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domingo, 8 de maio de 2016

Senso comum e conhecimento científico



O senso comum (conhecimento vulgar)

Texto 1 

O senso comum é um saber que nasce da experiência quotidiana, da vida que os homens levam em sociedade. É, assim, um saber acerca dos elementos da realidade em que vivemos; um saber sobre os hábitos, os costumes, as práticas, as tradições, as regras de conduta, enfim, sobre tudo o que necessitamos para podermos orientar-nos no nosso dia-a-dia: como comer à mesa, acender a luz de uma sala, acender a televisão, como fazer uma chamada telefónica, apanhar o autocarro, o nome das ruas da localidade onde vivemos, etc.,etc...
É, por isso, um saber informal, que se adquire de uma forma natural (é espontâneo), através do nosso contacto com os outros, com as situações e com os objetos que nos rodeiam. É um saber muito simples e superficial, que não exige grandes esforços, ao contrário dos saberes formais (tais como as ciências) que requerem um longo processo de aprendizagem escolar.
O senso comum adquire-se quase sem se dar conta, desde a mais tenra infância e, apesar das suas limitações, é um saber fundamental, sem o qual não nos conseguiríamos orientar na nossa vida quotidiana.
Sendo assim, torna-se facilmente compreensível que todos os homens possuam senso comum, mas este varia de sociedade para sociedade e, mesmo dentro duma mesma sociedade, varia de grupo social para grupo social ou, também, por exemplo, de grupo profissional para grupo profissional.
Mas, sendo imprescindível, o senso comum não é suficiente para nos compreendermos a nós próprios e ao mundo em que vivemos, pois se na nossa reflexão sobre a nossa situação no mundo, nos ficarmos pelos dados do senso comum, por assim dizer os dados mais básicos da nossa consciência natural, facilmente caímos na ilusão de que as coisas são exatamente aquilo que parecem, nunca nos chegando a aperceber que existe uma radical diferença entre a aparência e a realidade.


Posições face à relação entre o senso comum e a ciência

Bachelard

– Ruptura – Tese descontínuista:
• É necessária uma ruptura epistemológica, ou seja, um corte entre o senso comum e a ciência;
• As opiniões a que os cientistas aderem são o principal obstáculo (=senso comum) que impede a chegada a um conhecimento objetivo;
• O conhecimento científico constrói-se em luta contra os obstáculos;
• A opinião traduz necessidades em conhecimentos, ou seja, impede que se veja aquilo que realmente é.

Texto 2 

“Quando nós lemos num livro de química contemporânea que "a estrutura cristalina do gelo é análoga à da wurtzita", que é um sulfureto de zinco, nós sabemos que estamos, evidentemente, numa outra perspectiva de pensamentos em relação ao senso comum. Nós abandonamos a linha das experiências primitivas, dos interesses cósmicos primitivos, dos interesses estéticos. A nossa  consciência quando é dirigida sobre um objeto natural dá-nos uma objetividade ocasional. E ao mesmo tempo uma intencionalidade sem grande profundidade, subjetiva e sem alcance verdadeiramente objetivo. Uma tal intencionalidade vai no máximo dar-nos uma revelação da consciência ociosa, da consciência livre precisamente porque ela não encontrou um verdadeiro interesse de conhecimento objetivo, um verdadeiro envolvimento com a realidade.
Precisamente no simples exemplo que nós acabamos de evocar, e que comparávamos o gelo e o sulfureto de zinco, vê-se aparecer a ruptura da intencionalidade do conhecimento científico e da intencionalidade da consciência comum.
A especialização é um penhor de intencionalidade estritamente penetrante. Ela remete, do lado do sujeito, a camadas profundas, onde o racional é mais profundo que o simples consciencial. Numa experiência que envolve a cultura científica, como o quer a aproximação gelo-wurtzita, há, pelo menos, consciência desdobrada da observação e da experimentação.
Mas a vantagem filosófica do trabalho científico para uma meditação deste aprofundamento racionalista da consciência, é que este trabalho é produtivo, é que ele é materialmente inovador: ele determina a criação de matérias novas.
A química moderna  não pode nem deve deixar nada no seu estado natural. Nós dissemos que ela deve tudo purificar, tudo retificar, tudo recompor.”
Gaston Bachelard, Le Matérialisme rationnel, 1953. Retirado da Revista Tempo Brasileiro n. 28, 1972.
(Texto adaptado).

