quinta-feira, 27 de maio de 2010

Vivemos numa sociedade justa?


Esta questão refere-se a um problema que pertence à tradição filosófica, porque tem sido colocado insistentemente ao longo da história do Ocidente. Podemos afirmar que se trata dum problema estruturante da Filosofia.
Desde a antiguidade grega que a inquirição filosófica tem na justiça social um dos seus principais focos de investimento.
Os primeiros filósofos foram chamados a participar na fundação de novas cidades-estado, nascidas do impulso colonizador da cultura grega, interessada em alargar o âmbito da sua presença no mundo conhecido pela fundação de cidades que pudessem começar a partir duma base civilizacionalmente estabelecida num conjunto de atitudes básicas perante o mundo, plasmado numa constituição que garantia o império do da Lei (nomos) sobre a Natureza (physis).
A fundação das novas cidades-estado tinha um cunho ritual muito vincado, ligado às práticas religiosas das cidades de origem, mas o cuidado crescente que foi sendo posto na elaboração da constituição dessas novas esferas de racionalidade pública, mostra que a política era assumida como uma esfera da afirmação do humano e das capacidades de organização e de produção de sentido inerentes ao Lógos, à Razão. E a emergência da Filosofia está ligada a este movimento de afirmação sócio-cultural do Lógos e da convivialidade racionalmente investida dum sentido político.
O movimento sofístico surge desta valorização política da racionalidade. A decisão política está intimiamente ligada à palavra e à mestria do seu uso persuasivo. A liberdade exerce-se pelo discurso e o rosto da cidade é cada vez mais moldado pela afirmação da vontade colectiva, nascida do assentimento individual à soberania do Lógos - é assim que Atenas "inventa" a democracia, embora se trate dum regime profundamente injusto por deixar de fora da cidadania a esmagadora maioria dos integrantes da cidade. Mas trata-se dum começo.
E é no seio desse caldeirão borbulhante de agitação política que Sócrates inflecte a atenção da Filosofia para o homem e a sua vida na cidade, para os problemas ligados à ética e às pulsões do animal que fala e que, falando, se descobre portador de sentido e guardião de significados. Paradoxalmente é esse mesmo movimento que está na origem do processo que culmina na condenação de Sócrates à morte. O filósofo que terá recusado a escrita para não anular a demiurgicidade do discurso actual, da fala dirigida a outrem, a um auditório seja de amigos que conversam sobre a vida, seja de cidadãos que discutem os problemas da cidade, é o filósofo que foi silenciado em nome da lei e da vontade colectiva, ambas alicerçadas na fala humana, errática, sem garantias absolutas de verdade. Nem o oráculo de Delfos conseguiu sobrepor-se à fala soberana dos que, praticando a justiça, se expõem ao mais injusto dos desmandos. Sem que haja a possibilidade de recorrer a uma ordem outra, superior, divina, ou assente num saber apodíctico. E Sócrates submete-se aos ditames da palavra e dos seus desígnios arbitrários. Recusa a fuga e enfrenta a morte como o discurso mais eloquente: acabou por ser ele, silenciado pela taça de cicuta, a ter a última palavra, a ver a sua existência totalmente impregnada da força do Lógos, até que o corpo não mais pudesse ser veículo de significação política. Sócrates sem voz é Sócrates morto. Os silentes, politicamente mortos, são, assim, expulsos da esfera pública. Só os vivos e os que estão na posse das suas faculdades vitais são elegíveis. Ainda há poucos anos se discutia se João Paulo II poderia continuar a ser Papa se perdesse a capacidade de falar. A voz continua a ter um estatuto ontológico encantatório.
E é neste contexto que Platão vai colocar o problema justiça como o problema central da política: Sócrates morreu vítima da injustiça, mesmo que o seu processo tivesse recorrido a todos os mecanismos da justiça ateniense. E tratou-se dum processo democrático, um processo exemplar, aparentemente sem mácula e que, por isso mesmo, permitia desmascarar a injustiça inerente à própria democracia. É assim que Platão vai idealizar uma sociedade justa, sem mostrar como se poderia passar da sociedade culpada da mais terrível das injustiças para essa sociedade governada pelos discípulos ideais de Sócrates - filósofos emancipados de qualquer jugo que impedisse a obediência à Razão.
Não tendo tematizado a revolução, tudo fica em aberto. Platão legou-nos uma utopia e convenceu-nos de que a sociedade tal como a vivemos é perfectível ou, no mais radical dos cenários, passível de ser demolida para sobre os seus escombros se construir uma sociedade verdadeiramente justa.
Mas a cidade de Platão é uma cidade onde a voz deixa de ser o património dos vivos e a garantia da sua cidadania. É um espaço que condena ao exílio os poetas e todos os que tenham uma fala divergente. Neste sentido é a própria individualidade, no que ela tem de irredutível à submissão a qualquer tipo de autoridade, que vai ser sumergida pelas emanações duma soberania que se exerge por oposição à vida. Estar na cidade de Platão é aceitar a morte como o próprio do indivíduo e, com isso, dar solidez à ideia de que o Estado é eterno, ou é uma estrutura adveniente do Eterno. Esta 'morte' cívica corresponde à redução da vida, enquanto biografia, a uma função da cidade, ela sim, a única a ter uma vida contável, uma História, no fundo, a dignidade que antes do gesto platónico se conferia aos heróis. O serem singulares, inigualáveis, não enquadráveis na ordem humana e divina.
A cidade de Platão não tem lugar para a hybris, para o excesso. Vai ao longo do tempo encerrar-se em muralhas, primeiro de pedra, depois de modos de ser e de ver, deixando de fora, sucessivamente, os leprosos, os loucos, os estrangeiros, os marginais de todo o tipo. O que fica de fora da cidade, no fundo, é a possibilidade de usufruto, livre e imotivado, do corpo e da vida que corporeamente se vive. Porque a alma é já ela uma invenção da clausura.
Platão consegue inverter a intencionalidade da 'missão' socrática: os indivíduos têm que calar-se sob o domínio do Lógos institucional. Cada um ocupando o seu lugar, de acordo com a sua condição. Trata-se duma sociedade justa? No sentido em que se trata duma cidade completamente regulada, com os seus pesos e contrapesos, sem excessos e sem divergências, pode falar-se em justiça, mas não podemos esquecer o que fica de fora: o fundo pulsional da existência humana, a individualidade que escapa à conformação forçada. Dentro da cidade, cosmos, fora, o caos. E esta vai ser uma regra nas sociedades ocidentais: o Outro é expulso da cidadania muralhada, o leproso, o louco, o diferente. A vida tem que ser dominada, investida de sentido político, expropriada. Hoje este movimento pode ser surpreendido nas ciências biomédicas: já há genes patenteados, o que levanta a questão da propriedade da informação genética. Quem se pode apropriar dessa informação? O corpo transformado em mercadoria. O que significa que há corpos que valem mais, para os quais há medicamentos e alimentos em quantidades generosas.
Por isso as mentes têm que ser conformadas. E é cada vez mais vasta a esfera do determinismo social: os indivíduos pouco decidem sobre o bem comum. Enquanto a sua esfera de decisão privada aumenta em quantidade, com o aumento vertiginoso da oferta de bens de consumo e de serviços ligados ao lazer. Mas a qualidade dessa decisão degrada-se, perde densidade ontológica. A cidadania transforma-se numa forma de alienação sem escapatória. Uma sociedade só poderá ser justa se puser como axioma primeiro do exercício da soberania o seu próprio fim, ou seja, uma sociedade só será justa se se basear no princípio de que a estrutura social vigente deve ser a melhor possível. O que leva a que se procure sempre um grau superior de justiça.
Ora, vendo as coisas desta forma podemos concluir que não vivemos numa sociedade justa, antes de mais porque esta sociedade não abre espaços de questionamento e de superação.

