Na moral, o ponto de partida de Kant é o de que o único bem
irrestrito é uma vontade boa. Talento, carácter, autodomínio e fortuna podem
ser usados para alcançar maus fins; até mesmo a felicidade pode corromper. O
que constitui o bem de uma vontade boa não é o que esta alcança; a vontade
boa é um bem em si e por si, ela é o fundamento da lei moral. A lei moral é a orientação da nossa razão para o
Bem, para o cumprimento do dever moral (que é o dever de termos uma
vontade boa).
“Ainda que por um desfavor especial do destino, ou pelo
apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa
vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse
alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa
vontade […] ela ficaria brilhando por si como uma jóia, como coisa que em si
tem o seu pleno valor.”
Não foi para procurar a felicidade que os seres humanos foram
dotados de vontade; para isso, o instinto teria sido muito mais eficiente. A
razão foi-nos dada para originar uma vontade boa não enquanto meio para outro
fim qualquer, mas boa em si. A vontade boa é o mais elevado bem e a condição
de possibilidade de todos os outros bens, incluindo a felicidade.
Que faz, pois, uma vontade ser boa em si? Para responder a esta
questão, temos de investigar o conceito de dever. Agir por dever é
exibir uma vontade boa face à adversidade. Mas temos de distinguir entre agir
de acordo com o dever e agir por
dever. Um merceeiro com medo das autoridades ou um filantropo que se
deleite com o contentamento alheio podem agir de acordo com o dever: o
merceeiro pode nunca enganar os seus clientes por ter medo de ser punido caso
algum cliente, tendo sido enganado, se queixe às autoridades; por outro lado uma
pessoa que sente grande prazer em ajudar os outros pode fazer doações a instituições
de caridade. Mas ações deste tipo, por melhores e por mais agradáveis que
sejam, não têm, de acordo com Kant, valor moral. O nosso carácter só mostra
ter valor quando alguém pratica o bem não por inclinação mas por dever —
quando, por exemplo, um homem que perdeu o gosto pela vida e anseia pela morte
continua a dar o seu melhor para preservar a sua própria vida, de acordo com a lei moral.
De acordo com Kant não devemos agir motivados por inclinações
sensíveis ou por interesses egoístas. Se um pai se atira à água tumultuosa de
um rio para salvar o seu filho, se o fizer por amor, fá-lo por uma inclinação
sensível, não por dever, embora aja em conformidade com o dever (pois, se
agisse por dever, faria exatamente a mesma coisa). Neste caso, a ação do pai
não tem valor moral, porque não agiu de forma desinteressada. Por outro lado,
se quem se atirar à água for um desconhecido e se a sua única intenção for
cumprir o dever moral, então, nesse caso, essa ação terá valor moral porque
terá sido executada por dever.
A doutrina de Kant é, a este respeito, completamente oposta à de
Aristóteles, que defendia não serem as pessoas realmente virtuosas desde que o
exercício da virtude fosse contra a sua natureza; a pessoa verdadeiramente
virtuosa gosta decididamente de praticar atos virtuosos. Para Kant, por outro
lado, é a dificuldade de praticar o bem que é a verdadeira marca da virtude.
Kant dá-se conta de ter estabelecido padrões muito difíceis de conduta moral —
e está perfeitamente disposto a considerar a possibilidade de nunca ter havido,
de facto, uma ação levada a cabo unicamente com base na moral e em função do
sentido do dever.
O que é, pois, agir por dever? Agir por dever é agir em função da reverência
pela lei moral; e a maneira de
testar se estamos a agir assim é procurar a máxima, ou princípio, com base na
qual agimos, isto é, o imperativo ao qual as nossas ações se conformam. Há dois
tipos de imperativos: os hipotéticos e os categóricos. O imperativo hipotético
afirma o seguinte: se
quiseres atingir determinado fim, age desta ou daquela maneira. O imperativo
categórico diz o seguinte: independentemente do fim que desejamos atingir, age
desta ou daquela maneira. Há muitos imperativos hipotéticos porque há muitos
fins diferentes que os seres humanos podem propor-se alcançar. Há um só
imperativo categórico, que é o seguinte: "Age
apenas de acordo com uma máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que se torne
uma lei universal".