Popper

– Prolongamento – Tese contínuista:
• Defende a continuidade entre o senso comum e a ciência;
• Apesar das diferenças entre eles, têm um grau de parentesco;
• A ciência é o prolongamento do senso comum;
• É um acrescimento e um aperfeiçoamento;
• As suas diferenças são apenas de grau (a ciência é mais desenvolvida);
• Defende que o senso comum é o ponto de partida para todo o conhecimento do real;
• O senso comum tem um caráter inseguro;
• O grande instrumento para progredir (avançar do senso comum para o conhecimento científico) é a crítica.
• Toda a ciência e filosofia são senso comum esclarecido (nelas tudo é sujeito a crítica).

A teoria do balde

Texto 3 
"Ainda que deva ser criticado, o senso comum tem de ser sempre o nosso ponto de partida.
A teoria do senso comum é muito simples. Se qualquer um de nós desejar conhecer algo que desconhece sobre o mundo, não terá mais que abrir os olhos e olhar em volta. Temos de dirigir as orelhas e ouvir os ruídos. Os diversos sentidos são pois as nossas fontes de conhecimento  - as fontes ou os acessos à nossa mente. Referi-me muitas vezes a esta teoria, designando-a a teoria da mente, como um balde.
A nossa mente é, em princípio, um balde, mais ou menos vazio, que se enche através dos sentidos.
No mundo filosófico esta teoria é designada por teoria da mente como tábua rasa! A nossa mente é um recipiente vazio em que os sentidos gravam as mensagens. A tese importante da teoria do balde é que aprendemos a maioria das coisas, senão todas, mediante a entrada da experiência através das aberturas dos nossos sentidos, de modo que toda a experiência consta de informação recebida através dos sentidos.
A teoria do senso comum está errada em vários pontos. É essencialmente uma teoria sobre a génese do conhecimento: a teoria do balde debruça-se sobre a nossa aquisição de conhecimentos - em grande medida passiva -, pelo que também constitui uma teoria do que denominei o aumento de conhecimento, ainda que como teoria do aumento de conhecimento seja manifestamente falsa. A teoria da tábua rasa é absurda: em cada estádio da evolução da vida temos de supor a existência de algum conhecimento sob a forma de disposições e expectativas.
Posto isto, o aumento de conhecimento consiste na modificação do conhecimento prévio, quer alterando-o, quer destruindo-o.
O conhecimento não parte nunca do zero, pressupõe sempre um conhecimento básico - conhecimento que se dá por suposto num momento determinado - juntamente com algumas dificuldades e alguns problemas. Regra geral surgem do choque entre as expectativas inerentes ao nosso conhecimento básico e algumas descobertas novas, como observações ou hipóteses sugeridas por eles.
A ciência, a filosofia e o pensamento racional surgem todos do senso comum. O senso comum, contudo, não é um ponto de partida seguro: o termo senso comum que aqui emprego é muito vago porque denota algo vago e mutante - os instintos e opiniões das gentes, muitas vezes adequados e verdadeiros, mas muitas outras inadequados ou falsos. Toda a ciência é, tal como a filosofia, senso comum ilustrado.
A minha primeira tese é que partimos do senso comum, sendo a critica  o nosso grande instrumento de progresso."
Karl. Popper, Conhecimento Objectivo. Texto adaptado.

Síntese:

Conhecimento vulgar/Senso comum:
• Espontâneo;
• Assistematicamente construído a partir da transmissão social, das informações sensoriais e da experiência;
• Permite-nos resolver os problemas do nosso quotidiano;
• Não nos dá uma explicação, pois não ultrapassa aquilo que é visível;
• Dá-nos por vezes, informações erradas, pois não vai até ao fundo da questão;
• Ametódico – não segue determinadas regras/métodos;
• Assistemático – não é organizado;
• Acrítico – muitas vezes é entendido como dogmático (como verdade incontestável);
• Subjetivo – não é rigoroso nem preciso e depende de cada pessoa e da sua opinião;
• Apesar de inferior à ciência, não deve ser menosprezado.