Stephen Hawking coloca grandes questões sobre o Universo

A Felicidade

domingo, 9 de maio de 2010

DÚVIDAS CÉPTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO


Os objectos do nosso conhecimento são as relações de ideias (como se vê em geometria, na álgebra e na aritmética) e as relações de factos. As primeiras são afirmações intuitivamente certas, descobertas pela simples operação do pensamento e não empiricamente (são a priori). Já as segundas não são determinadas da mesma forma. Por exemplo: o facto de que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível quanto a nossa expectativa de que ele nascerá. Basta apenas que aconteça de não nascer e não haverá por isso contradição, mas uma inegável constatação.
Segundo Hume, essa é a razão da importância e da necessidade das suas investigações. Simplesmente, trata-se de uma proposta de rompimento filosófico, na forma de investigação livre, com toda a ingenuidade contida na fé cega.
Todos os raciocínios ligados às relações de factos estão ligados às noções de causa e efeito. Se dizemos que um nosso amigo está em tal lugar distante, convencemo-nos facilmente disto graças a um outro facto, como, por exemplo, uma carta nas nossas mãos enviada de onde ele supostamente esteja, que nos induza a conectar os dois factos isolados numa relação aparentemente segura e inabalável; o que dá à nossa mente uma certa garantia que, no entanto, é bastante precária.
Mas como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito? Não por raciocínios a priori, e sim por experiências de factos que nos aparecem repetidamente como estando ligados, ou seja, em conjunção.
Aquilo que não conhecemos ou que nunca vimos antes, ou não sabemos para que serve, não nos desperta a menor noção das suas causas e dos seus efeitos. Para além disso ingenuamente, pensamos que não precisaríamos da experiência de presenciar uma bola de bilhar a comunicar um movimento a outra bola, ao tocá-la, e que apenas precisaríamos de servir-nos das operações da razão para ter disto conhecimento. Isto apenas se dá graças ao hábito ou costume relativamente ao que nos é familiar e directamente conhecido, a preencher-nos o vazio da nossa própria ignorância diante das coisas aparentemente óbvias que estão à nossa volta: muitas conhecidas de nós; muitas outras, desconhecidas.
Assim, como prever um efeito sem a prévia consulta na nossa memória de correspondentes observações anteriores? Na verdade, o efeito é sempre distinto da dita correspondente causa e, portanto, nunca pode ser descoberto nela. Se nunca vimos uma pedra cair num espaço livre de suporte, após ser lançada para o alto, e desviássemos o olhar da mesma antes do início da queda, não teríamos, em absoluto, a noção registada no nosso entendimento de ser o movimento da queda um efeito do da ascensão. Como, então, concebermos como lei, por generalização, sem a devida reserva, que assim ocorrerá ad infinitum? Isto é perfeitamente compreensível: todo o efeito é um evento distinto da sua causa, não descoberto nesta e, portanto, é inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E, igualmente arbitrária, a conjunção do efeito com a causa. Portanto, é imprescindível o uso da experiência e da observação para a determinação do efeito relativamente a cada causa. A razão, baseando-se na analogia, na experiência e na observação, no máximo, reduz à sua maior simplicidade os princípios produtores dos fenómenos naturais e restringe os múltiplos efeitos particulares a um pequeno número de causas gerais, mas é limitadíssima em relação à determinação das causas gerais.
A natureza de todos os nossos raciocínios sobre os factos é a relação de causa e efeito; o fundamento é a experiência. Mas qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiência? Hume, fazendo da sua ignorância uma virtude, diz-nos que as conclusões não estão fundadas sobre raciocínios nem sobre qualquer processo do entendimento.
É lícito ao filósofo ter ao menos a curiosidade de examinar qual é o princípio da natureza humana que dota a experiência de tão forte autoridade, como o grande guia da vida humana. Os racionalistas defenderam que a razão nos permite teoricamente validar o axioma que nos diz: de causas que parecem semelhantes esperamos efeitos semelhantes. Isto parece logicamente correto, mas as coisas ocorrem de modo bem diverso: na realidade não há um princípio de indução que nos garanta a validade das inferências causais.

