quarta-feira, 16 de março de 2011

Liberdade de expressão nos EUA não cobre incitamento ao suicídio

William Melchert-Dinkel, um enfermeiro americano de 48 anos, foi considerado culpado por um Tribunal do Estado de Minnesotta de encorajar, a partir de fóruns online, duas pessoas a suicidarem-se.

Melchert-Dinkel, que arrisca uma pena de prisão de 15 anos, navegava em fóruns na Internet fazendo-se passar por uma enfermeira que explicava, passo a passo, quais as melhores e mais eficazes formas de cometer suicídio.
Mark Drybrough, britânico de 32 anos e Nadia Kajouji, canadiana com apenas 17 anos, foram dois dos cibernautas que ouviram os “conselhos” de Dinkel.
De acordo com a sentença do juiz Thomas Neuville, parcialmente transcrita pelo “El País”, “Melchert-Dinkel aconselhou intencionalmente Mark Drybrough, de Coventry, Inglaterra, (...) sobre como suicidar-se. Mark Drybrough, com efeito, pôs fim à sua vida a 27 de Julho de 2005... Melchert Dinkel aconselhou como suicidar-se e incitou a fazê-lo Nadia Kajouji, nascida a 6 de agosto de 1989, em Ottawa, no Canadá. Nádia Kajouji suicidou-se a 10 de Março de 2008.”
Este caso obrigou os EUA a ponderar sobre os limites da liberdade de expressão, valor altamente defendido no país e consagrado na primeira emenda da Constituição.
O tribunal acabou por decidir que a intenção criminosa de William Melchert-Dinkel tinha primazia sob a sua liberdade de expressão na Internet, fazendo desta decisão a primeira do género já que é a primeira vez que um juiz norte-americano considera alguém culpado de um delito desta índole cometido através da Internet e com efeitos fora das fronteiras nacionais dos EUA.
O advogado do arguido, Terry Watkins, tentou evitar este veredicto alegando que não só o enfermeiro estava a exercer o seu direito à liberdade de expressão, como de qualquer maneira, os suícidos tinham ocorrido no Reino Unido e no Canadá, países onde as leis do Minnesota sobre a assitência ao suicídio não teriam efeito. O advogado acrescentou que a decisão das vítimas estava já tomada anteriormente.
Mas o magistrado não se mostrou convencido com as alegações de Watkins, sublinhando que o arguido não estava meramente a promover ideias sobre suicídio, mas sim a incitá-lo, directa e intencionalmente, e que a predisposição das vítimas para cometer suicídio não era um argumento de defesa válido.
O anjo da morte, como Dinkel já é chamado pela imprensa, é pai de duas jovens e está já proibido de utilizar a Internet sem autorização judicial.
O caso de William Melchert-Dinkel, cuja duração da pena de prisão deverá ser determinada durante as próximas semanas, levanta nos EUA o debate sobre os limites daquele que é um direito de geometria variável, a liberdade de expressão.

|Fonte: Público online - 16.03.2011

terça-feira, 1 de março de 2011

O conhecimento como crença verdadeira justificada


O problema da origem do conhecimento
Introdução

A epistemologia, também chamada teoria do conhecimento ou gnoseologia, é o ramo da filosofia interessado na investigação da natureza, fontes e validade do conhecimento. Entre as questões principais que ela tenta responder estão as seguintes: O que é o conhecimento? Como nós o alcançamos? Podemos conseguir meios para defendê-lo contra o desafio céptico? Essas questões são, implicitamente, tão velhas quanto a filosofia.
Um passo óbvio na direcção de responder à primeira questão é tentar uma definição de conhecimento. A definição padrão, preliminarmente, é a de que o conhecimento é crença verdadeira justificada. Esta definição parece plausível porque, ao menos, ela dá a impressão de que para conhecer algo alguém deve acreditar nele, que a crença deve ser verdadeira, e que a razão de alguém para acreditar deve ser satisfatória à luz de algum critério, pois alguém não poderia dizer conhecer algo se a sua razão para acreditar fosse arbitrária ou aleatória. Assim, cada uma das três partes da definição parece expressar uma condição necessária para o conhecimento, e a reivindicação é a de que, tomadas em conjunto, elas são suficientes.