Conhecimento científico/Ciência:
• Sistematizado e metódico (organizado e respeita determinados métodos/regras);
• Utiliza a experiência, mas também raciocínios, provas e demonstrações que permitem atingir conclusões gerais/universais;
• Pretende formular leis e teorias explicativas;
• Explicação precisa e rigorosa;
• Fenómenos suscetíveis de verificação;
• Objetivo - trata apenas da questão em si, sem misturar ideias ou sentimentos pessoais; o cientista tem de ser imparcial.

O Método Hipotético-Dedutivo






















O método hipotético-dedutivo, foi defendido por Karl Popper, a partir de uma crítica profunda ao indutivismo (ao verificacionismo). Nesse método o caminho para se chegar ao conhecimento passa pelas seguintes etapas:
- formulação de problemas;
-solução proposta através de uma conjectura;
-dedução das consequências na forma de proposições passíveis de testes;
-testes de falsificação (tentativa de refutação, entre outros meios, pela observação e experimentação.

Assim, de acordo com Kaplan, " o cientista, através de uma combinação de observação
cuidadosa, hábeis antecipações e intuição científica, alcança um conjunto de postulados que governam os fenómenos pelos quais está interessado, daí deduz as consequências por meio de experimentação e, dessa maneira, refuta os postulados, substituindo-os, quando necessários por outros."

Como se vê no esquema, ao contrário do que é defendido pelos seguidores do método indutivo, a investigação científica não parte da observação, mas de um problema que vai orientar os investigadores para procurarem uma resposta - como se vê, a observação é ela própria uma tentativa de resposta, pelo que não é neutra, nem um ponto de partida ingénuo, capaz de dar ao investigador acesso a um conhecimento definitivo sobre os fenómenos estudados - ao contrário do que defendem os verificacionistas indutivistas, a experiência é importante na investigação científica, mas é sempre necessário proceder a conjecturas racionais que permitam formular enunciados universais. Essas conjecturas ficam sempre sujeitas à refutabilidade empírica.



Para tentar explicar a dificuldade expressa no problema, são formuladas conjecturas (hipóteses). Das hipóteses formuladas, deduzem-se consequências que deverão ser testadas ou falsificadas. Falsificar significa tentar tornar falsas as consequências deduzidas das hipóteses. Enquanto no método indutivo se procura a todo custo confirmar as hipóteses, no método hipotético-dedutivo, pelo contrário, procuram-se evidências empíricas para refutá-las, ou seja, falsificá-las. Quando não se consegue demonstrar qualquer caso capaz de falsificar uma hipótese, tem-se a sua corroboração, ou seja, a hipótese sobrevive aos testes e será tida como uma teoria científica até que venha a ser refutada no futuro, nunca perdendo a sua natureza conjectural.
De acordo com Popper, a hipótese corroborada mostra-se válida, pois superou todos os testes, mas não definitivamente confirmada, já que a qualquer momento poderá surgir um facto que a invalide.
Concluindo, o método hipotético-dedutivo passa por fases certas e não discutíveis, com a idéia de um problema, parte para a observação cuidadosa, hábeis antecipação e intuição científica, dedução das consequências na forma de proposições passíveis de testes, quando não consegue mostrar o que pode falsear a hipótese, tem-se uma corroboração.
O método se funde na observação e, hipóteses que podem ser confundidos com o indutivo, pois também tem esse rumo de explicação, mas o hipotétivo- dedutivo não se limita a generalização com o empírico das observações segue o caminho das teorias e leis. Como os resultados podem deduzir e fazer previsões, que podem ser confirmadas ou negadas.
http://www.partes.com.br/reflexao/sobremetodos.asp
(não consultar este link porque pode induzir em erro os alunos, especialmente os que se estão a preparar para exame) Texto adaptado.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Críticas ao falsificacionismo de Karl Popper




As insuficiências da corroboração
  • É possível que duas hipóteses resistam ao mesmo tempo aos testes experimentais, nesse caso a teoria de Popper não nos permite escolher qual das hipóteses devemos preferir, uma vez que ambas podem estar corroboradas e podem, igualmente, servir de base a previsões que se revelarão boas.
  • As refutações em ciência são muito mais raras do que as confirmações. Se estiver certo o pressuposto de Popper segundo o qual o conhecimento é precedido de predisposições e expetativas, então se os cientistas estiverem orientados para a verificação das teorias e não para a sua falsificação, é mais provável que na maior parte dos testes experimentais não se assista à refutação da conjeturas. Na verdade nem todos os cientistas concordam com o falsificacionismo (e talvez seja uma pequena minoria o número daqueles que se reivindicariam como falsificacionistas).