SOLUÇÃO CÉPTICA DESTAS DÚVIDAS
O cepticismo moderado de David Hume

Só um cepticismo moderado pode servir de base explicativa das nossas inferências causais. Mesmo não havendo um princípio da indução que nos garanta a sua verdade, nós estamos continuamente a fazer inferências causas e são não as fizéssemos não conseguiríamos sobreviver.  E, na verdade, todas as inferências tiradas da experiência são efeitos do hábito, ou costume, e não do raciocínio.
Muito importante também é a imaginação humana (e não há nada mais livre do que ela), limitada apenas ao conjunto das ideias fornecidas pelos sentidos externos e internos, mas com poderes ilimitados para misturar, combinar, separar e dividir em todas as variedades fictícias ou fantasiosas possíveis. Chegando até o ponto de mundos alternativos  poderem ser construídos pela imaginação, é essa a base da literatura, por exemplo. 
Aliás, todas as vezes que algo se apresenta à nossa memória ou aos nossos sentidos, pela força do costume, é justamente a imaginação que é levada a uma certa conjuntura que o completa e distingue de tudo o mais. Se vemos, por exemplo, uma pedra ser atirada para cima, a imaginação é capaz de antever a sua simétrica trajectória, configurando-se naquilo a que chamamos crença. Precisamente, a crença é uma concepção de um objeto mais vivo, mais vívido, mais forte, mais firme e mais estável que aquela que a imaginação, por si só, seria capaz de obter. Além disso, a crença não consiste na natureza particular ou na ordem das ideias, mas na maneira como o espírito as concebe e as sente. Em filosofia, crença é qualquer coisa sentida pelo espírito que distingue as ideias dos juízos das ficções da imaginação. Concordemos, no entanto, elucida Hume, que a crença é, na verdade, uma concepção mais intensa e mais firme do que aquele que acompanha as puras ficções da imaginação e que esta maneira de conceber nasce de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisa presente à memória e aos sentidos. Há também três outros princípios muito importantes: semelhança, contiguidade e causalidade. Tais princípios são os únicos laços que unem entre si os nossos pensamentos e que engendram a série regular de reflexão ou do discurso que, em maior ou menor grau, se realiza entre todos os homens. Mas esses princípios não nos dizem nada sobre a forma como a realidade está estruturada, são apenas princípios de associação de ideias que servem de base ao trabalho da imaginação (David Hume desvaloriza completamente a razão) - e é aqui que reside o cepticismo moderado de David Hume: nunca poderemos conhecer a realidade tal como ela é em si mesma, mas apenas as impressões que ela provoca nos nossos sentidos.  Portanto a ideia de causa e efeito não se baseia na razão, mas no hábito e na experiência, sendo imprescindível para a manutenção da vida humana.

Texto de Jorge Luiz Pinheiro Souza


(Adaptado)

Comentário de:
HUME, David. Investigação acerca do Entendimento Humano – Secções IV e V, Colceção Os Pensadores. São Paulo. Nova Cultural, 1999, pp. 47-71.
|http://pinininho.blogspot.com

David Hume: o problema da causalidade


O Problema da Causalidade
(Segundo a Investigação sobre o Entendimento)

"Não temos necessidade de temer que esta filosofia, na medida em que tenta limitar as nossas pesquisas à vida corrente, destrua os raciocínios de vida corrente e leve suas dúvidas tão longe a ponto de destruir toda a acção como toda a especulação. A natureza sempre manterá os seus direitos e, no fim, prevalecerá sobre os raciocínios abstractos. Mesmo que concluamos, por exemplo, que em todos os raciocínios tirados da experiência o espírito dá um passo que não é sustentado por nenhum progresso do entendimento, não há nenhum perigo que esses raciocínios, dos quais depende quase todo o conhecimento, sejam afectados por tal descoberta. Se o espírito não está obrigado a dar esse passo por meio de um argumento, ele deve ser conduzido por outro princípio igual em peso e em autoridade; tal princípio conservará a sua influência por tanto tempo que a natureza humana permanecerá a mesma. A natureza desse princípio bem merece que nos entreguemos ao esforço de investigar sobre ela.

Suponha-se que um homem, dotado das mais poderosas faculdades de razão e de reflexão, seja subitamente transportado por este mundo; certamente ele observaria de imediato uma contínua sucessão de objectos, um acontecimento seguir-se a outro; mas seria incapaz de descobrir outra coisa. De imediato, ele seria incapaz, por meio de algum raciocínio, de atingir a ideia de causa e efeito, pois os poderes particulares que concretizam todas as operações naturais nunca se apresentam aos sentidos; e não é razoável concluir, unicamente porque um acontecimento precede outro num único caso, que um seja a causa e o outro o efeito. A sua formação pode ser arbitrária e acidental. Não existe razão para se inferir a existência de um pela aparição do outro. Numa palavra, aquele homem, sem mais experiência, nunca faria conjecturas ou raciocínios sobre qualquer questão de facto; só estaria certo do que está imediatamente presente na sua memória e nos seus sentidos.
Suponha-se ainda que este homem tenha adquirido mais experiência e que tenha vivido por muito tempo no mundo para que tenha observado a conjugação constante de objectos e de acontecimentos familiares; que resulta dessa experiência? Ele imediatamente infere a existência de um dos objectos pela aparição do outro. Todavia, ele não adquiriu, com toda sua experiência, nenhuma ideia, nenhum conhecimento do poder oculto pelo qual um dos objectos produz o outro; e não é por nenhum progresso de raciocínio que ele é obrigado a chegar a esta conclusão. Mas ele sempre se acha determinado a tirá-la; e, mesmo que o convencêssemos que o seu entendimento de modo algum participa na operação, ele continuaria a ter o mesmo pensamento. Existe um outro princípio que o determina a estabelecer tal conclusão.
Esse princípio é o hábito ou costume. Pois, todas a vezes que a repetição de uma operação ou de um acto particular produz uma tendência no sentido de renovar o mesmo acto ou a mesma operação sem o impulso de qualquer raciocínio ou processo do entendimento, dizemos sempre que essa tendência é o efeito do costume. Ao empregar esta palavra não pretendemos ter dado a razão última de tal tendência. Apenas designamos um princípio de natureza humana, universalmente reconhecido e bem conhecido pelos seus efeitos."
|David Hume

Descartes e David Hume

René Descartes e David Hume

Faustino Vaz
Escola Secundária Manuel Laranjeira, Espinho

Empirismo e racionalismo

Imagina que enfrentaste o cepticismo e superaste o desamparo em que ele queria deixar-te. Vais pressupor que sabemos algumas coisas. Mesmo que esse conhecimento seja trivial, isso basta para os nossos propósitos. Por exemplo, sabes que "a teoria de Darwin é tratada na página 99 do manual de Biologia"; se alguém te perguntar por que razão o sabes, a tua resposta será "porque consultei o manual e vi que a teoria de Darwin era tratada na página 99". Sabes que "o mar está calmo" porque foste à praia e viste que o mar estava calmo. Nos dois casos, afirmas que tens conhecimento com base no que viste. A experiência de ver é a justificação para as tuas crenças. Daí podermos dizer que a experiência é a origem destes conhecimentos. A teoria associada à ideia de que a origem do conhecimento está na experiência é o empirismo. Na sua forma extrema, o empirismo defende que, em última instância, todo o conhecimento deriva de, ou consiste em, verdades obtidas apenas a partir da experiência (a posteriori).

