, ninguém seria capaz de fazer uma escolha que favoreça a sua própria posição particular e os princípios da justiça seriam o resultado de um acordo equitativo”.
A “posição original” do contrato (semelhante ao estado de natureza dos contratualistas modernos) será identificada por meio de regras que serão adotadas coletivamente, surgindo por extensão uma identidade moral entre os participantes que reivindicam bens primários idênticos (no mínimo, liberdade, justiça, igualdade, respeito, as bases sociais da autoestima, responsabilidade e oportunidade de participação).
Nessa filosofia contratual, tem ampla aceitação o facto de que será impossível ajustarem-se os princípios às circunstâncias peculiares de cada caso particular. O contrato é inicialmente oficializado entre as partes falando do futuro e não do presente, daí Rawls se referir a esta posição inicial como estando ligada ao ‘véu da ignorância’ – os indivíduos decidem dos princípios orientadores da sociedade sem terem em conta os seus interesses particulares nem a sua situação social. Além disso, não importa saber se uma das partes é rica e a outra é pobre. O que se valoriza nesse tipo de contrato é exatamente a concordância moral mútua, ou seja, os cidadãos participantes desejam ser tratados com o máximo de dignidade no procedimento alternativo da justiça. Aqui, o desconhecimento contratual (o véu da ignorância) que se tem não é propriamente sobre a realidade económica de cada um, mas a respeito da posição institucional que se ocupará no futuro. Não se sabe, exatamente, se a pessoa será credora ou devedora, vítima ou agressora. Independentemente, portanto, do que ocorrer no futuro, os contratantes esperam ser tratados com dignidade na resolução de um eventual conflito ou escassez de bens públicos.
A unidade desse contrato social alternativo procura equilibrar as desigualdades económicas com os princípios da diferença e da igualdade constitucional do Estado; entretanto, para isso acontecer positivamente, as liberdades básicas do cidadão devem ser garantidas, por exemplo: a liberdade política, de associação, de pensamento, a liberdade de não ser preso arbitrariamente, além da garantia dos direitos fundamentais à vida e à propriedade. Todas essas liberdades civis são fundamentais e precisam de ser garantidas pelo Estado.
Para desenhar a estrutura do contrato da equidade, Rawls recuperou basicamente a filosofia kantiana e juntou o que foi separado pelo contratualismo moderno, ou seja, conciliou a Ética com o Direito (e com a Política). Indo nessa direção, Rawls notou que a filosofia de Kant se focalizou na decisão racional do sujeito moral considerando que o homem é um ser livre e igual no âmbito da moralidade. Agindo com “autonomia”, portanto, o indivíduo observaria princípios que no nível mais alto de abstração garantiriam a dignidade da pessoa humana. No Direito, por outro lado, segundo Kant, o conceito fundamental a ser discutido é a “heteronomia”. Nesse caso, a pessoa agiria não por força da espontaneidade da sua vontade, mas sim pela obrigatoriedade externa das instituições públicas estatais.
Semelhante ao que acontece no campo da moralidade tal como é encarado por Kant, o modelo proposto por John Rawls considera que “os princípios sobre os quais o homem age não são adotados por causa de sua posição social ou dons naturais, ou em vista da particular espécie de sociedade na qual vive ou das coisas específicas que deseja”. Além disso, John Rawls salientou que as duas fórmulas do imperativo categórico kantiano são princípios de justiça, pois cada um deles é um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude da sua natureza como ser racional, livre e igual na sociedade.
A “posição original” definida por John Rawls é uma interpretação sintetizadora da autonomia ética com a heteronomia legislativa kantiana. A justiça como equidade é uma justiça humana, assim definiu o autor. Pressupõe nesse sentido que uma determinada pessoa vai reconhecer a presença do outro no mundo, com respeito e tolerância. Entretanto, os princípios adotados pensando no “eu” do outro são todos eles públicos dentro de uma determinada comunidade ética. Concretamente, a presença moral do “eu” acontece dentro da Lei ou do Estado de Direito Democrático. Por isso mesmo, é importante relembrar que a comunidade moral não está fora da ordem pública, muito menos é uma conveniência puramente individualista ou arbitrária. Por outras palavras, os princípios de justiça aplicam-se à estrutura básica da sociedade e regulam a maneira como as instituições deverão ser combinadas num determinado esquema jurídico válido. Nesse contexto, o sistema contratual tem de ser esboçado de forma que a resultante distribuição seja “justa”, mesmo que as opiniões dos contratantes se alterem no futuro.
(Texto adaptado).
Heraldo Elias Montarroyos
Texto copiado daqui.
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