Texto 1
"Nos seus termos mais simples, a explicação de Popper para o conhecimento científico envolve generalizações e os seus testes observacionais. Se encontrarmos um contra-exemplo genuíno a uma generalização, podemos dizer que foi dedutivamente refutada. Segundo Popper, os casos negativos fornecem bases racionais para rejeitar generalizações. Se, contudo, fizermos observações e executarmos testes mas não encontrarmos instâncias negativas, tudo o que podemos dizer dedutivamente é que a generalização em questão não foi refutada. 

O conceito de corroboração de Popper foi concebido para medir o modo com conjecturas têm resistido a críticas severas, incluindo testes severos. Penso que esta é a tese crucial: que há uma base racional para preferir usar num argumento previsivo uma generalização não refutada em detrimento de outra refutada. Se isso for verdade, então Popper pode legitimamente afirmar que resolveu o problema da previsão racional. É que as teorias científicas são usadas tanto para fins teóricos como práticos - fins esses que incluem a previsão.
Ora esta perspectiva da corroboração contém dificuldades sérias. 

Watkins e Popper concordam, penso, que as afirmações corroboradas relatam observações do passado e do presente, e que afirmações deste tipo não têm em si conteúdo previsivo. As conjecturas, hipóteses, teorias é que têm conteúdo previsivo. Para fazer uma previsão, é necessário escolher uma conjectura que tenha conteúdo previsivo para ser usada como premissa num argumento previsivo. Para fazer uma previsão racional, parece-me ser necessário fazer uma escolha racional de uma premissa para tal argumento.
Porém, com base nas nossas provas observacionais e nas afirmações sobre a corroboração de uma dada conjectura não se garante qualquer avaliação previsiva. Assim, parece-me que a corroboração não fornece qualquer base racional para preferir uma conjectura a outra para fins de previsão prática.

Não estou a reclamar por não termos a certeza de que uma delas irá permitir uma previsão correcta e outra não. Estou a reclamar porque não se forneceu qualquer base racional para uma preferência deste tipo."

Wesley C. Salmon, Previsão Racional
(Adaptado)
http://portico-proffil.blogspot.pt/2008/05/uma-crtica-popper.html