Considera um exemplo diferente. Imagina que tens três gatinhos e dois cestos e que vais distribuir alguns gatinhos por um dos cestos e alguns gatinhos pelo outro. Quantas maneiras tens de o fazer? Poderás descobrir experimentando e contando todas as possibilidades. Ou poderás descobrir raciocinando da seguinte maneira: o primeiro gatinho pode ir para o cesto direito ou para o esquerdo, o que dá duas maneiras de começar; cada uma destas maneiras pode ser continuada pondo o segundo gatinho no cesto direito ou no cesto esquerdo, o que faz duas vezes duas ou quatro maneiras de realizar a tarefa; por último, o terceiro gatinho pode ir para o cesto direito ou esquerdo, o que dará um total de quatro vezes duas ou oito maneiras de distribuir os gatinhos pelos cestos. Neste caso, descobres quantas maneiras tens de distribuir os gatinhos sem recorrer a indícios empíricos; sabes a verdade previamente a qualquer indício empírico. Se tiveste dificuldade em entender este exemplo, podes simplesmente pensar num exercício de aritmética elementar como somar 85 a 23. Caso resolvas o exercício apenas pelo pensamento, dispensando o recurso a uma máquina de calcular, também neste caso sabes a verdade previamente a qualquer indício empírico. Diz-se por isso que estes conhecimentos são a priori: a sua origem está na razão. A teoria associada à ideia de que a origem do conhecimento está na razão é o racionalismo. Na sua forma extrema, o racionalismo defende que, em última instância, todo o conhecimento deriva ou depende de verdades obtidas apenas a partir da razão (a priori).

As noções de a priori e de a posteriori exprimem modalidades epistémicas. Isto quer dizer simplesmente que o a priori e o a posteriori são modos de conhecimento. Os exemplos dos gatinhos e da soma é elucidativo: podes saber certas coisas de um modo a priori ou a posteriori. Se sabes através da experiência, sabes a posteriori, se sabes pelo pensamento apenas, sabes a priori. Em si, as crenças não são a priori ou a posteriori. Mas não penses que a noção de a priori é pacífica entre os filósofos especializados na discussão de questões epistémicas. Aceitar que podemos conhecer coisas a priori é, em geral, aceitar que podemos saber coisas acerca do mundo sem olhar para ele, independentemente da experiência. Contudo, não é fácil explicar como isso é possível, e alguns filósofos rejeitam que isso seja possível.

Arrumar os filósofos mais importantes da Idade Moderna em racionalistas e empiristas poderá ser útil para fins didácticos, mas deves ter consciência desde já que na maior parte dos casos se trata de uma simplificação grosseira por não dar conta das diferenças subtis entre os filósofos em questão. Poucos foram os filósofos que exemplificaram sem sombra de dúvida a forma extrema de racionalismo ou a forma extrema de empirismo. Isto quer dizer que na maior parte dos casos há apenas uma diferença relativamente ao tipo de explicação que se tem do a priori. Dito isto, vais agora estudar Descartes, filósofo francês do século XVII, do lado do racionalismo; e do lado do empirismo, David Hume, filósofo escocês do século XVIII.

O objectivo desta lição não é apresentar toda a filosofia de Descartes e de David Hume e as objecções que enfrentam; é apenas o de mostrar que posição têm perante os seguintes problemas filosóficos: Que coisas podemos saber? E de que modo adquirimos esse conhecimento?

Questões de revisão

  1. Segundo o empirismo, qual é a justificação última das crenças?
  2. Segundo o racionalismo, qual é a justificação última das crenças?
  3. Mostra, recorrendo ao exemplo dos gatinhos ou ao exemplo da soma, que o a priori e o a posteriori são modalidades epistémicas e não propriedades das crenças.

Descartes

O Cogito

Descartes recorreu a argumentos cépticos como um instrumento para chegar ao conhecimento seguro. Apesar de o fazer, Descartes não é um céptico. Vejamos, por exemplo, o argumento do sonho e o argumento do génio maligno. No primeiro, Descartes defende que não é possível fazer a distinção entre estar acordado e estar a sonhar, porque podes sonhar que estás a fazer um teste para te certificares de que estás acordado. No segundo, a suposição de um génio maligno bastante poderoso que se empenha em enganar-te mesmo quando acreditas que 2 + 2 = 4, leva-te a suspender o juízo em relação às verdades lógicas e matemáticas, por mais simples que sejam. Mas por mais que tentes duvidar da tua existência, supondo que estás apenas a sonhar ou a ser enganado por um génio maligno que te leva a pensar que existes, terás nesse momento a certeza de que alguma coisa existe para que ocorra a actividade de duvidar. Terá de haver um sonhador para sonhar a sua própria existência e um enganado para ser enganado. Descartes conclui que, enquanto pensar que está a ser enganado por um génio maligno, terá de existir como ser pensante. Trata-se do famoso cogito ergo sum (penso; logo, existo).

Através de argumentação a priori, Descartes obteve conhecimento acerca de algo que realmente existe: ele próprio como ser pensante. Para compreenderes melhor o que garante este conhecimento teremos de analisar a certeza implicada pelas crenças "Estou a pensar" e "Existo". Em primeiro lugar, ambas são incorrigíveis, o que se define do seguinte modo: se alguém acredita que está a pensar ou que existe, então não pode estar errado. Em segundo lugar, têm a propriedade de ser auto-verificáveis, a qual contribui para a incorrigibilidade e se define do seguinte modo: se alguém afirma estas proposições, então essa afirmação é verdadeira.