A origem do conhecimento
Paralelamente a esse debate sobre como definir o conhecimento há um outro sobre como o conhecimento é adquirido. Na história da epistemologia tivemos duas principais escolas de pensamento sobre o que constitui o meio mais importante para o conhecer. Uma é a escola "racionalista", que mantém que a razão é responsável por esse papel. A outra é a "empirista", que mantém que é a experiência, principalmente o uso dos sentidos, ajudados, quando necessário, por instrumentos, que é responsável por tal papel.
O paradigma de conhecimento para os racionalistas é a matemática e a lógica, onde verdades necessárias são obtidas por intuição e inferência racionais. Questões sobre a natureza da razão, a justificação da inferência e a natureza da verdade, especialmente da verdade necessária, são um desafio para esta corrente.
O paradigma dos empiristas é a ciência natural, onde observações e experimentações são cruciais para a investigação.

Definição de Conhecimento
A definição de conhecimento já mencionada – o conhecimento é uma crença verdadeira justificada - é entendida como uma análise do conhecimento no sentido proposicional. A definição é obtida perguntando que condições têm de ser satisfeitas quando queremos descrever alguém como conhecendo algo. Ao dar a definição enunciamos o que esperamos que sejam as condições necessárias e suficientes para a verdade da afirmação "S sabe que p", onde "S" é o sujeito epistémico, o suposto conhecedor, e "p" a proposição.
Parece correcto esperar que se S sabe que p, então p deve, ao menos, ser verdadeira. Parece certo esperar que S deve não meramente supor ou esperar que p é o caso, mas que deve ter um atitude epistémica positiva em relação a p: S deve acreditar que ela é verdadeira. E se S acredita em alguma proposição verdadeira enquanto ela não tem nenhum fundamento, ou fundamentos incorretos, ou meramente fundamentos arbitrários ou imaginários, não diríamos que S conhece p; querendo dizer que S deve ter bases para acreditar que p, em algum sentido propriamente justificado de assim proceder.<…>.
Há uma perspectiva, chamada "infalibiismo", que oferece exactamente um tal recurso. Ela estabelece que se é verdadeiro que S conhece p, então S não pode estar enganado em acreditar em p, e portanto a sua justificação para acreditar em p garante a sua verdade. A afirmação é, em resumo, que alguém não pode estar justificado na crença de uma proposição falsa.
Essa perspectiva é rejeitada pelos "falibilistas", cuja afirmação é a de que alguém pode de facto ter uma justificação para acreditar em algum p embora ele seja falso.
| A. C. Grayling, Epistemology. Bunnin and others (editors); The Blackwell Companhion to Philosophy. Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers Ltd, 1996. (texto adaptado).
A Teoria CVJ
Suponhamos que o conhecimento requer estas três condições. Será que isto é suficiente? Será que estas condições não são apenas separadamente necessárias, mas também conjuntamente suficientes? Chamarei CVJ à teoria que afirma que assim é. Esta teoria diz que ter conhecimento é a mesma coisa que ter crenças verdadeiras justificadas:
(CVJ) Para que qualquer indivíduo S e para qualquer proposição p, S conhece p se e somente se

1. S acredita em p
2. p é verdadeira
3. a crença de S em p está justificada

A Teoria CVJ afirma uma generalização. Diz o que é o conhecimento para qualquer pessoa e para qualquer proposição p. Por exemplo,suponhamos que S és tu e que p = «A Lua é feita de queijo verde». A teoria CVJ diz o seguinte: se sabes que a Lua é feita de queijo verde, então os enunciados 1, 2 e 3 devem ser verdadeiros. E se não sabes que a Lua é feita de queijo verde, então pelo menos um dos enunciados de 1 a 3 deve ser falso. A a expressão «se, e somente se» diz-nos que são dadas condições necessárias e suficientes para o conceito definido.
Três Contra-Exemplos à Teoria CVJ
Em 1963, o filósofo Edmund Gettier publicou dois contra-exemplos para a teoria CVJ. O que é um contra-exemplo? É um exemplo que contradiz o que diz uma teoria geral. Um contra-exemplo contra uma generalização mostra que a generalização é falsa. A teoria CVJ diz que todos os casos de crença verdadeira justificada são casos de conhecimento. Gettier pensa que estes dois exemplos mostram que um indivíduo pode ter uma crença verdadeira justificada mas não ter conhecimento. Se Gettier tiver razão, então as três condições indicadas pela teoria CVJ não são suficientes.
Eis um dos exemplos de Gettier:
Smith trabalha num escritório. Ele sabe que alguém será promovido em breve. O patrão, que é uma pessoa em quem se pode confiar, diz a Smith que Jones será promovido. Smith acabou de contar as moedas no bolso de Jones, encontrando aí 10 moedas. Smith tem então boas informações para acreditar na seguinte proposição:

a) Jones será promovido e Jones tem 10 moedas no bolso.
Smith deduz, então, deste enunciado o seguinte:
b) O homem que será promovido tem 10 moedas no bolso.

Suponha-se agora que Jones não receberá a promoção, embora Smith não o saiba. Em vez disso, será o próprio Smith a ser promovido. E suponha-se que Smith também tem dez moedas dentro do bolso. Smith acredita em b, e b é verdadeira. Gettier afirma também que Smith acredita justificadamente em b, dado que a deduziu de a. Apesar de a ser falsa, Smith tem excelentes razões para pensar que é verdadeira. Gettier conclui que Smith tem uma crença verdadeira justificada em b, mas que Smith não sabe que b é verdadeira.
O outro exemplo de Gettier exibe o mesmo padrão. Um sujeito deduz validamente uma proposição verdadeira a partir de uma proposição que está muito bem apoiada por informações, embora esta seja falsa, apesar de o sujeito não o saber. Quero agora descrever um tipo de contra-exemplo à teoria CVJ na qual o sujeito raciocina não dedutivamente.
O filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970) refere um relógio muito fiável que está numa praça. Esta manhã olhas para ele para saber que horas são. Como resultado ficas a saber que são 9.55. Tens justificações para acreditar nisso, baseado na suposição correcta de que o relógio tem sido muito fiável no passado. Mas supõe que o relógio parou há exactamente 24 horas, apesar de tu não o saberes. Tens a crença verdadeira justificada de que são 9.55, mas não sabes que esta é a hora correcta.
Que Têm os Contra-Exemplos em Comum?
Em todos estes casos, o sujeito tem dados para acreditar na proposição em causa que são altamente credíveis, mas não infalíveis. O patrão está geralmente certo sobre quem vai ser promovido, o relógio está geralmente certo quanto às horas. Mas é claro que geralmente não é sempre. As fontes da informação que os sujeitos exploraram nestes exemplos são altamente credíveis, mas não são perfeitamente credíveis. Todas as fontes de informação eram susceptíveis de erro, pelo menos até certo ponto.
Será que estes exemplos refutam realmente a teoria CVJ? Depende de como entendemos a ideia de justificação. Se dados altamente credíveis são suficientes para justificar uma crença, então estes contra-exemplos refutam realmente a teoria CVJ. Mas se a justificação requer dados perfeitamente infalíveis, então estes exemplos não refutam a teoria.
A minha opinião é de que os dados que justificam uma crença não precisam de ser infalíveis. Penso que podemos ter crenças racionais bem apoiadas mesmo quando não nos empenhamos em estar absolutamente certos de que o que acreditamos é verdadeiro. Assim, concluo que a crença verdadeira justificada não é suficiente para o conhecimento.
|Elliott Sober. Tradução de Paula Mateus. Texto retirado do livro Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008), in http://criticanarede.com/fil_con

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Actividades:
1. Tendo em conta que se apresentam como respostas para o problema da origem do conhecimento, defina o racionalismo e o empirismo.
2. Defina o infalibilismo e o falibilismo.
3. Tente relacionar o falibilismo e o infalibilismo com o racionalismo e o empirismo.
4. O conhecimento pode ser definido, de forma geral, como crença verdadeira justificada? Justifique a sua resposta com base nos contra-exemplos de Gettier.
5. Formule dois contra-exemplos à teoria CVJ.


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