Kant ilustra este princípio com vários exemplos, dos quais podemos
mencionar dois. O primeiro é este: tendo ficado sem fundos, posso cair na
tentação de pedir dinheiro emprestado, apesar de saber que não serei capaz de o
devolver. Estou a agir segundo a máxima "Sempre que pensar que tenho pouco
dinheiro, peço dinheiro emprestado e prometo pagá-lo, apesar de saber que nunca
o devolverei". Não posso querer que toda a gente aja segundo esta máxima,
pois, nesse caso, toda a instituição da promessa cairia por terra. Assim, pedir
dinheiro emprestado nestas circunstâncias violaria o imperativo categórico.
Um segundo exemplo é este: uma pessoa que esteja bem na vida e a
quem alguém em dificuldades peça ajuda pode cair na tentação de responder
"Que me interessa isso? Que todos sejam tão felizes quanto os céus
quiserem ou quanto o conseguirem; não o prejudicarei, mas também não o
ajudo". Esta pessoa não pode querer que esta máxima seja universalizada
porque pode surgir uma situação na qual ela própria precise do amor e da simpatia
de outras.
Estes casos ilustram duas maneiras diferentes a que o imperativo
categórico se aplica. No primeiro caso, a máxima não pode ser universalizada
porque a sua universalização implicaria uma contradição (se ninguém cumprir as
suas promessas, as próprias promessas deixam de existir). No segundo caso, a
máxima pode ser universalizada sem contradição, mas ninguém poderia
racionalmente querer a situação que resultaria da sua universalização.
Kant oferece uma formulação complementar do imperativo categórico. "Age de tal modo que trates sempre
a humanidade, quer seja na tua pessoa quer na dos outros, nunca unicamente como
meios, mas sempre ao mesmo tempo como um fim." Kant pretende, que
este imperativo é equivalente ao anterior e que permite retirar as mesmas
conclusões práticas.
Como ser humano, afirma Kant, não sou apenas um fim em mim mesmo,
sou um membro do reino dos fins — uma associação de seres racionais sob leis
comuns a todos. A minha vontade, como se disse, é racional na medida em que as
suas máximas puderem transformar-se em leis universais. A conversa desta
afirmação diz que a lei universal é a lei feita por vontades racionais como a
minha. Um ser racional "só está sujeito a leis feitas por si mesmo e que,
no entanto, sejam universais". No reino dos fins, todos somos igualmente
legisladores e súbditos. Isto faz lembrar a vontade geral de Rousseau.
É aqui que entra a distinção kantiana entre autonomia e
heteronomia. A pessoa só pode assumir-se como um fim em si mesmo se for
autónoma, ou seja, se se guiar pela sua razão em todas as dimensões da sua
vida, inclusive no campo da moralidade. A autonomia, neste sentido, significa
independência racional (aquilo a que Kant também chama maioridade) – a palavra
autonomia tem origem em duas palavras gregas: ‘autos’, que significa ‘si
próprio’ e ‘nomos’ que significa ‘norma’ ou ‘lei’, daqui se depreende que quem
é autónomo segue as suas próprias leis, ou seja, não está dependente de normas
morais exteriores. Isto é interessante, porque, de acordo com Kant, se
seguirmos a nossa razão estamos a ser autónomos e, ao mesmo tempo, estamos a
instituir uma legislação universal, porque a razão é universal (é idêntica em todos
os sujeitos e permite o acordo da ação de todos os sujeitos racionais, se estes
cumprirem a lei moral).
A heteronomia é, pelo contrário, um estado de dependência –
‘heteros’, em Grego antigo significa ‘outro’, o que nos leva a concluir que a
heteronomia significa seguirmos as normas/leis/máximas ditadas por outros, é
sermos dependentes da vontade dos outros (sejam eles pessoas, instituições,
grupos sociais ou a sociedade).
Kant conclui a exposição do seu sistema moral com um elogio à
dignidade da virtude. No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Se
algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra coisa. O que tem
dignidade é único e não pode ser trocado; está além do preço.
A "moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade,
são as únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho
têm um preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm
um preço de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bem querer
fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor intrínseco." As
palavras de Kant ecoaram ao longo do século XIX e ainda emocionam muitas
pessoas hoje em dia.
Assim, a segunda formulação do imperativo categórico diz-nos que
temos o dever moral de tratar as pessoas como fins em si mesmos e não como
coisas que podem ser usadas para alcançarmos os nossos próprios fins – ou seja,
temos que respeitar a autonomia das outras pessoas, independentemente da sua
condição social ou económica.
Anthony Kenny (Texto adaptado)
Retirado de História Concisa da Filosofia Ocidental, de Anthony
Kenny. Trad. Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro
Santos e Rui Cabral (Temas e Debates, 1999).
Sem comentários:
Enviar um comentário