Vejamos melhor o que isto quer dizer. Considera a proposição expressa pela frase P: "Estou a pensar". Se pensares que P é falsa, exprimes nesse momento uma contradição. Mas não se trata de uma contradição lógica porque "Eu não estou a pensar" e "Eu não existo" não são falsas em todas as circunstâncias possíveis devido à sua forma lógica, como acontece com a proposição expressa pela frase "O mar tem peixes e o mar não tem peixes"; como é óbvio, em estados do mundo em que eu não existisse, aquelas proposições seriam verdadeiras. As negações de "Estou a pensar" e de "Existo" derrotam-se a si próprias do ponto de vista pragmático, auto-falsificam-se no preciso momento em que são ditas, e não devido à sua forma lógica; podemos compará-las à proposição expressa pela frase "Estou ausente" dita por ti quando o teu professor de filosofia faz a chamada. Assim, sempre que alguém diz ou mentalmente concebe "Estou a pensar" e "Existo", as proposições expressas por estas frases terão de ser verdadeiras. Mas estas não são verdades lógicas como "Chove ou não chove" ou verdades analíticas como "Nenhum solteiro é casado"; são verdades pragmáticas, as quais se definem por se auto-falsificarem quando alguém afirma a sua negação.

Questões de revisão

  1. Será que Descartes é realmente um céptico? Porquê?
  2. De que modo Descartes obteve conhecimento do Cogito?
  3. As frases "Estou a pensar" e "Existo" quando ditas por alguém exprimem verdades pragmáticas. Porquê?

Deus

Chegado aqui, Descartes pode dizer que tem certezas na primeira pessoa acerca de si próprio como eu pensante. Mas isto é pouco. Subsiste a questão de saber se o mundo exterior existe. Daí que Descartes precise de uma ligação ou "ponte" que lhe permita vencer a distância entre este eu pensante e o mundo. A premissa "Deus existe e não é enganador" irá desempenhar esse papel. Ora, a existência deste Deus que não é enganador precisa, por sua vez, de ser provada. Sem essa prova não há maneira de refutar o cepticismo. Descartes teria nesse caso apenas umas quantas verdades acerca de si próprio e nada mais seria seguro. Destruindo a hipótese do génio maligno ao estabelecer a existência de um Deus sumamente bom e sábio, Descartes obtém a garantia absoluta de que o mundo é como pensamos que é, na condição de usarmos correctamente as faculdades com que Deus equipou o homem.

Para o fazer, Descartes apresenta argumentos a priori a favor da existência de Deus que supõe conclusivos. Esses argumentos são a priori porque se baseiam na ideia de Deus que Descartes descobre em si apenas com a ajuda da razão. O facto de Descartes não ter optado por argumentos a posteriori a favor da existência de Deus quando os tinha à sua disposição, poderá mais uma vez indicar a importância que depositava no uso da razão. Neste contexto, esses argumentos não serão analisados. O que é importante saberes é que, segundo Descartes, também este conhecimento de Deus resulta do raciocínio, e não da experiência; Deus, tal como o Cogito, não pode ser provado recorrendo à observação. Nenhum indício sensorial ou experimental pode mostrar que as proposições "Existo como ser pensante quando estou a pensar" e "Deus existe" são verdadeiras, ou justificar que acredites nelas.

O mundo exterior

Sustentado o mundo no pilar de Deus, Descartes irá tratar das coisas físicas. A questão que o ocupa é a de saber qual é a natureza das coisas físicas. Para isso, sujeita à nossa consideração o seguinte exemplo. Temos um pedaço de cera com uma certa forma, tamanho, cor, perfume; através dos sentidos, temos experiência destas propriedades; mas se o aproximares do fogo, estas propriedades alteram-se, embora o pedaço de cera seja o mesmo. Logo, estas propriedades não pertencem à natureza ou essência da cera. Isto quer dizer que a experiência não me permite captar a essência da cera e o mesmo sucede com qualquer outra coisa física. Deste modo, só o raciocínio descobre a essência da cera; assim, a cera muda de forma, tamanho, cor, perfume e o mesmo se dirá de qualquer outra propriedade de que temos experiência através dos sentidos; mas se deixar de ser uma coisa extensa no espaço deixará de ser o que é. Logo, a extensão pertence à sua essência e à de qualquer outra coisa física.

O que fazer a partir daqui? Que coisas podemos saber acerca do mundo exterior e de que modo adquirimos esse conhecimento? Partindo desta descoberta metafísica, Descartes recorre à imutabilidade de Deus para estabelecer as leis básicas da física. Parece seguro dizer que a imutabilidade de Deus impõe algumas restrições ao que estas leis deviam ser. Assim, as duas primeiras leis da física, que são leis do movimento, são as que têm uma conexão mais íntima com a imutabilidade de Deus. A primeira diz que um corpo permanece no estado em que se encontra, a menos que alguma coisa o altere; e a segunda diz que um corpo em movimento, se as condições se mantiverem, continua a mover-se em linha recta, o que antecipa a lei da inércia rectilínea de Newton.

À medida que o conhecimento progride a partir destas leis básicas, mais necessária se torna a observação e a experiência. Como leis alternativas podem ser deduzidas das leis básicas, a experiência será indispensável para se decidir qual delas exprime o mecanismo de que resulta um determinado fenómeno. É assim abusivo atribuir a Descartes a ideia de que estas leis podem ser deduzidas da natureza de Deus através de um raciocínio puramente lógico.

Esta descoberta metafísica de que toda a matéria é extensão contribui para derrubar a concepção aristotélica de natureza. Segundo esta concepção, os céus não são feitos da mesma matéria que a Terra; além disso, a matéria dos céus tem um grau de perfeição superior à matéria da Terra. Como esta extensão é homogénea, não há lugar para matérias diferentes e graus diferentes de perfeição. Estão assim criadas as condições para que se unifique a explicação astronómica dos céus e a explicação mecânica da Terra. Um mundo que na sua essência é extensão tridimensional só é conhecível através de uma física matematizada. Nesta física não há definitivamente lugar para noções qualitativas, como a de graus de perfeição. E também parece não haver para as noções qualitativas e pré-filosóficas do homem comum; este, apesar de ter experiência de fenómenos como a gravidade e relações entre massas, tempos e velocidades, não está em condições de os explicar de maneira objectiva.

Questões de revisão

  1. Por que razão Deus é conhecido a priori?
  2. Que relação há entre as duas primeiras leis da física e a natureza de Deus?
  3. Será que, segundo Descartes, todo o conhecimento físico tem uma justificação a priori? Porquê?

Conclusão

O que somos e o que temos perante nós e como o conhecemos? Temos um eu pensante que funciona sobretudo de maneira dedutiva, um mundo cuja essência é extensão e um Deus que é a garantia do bom uso das nossas capacidades racionais. Nas suas propriedades essenciais, o eu e o mundo são conhecidos a priori. Mas muito conhecimento físico exige o concurso da experiência e foi isso o que o próprio Descartes fez nas suas obras científicas. Descartes vence assim o cepticismo.

Questões de discussão

  1. Descartes estabelece a existência de Deus para justificar a confiança nas nossas capacidades racionais; mas, por sua vez, as nossas capacidades racionais justificam a existência de Deus. Será o argumento persuasivo? Porquê?
  2. Discute a seguinte afirmação: "Se Descartes levasse consistentemente a dúvida filosófica até ao fim, a própria noção de dúvida seria suspensa e o seu pensamento ficaria paralisado."

Hume

Impressões e ideias

Hume pensa que os conteúdos da mente são as impressões e as ideias. A diferença entre umas e outras é que as impressões são mais vívidas que as ideias quando surgem na consciência. Hume diz que as ideias são pálidas imagens das impressões no pensamento. Isto compreende-se tendo em conta a sua afirmação central de que as ideias derivam e por isso dependem das impressões. Para defender esta afirmação central, Hume recorre ao exemplo da criança que tem a ideia de escarlate ou laranja, amargo ou doce, porque lhe foram apresentados objectos que produziram nela as impressões correspondentes; seria absurdo pensar que a criança produz as impressões a partir das ideias. Mas de onde vêm as impressões? As impressões são o resultado da experiência, que consiste na percepção e introspecção. Através da percepção vemos, ouvimos, cheiramos, etc., algo de que temos consciência e que é imediatamente presente à mente pelos sentidos. Por sua vez, a introspecção é a percepção dos conteúdos da mente — as impressões e as ideias.

A justificação do conhecimento e suas consequências

Hume defende que a justificação do conhecimento está nas impressões. Segundo Hume, este facto determina 1) a extensão do conhecimento e 2) que frases têm sentido. Para sabermos se uma frase tem sentido, o teste que terá de ser feito consiste simplesmente em ver se a proposição que ela exprime deriva de uma impressão.

Imagina que tens a ideia de uma montanha X com neve. Perante isto, Hume faria a seguinte pergunta: De que depende e deriva essa ideia? E tu provavelmente responderias que deriva da experiência de ver (impressão visual) a montanha X com neve. Imagina que tens a ideia de alegria intensa. A mesma pergunta seria feita e tu provavelmente responderias que essa ideia depende da experiência de ter certos estados mentais a que tens acesso imediato por introspecção e que são produzidos por um 18 no teste de Matemática ou pela vitória do teu clube no campeonato de futebol. Segue-se assim que a proposição expressa pela frase "A montanha X tem neve no mês de Janeiro" pode ser verificável ou falsificável pela observação; e que a proposição expressa pela frase "Sinto uma alegria intensa quando tenho um 18 a Matemática" pode ser verificável ou falsificável pela introspecção.

Hume diz que ambas as frases têm sentido e podem exprimir conhecimento. E como são verificáveis ou falsificáveis pela observação ou introspecção, exprimem proposições empíricas. Mas para Hume há também frases analíticas como "Um quadrado tem quatro lados" ou "Um dia húmido não é um dia seco". Uma frase é analítica quando a sua verdade ou falsidade depende exclusivamente do significado dos termos nela envolvidos. A negação de uma verdade analítica é auto-contraditória, o que não acontece quando se nega uma frase empírica. Para uma frase não ser desprovida de significado terá de ser empírica ou analítica. A conclusão que daqui se retira é devastadora e tem um enorme alcance. Basta pensares em frases como "Deus existe", "O homem é livre e moralmente responsável", ou "A alma é imortal", para concluíres que as proposições expressas não são empíricas nem analíticas — pelo menos, assim pensava Hume. Logo, como o mesmo se passa com todas as outras frases metafísicas, segundo Hume, todas são desprovidas de significado. E como são desprovidas de significado, não podem exprimir qualquer espécie de conhecimento. A este famoso argumento de Hume chama-se "argumento antimetafísico". Na sua vida pessoal, Hume foi consistente com este argumento. No leito de morte, houve quem aguardasse ansiosamente a sua conversão. Em vão. Nesse momento extremo, manteve a doçura e serenidade que o distinguiam.

Questões de revisão

  1. Segundo Hume, que relação há entre as impressões e as ideias?
  2. Segundo Hume, qual é a justificação última do conhecimento?
  3. Que teste se faz às frases para saber se elas têm sentido e se exprimem conhecimento? Apoia a tua resposta aplicando o teste a um exemplo criado por ti.
  4. Mostra que razão poderá haver para pensar que a frase "Deus existe" não é empírica nem analítica.

Causalidade, inferência indutiva, eu e mundo

O teste adoptado por Hume para determinar se uma frase tem sentido e pode exprimir conhecimento não o levou apenas ao abandono de crenças metafísicas. Noções centrais como as de causalidade, eu e mundo terão de ser drasticamente redefinidas.

Vejamos como. Em que experiência se baseia a noção de causalidade? Na experiência de ver repetidamente um certo tipo de objecto ou evento ser seguido por um objecto ou evento de outro tipo. Essa experiência de contiguidade leva a mente a inferir um determinado objecto ou evento sempre que tem a impressão do objecto ou evento que habitualmente o antecede. Segundo Hume, a causalidade é simplesmente uma conexão mental que a experiência do passado formou em nós; é um hábito mental produzido por factos contingentes ligados à natureza humana. Daqui resulta que a ideia tradicional de causalidade como conexão necessária entre duas coisas terá de ser abandonada e redefinida. Não temos a impressão de uma conexão necessária entre duas coisas; o que temos é apenas a impressão de contiguidade entre objectos ou eventos. O que deste modo se forma em nós é apenas um hábito mental e não há lugar para qualquer demonstração a priori da existência de relações causais no mundo.

Este hábito mental de estabelecer conexões causais está na base de inferências de factos observados para factos não observados e do passado para o futuro. Essas inferências são argumentos indutivos como os seguintes: da experiência de ter observado que a cadeira onde estou sentado aguenta o meu peso, concluo que será bastante provável que o mesmo aconteça no futuro; do facto de ter tido a experiência de que o pão alimenta e dá energia, concluo que todo o pão alimenta e dá energia. Mas o que nos leva a pensar assim? A resposta é que esperamos que os casos futuros sejam semelhantes aos casos do passado e que o curso da natureza continue uniformemente a ser o mesmo. A isto chama Hume o Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN).

Há alguma justificação para PUN, ou estamos mais uma vez na presença de um hábito mental contingente? Vejamos o que sucede se tentarmos justificar PUN através de um argumento indutivo. PUN afirma que as uniformidades do passado continuarão no futuro. Em que premissa podemos apoiar esta conclusão? Na premissa de que a natureza tem sido uniforme nas minhas observações do passado. Mas como Hume diz que todos os argumentos indutivos pressupõem PUN como premissa, o argumento é circular: pressupõe como premissa o que tenta estabelecer como conclusão. Logo, a justificação indutiva de PUN falha.

E será que uma justificação dedutiva de PUN teria sucesso? Mais uma vez, Hume diz que não. Se apreciares mais uma vez o argumento do parágrafo anterior, terás de concluir que ele não é dedutivamente válido. PUN não pode ser deduzido das observações feitas no passado. Um outro tipo de justificação dedutiva seria deduzir PUN das definições dos termos que usa. Nesse caso PUN seria uma verdade conceptual como "Um dia húmido não é um dia seco". Assim, tal como da definição de "dia húmido" podemos deduzir que "um dia húmido não é um dia seco", também seria possível deduzir que "a natureza é uniforme" da definição de "natureza". Mas é evidente que não há qualquer contradição se dissermos que a natureza deixará subitamente de ser uniforme. Logo, esta tentativa também falha. PUN não é uma verdade conceptual.

Mas se todas estas tentativas falham, o que é PUN então? Mais uma vez, é simplesmente um hábito mental contingente, ainda que bastante importante na aquisição de conhecimento empírico. Tal como a noção de causalidade, não tem uma demonstração a priori. Acontece que a natureza humana funciona assim, mas ninguém pode honestamente excluir a possibilidade de que um dia deixe de funcionar da mesma maneira.

Intuitivamente supomos que os "eus" são entidades que persistem através do tempo e da mudança. Claro que acontecem mudanças na vida de uma pessoa, mas presumimos que não são essenciais: no fundo de cada um de nós há um substrato do nosso pensamento, da nossa percepção, de todas as nossas propriedades psicológicas. Esse substrato permanece inalterável. Hume defende que esta concepção de eu não tem base empírica. Assim, se por introspecção tentarmos compreender o que é afinal este eu, veremos apenas uma sucessão de impressões momentâneas e efémeras numa espécie de teatro em contínua mudança. Nada mais vemos além disto. A introspecção não capta qualquer substrato inalterável. Ora, o erro da nossa concepção intuitiva está no facto de a mente sentir a experiência de objectos relacionados como se fosse a experiência de um objecto único e imutável. O que se passa é que vemos unidade naquilo que de facto é diversidade. Logo, a introspecção apenas nos autoriza a conceber o eu como um feixe de percepções mutáveis, e não como um substrato permanente.

A mesma estratégia é seguida por Hume quando se trata de examinar a noção de mundo externo. Intuitivamente supomos que o mundo externo é feito de objectos estáveis. Mas aquilo de que temos experiência directa é momentâneo e efémero. Logo, a nossa concepção intuitiva de que o mundo é feito de objectos distintos e contínuos está errada. A experiência não fornece justificação para pensar desse modo.

Questões de revisão

  1. Por que razão pensa Hume que a causalidade não pode ser definida como uma conexão necessária entre duas coisas?
  2. Em que se baseiam as inferências causais, segundo Hume?
  3. Por que razão pensa Hume que o eu não é um substrato permanente?
  4. Em que confusão pensa Hume que se baseia a ideia de eu como substrato permanente?
  5. Será que, segundo Hume, podemos justificar a nossa crença em objectos estáveis? Porquê?

Conclusão

Como acabaste de ver, a redefinição levada a cabo por Hume de crenças tão fundamentais como as de causalidade, inferência indutiva, eu e mundo externo pode abalar seriamente a tua confiança nas nossas capacidades de justificação racional. Essa é a razão que leva alguns filósofos a dizer que os seus argumentos são um exercício de cepticismo. Mas talvez Hume esteja apenas a dizer que o nosso conhecimento é mais limitado do que os racionalistas julgaram. Esta é precisamente a opinião de outros filósofos. Para eles, Hume é céptico em relação às afirmações de conhecimento a priori dos racionalistas, o que é muito diferente de ser céptico em relação à possibilidade global do conhecimento. Assim, em vez de ser um céptico, Hume é um "naturalista", alguém que argumenta a favor da ideia de que as nossas noções centrais não são estabelecidas pela razão, mas pelo funcionamento da natureza humana. Somos simplesmente feitos dessa maneira e isso é contingente, o que quer dizer que podíamos não ser feitos dessa maneira. Se Hume é céptico ou "naturalista", é uma questão que te cabe avaliar criticamente e tomar posição.

Hume mantém-se fiel à sua teoria empirista do conhecimento. Parece que a única justificação plausível do conhecimento genuíno é empírica. Mas afinal que conhecimento temos? Vimos no início desta lição que Hume só admitia frases empíricas ou analíticas. Mas como as verdades analíticas (segundo Hume, as verdades lógicas e matemáticas) dependem exclusivamente dos significados dos termos e apenas exprimem conhecimento linguístico e não substancial, o único conhecimento genuíno acerca do mundo é empírico. De fora deste quadro apertado é deixado um conjunto significativo de noções filosóficas fundamentais até aí aceites, como as noções já discutidas de eu, mundo e causalidade. Como não têm justificação empírica, estas noções terão de ser abandonadas. Diz-se, por isso, que Hume foi revolucionário e que a sua filosofia teve o saudável efeito de obrigar a discutir e redefinir noções fundamentais.

Questões de discussão

  1. Hume defende que não temos livre-arbítrio porque podemos inferir a nossa acção do nosso carácter e das nossas motivações. Será isto compatível com a sua teoria da causalidade?
  2. "A frase "a indução é racional" é analítica. Logo, não faz sentido procurar justificar racionalmente a indução. Ela é racional por definição." Concordas? Porquê?
  3. "Hume está errado. Por duas razões. 1) Há impressões que derivam de ideias e 2) sem conceitos prévios que fazem parte de uma linguagem as impressões nada significam." Concordas? Porquê?
  4. Hume é um céptico ou um "naturalista"? Porquê?
  5. Serão as verdades analíticas meramente linguísticas? Apoia a tua justificação num exemplo.
  6. Discute o seguinte argumento: "Tal como por vezes as células de um corpo são substituídas e a sua unidade permanece, também o feixe de impressões pode mudar e o eu de que fazem parte permanecer idêntico. Logo, o eu não se confunde com as impressões e é uma unidade."
|Faustino Vaz, Crítica na Rede / Arte de Pensar

sábado, 1 de maio de 2010

Ordem dos Advogados dos Açores quer droga grátis em centros de saúde



Conselho Distrital do arquipélago defende ministração gratuita de drogas para evitar o tráfico e roubos

O presidente da delegação regional da Ordem dos Advogados (OA) dos Açores, Rui Vieira, defende a aquisição de droga pelo Estado para ser ministrada a toxicodependentes, de forma controlada e gratuita nas unidade de saúde. O objectivo será para desvalorizar o elevado preço que os estupefacientes atingem no mercado negro e combater quem vive do seu comércio ilegal.

"Todos sabemos que uma das formas de combater o problema da traficância é desvalorizar a droga", explica Eduardo Vieira. "O traficante só tem interesse em traficar porque tem margens de lucro assustadoras. Logo, se arranjarmos mecanismo de desvalorizar o produto, ele deixa de ter interesse em traficar, o número de traficantes será menor e o problema, em parte, resolvido", frisou o advogado dos Açores.

O advogado, também presidente da Assembleia Municipal da Ribeira Grande, preconiza a solução para dissuadir "a acção de traficantes que obtêm lucros fabulosos à custa de pessoas com necessidade de roubar para alimentar o vício". Como, por exemplo, no tráfico de heroína.

Opinião que não gera consenso. João Goulão, presidente do Instituto de Droga e Toxicodependência (IDT), defende que, "na realidade portuguesa, não é uma prioridade, até porque é uma solução muito dispendiosa", explicou ao DN. "Para Portugal pensar nisso, terá de haver um debate a nível internacional, até porque os destinatários deste tipo de programa é uma franja muito reduzida", concluiu.

Carlos Almeida, presidente do Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados, assumiu ao DN que também não concorda com a ideia. "Isso é mais uma despesa para o Estado que não faz sentido", explica o advogado. "Acho é que temos de ser diligentes e responsáveis e por isso não concordo nada com esta ideia."

António Cabrita, presidente do Conselho Distrital de Faro, admite que não tem opinião formada sobre o assunto, mas que a ideia "não choca mas é preciso fazer uma profunda reflexão", concluiu o advogado.

A posição do presidente do Conselho Distrital dos Açores surge após a informação veiculada pelo Ministério Público e forças policiais de que, entre 2008 e 2009, se registou um aumento no número de crimes contra o património (roubos e furtos) no concelho da Ribeira Grande, associados ao consumo de droga. Uma das soluções passaria pelo Estado, encarando o consumidor viciado como alguém doente que necessita de ser curado, assumir a compra legal de droga para dotar as unidades de saúde açorianas de estupefacientes. Produtos que conseguiria adquirir no estrangeiro a preços baratos - incluindo os resultantes de apreensões policiais -, que seriam depois ministrados gratuitamente a quem dependesse deles, sob a orientação e controlo do respectivo médico de família. Nesta lógica, "o médico dá a dose e o substituto necessário para que, ao longo de algum tempo, o toxicodependente se vá desligando da sua dependência. Se tiver tal apoio, não terá necessidade de comprar droga, nem de roubar ou furtar para a adquirir".

Eduardo Vieira reafirma a convicção de que, para caírem os preços proibitivos praticados no comércio ilegal, há que tornar a droga barata, "e oferecê-la a quem precisa". Tudo com controlo, através dos hospitais, centros de saúde e médicos de família. Eduardo Vieira considera que deveriam ser atribuídos apoios a municípios visando a criação de postos de trabalho para pessoas com maiores limitações, decorrentes da sua propensão para o consumo.
|Paulo Faustino, DN 1/5/2010

Proposta de Trabalho:

1. Elabore o mapa argumentativo deste texto.
2. Procure falácias nos argumentos apresentados no texto.
3. Concorda com a tese defendida pelo presidente da delegação regional da ordem dos advogados dos Açores? Considera os seus argumentos pertinentes? Porquê?
3.1. O contra-argumentos que são apresentados pelos opositores a essa tese são consistentes? Fundamente a sua resposta.
4. identifique o problema a que a tese indicada em 3 procura dar resposta.
4.1. Apresente a sua solução para o problema, fundamentando-a com 4 argumentos pertinentes.
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Grau de dificuldade: Nível 3 (de 5).
Competências treinadas: Análise de Texto; Interpretação Argumentativa; Capacidade de Argumentação.
Conteúdos: Argumentação; Falácias.
Tema: A droga/ Medidas para combater a droga.
Duração média recomendada para a execução da actividade: 2 horas.
11º Ano