Texto 2
"Consideremos a mais conhecida tese de Popper: a ciência não procede por «indução» – isto é, encontrando instâncias confirmativas de uma conjectura, mas antes falsificando conjecturas arriscadas e atrevidas. A confirmação, argu­mentou, é lenta e nunca é certa. Por contraste, uma falsificação pode ser súbita e definitiva. Além do mais, encontra-se no coração do método científico.
Um exemplo familiar de falsificação liga-se à asserção de que todos os cor­vos são pretos. Sempre que se encontra um novo corvo preto confirma-se obviamente a teoria, mas há sempre a possibilidade de que apareça um corvo não preto. Se tal acontece, a conjectura é imediatamente desacreditada. Quanto mais vezes uma conjectura enfrentar os esforços para a falsificar, afir­mou Popper, maior se torna a sua «corroboração», todavia, a corroboração é também incerta e não pode nunca quantificar-se o seu grau de probabilidade. Os críticos de Popper insistem em que «a corroboração» é uma forma de indução, e que Popper simplesmente introduziu à sorrelfa a indução pela porta das traseiras dando-lhe um novo nome. A questão famosa de David Hume era «Como é que a indução pode ser justificada?» Não pode, disse Popper, porque tal coisa como a indução não existe!
Há muitas objecções a esta afirmação assombrosa. Uma é a de que as fal­sificações são muito mais raras em ciência do que a procura de instâncias confirmativas. Os astrónomos procuram por sinais de água em Marte. Não pensam que estão a fazer esforços para falsificar a conjectura de que Marte nunca teve água. [...]
Popper reconheceu – mas descartou como não sendo importante – que a falsificação de uma conjectura é simultaneamente a confirmação de uma conjectura oposta e que cada instância confirmativa de uma conjectura é uma falsificação de uma conjectura oposta. [...]
Para os cientistas e filósofos estranhos à confraria popperiana, a ciência opera principalmente por indução (confirmação) e também e menos frequentemente por desconfirmação (falsificação). A sua linguagem é quase sempre a da indução. Se Popper aposta num certo cavalo para ganhar uma corrida e o cavalo ganha, não é de esperar que grite, «Boa, o meu cavalo não conseguiu perder».
Os astrónomos estão agora a encontrar evidência constringente de que planetas mais e mais pequenos orbitam sóis distantes. Seguramente esta é evidência indutiva de que pode haver planetas do tamanho da Terra mais além. Porquê preocupar-se em dizer, cada vez que um novo e mais pequeno planeta é descoberto, que tende a falsificar a conjectura de que não há plane­tas pequenos para além do nosso sistema solar? Porquê arranhar a orelha esquerda com a mão direita? [...]
Ernest Nagel, famoso professor de Filosofia da Ciência da Universidade de Columbia, na sua Teleology Revisited and Other Essays in the Philosophy and History of Science (1979), resumiu o assunto deste modo: «A con­cepção de Popper acerca do papel da falsificação... é uma sobressimplificação que está perto da caricatura dos procedimentos científicos.»
Para Popper, aquilo que o seu principal rival Rudolf Carnap designava por um «grau de confirmação» – uma relação lógica entre uma conjectura e toda a evidência relevante – é um conceito inútil. Em vez disso, como referi' anteriormente, quanto mais testes de falsificação uma teoria passar, mais ela ganha em corroboração. É como se alguém declarasse que a dedução não existe, mas que, certamente, algumas afirmações podem implicar logica­mente outras afirmações. Vamos inventar um novo termo para dedução, tal como «inferência justificada». Popper não discordava assim tanto de Carnap e de outros indutivistas, de modo que reformulou as suas ideias numa termi­nologia bizarra e esotérica."
Martin Gardner, A Sceptical Look at Karl Popper (Traduzido e adaptado).

quinta-feira, 14 de abril de 2016

A Falsificabilidade como critério de demarcação das teorias científicas



“Percebi que os meus amigos admiradores de Marx, Freud e Adler impressionavam-se com uma série de pontos comuns às três teorias, e sobretudo com sua aparente capacidade de explicação. Essas teorias pareciam poder explicar praticamente tudo nos seus respectivos campos. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o efeito de uma conversão ou revelação intelectual, abrindo os olhos para uma nova verdade, escondida dos ainda não iniciados. Uma vez abertos os olhos, podia-se ver exemplos confirmadores em toda parte: o mundo estava repleto de verificações da teoria. Qualquer coisa que acontecesse vinha confirmar isso. 

A verdade contida nessas teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram nitidamente aqueles que não queriam vê-la: recusavam-se a isso para não entrar em conflito com os seus interesses de classe ou por causa de repressões ainda não analisadas, que precisavam urgentemente de tratamento.
O mais característico da situação parecia ser o fluxo incessante de confirmações, de observações que verificavam as teorias em questão, ponto que era enfatizado constantemente: um marxista não abria um jornal sem encontrar em cada página evidência a confirmar sua interpretação da história. Essa evidência era detectada não só nas notícias, mas também na forma como eram apresentadas pelo jornal - que revelava o seu preconceito de classe - e sobretudo, é claro, naquilo que o jornal não mencionava. 

Os analistas freudianos afirmavam que as suas teorias eram constantemente verificadas por observações clínicas. Quanto a Adler, fiquei muito impressionado por uma experiência pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o de um caso que não me parecia ser particularmente adleriano, mas que ele não teve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nem mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiramente chocado, perguntei como podia ter tanta certeza. Porque já tive mil experiências desse tipo - respondeu; ao que não pude deixar de responder: Com este novo caso, o número passará então a mil e um . . . 

O que queria dizer era que as suas observações anteriores podiam não merecer muito mais certeza do que a última; que cada observação havia sido examinada à luz da experiência anterior, somando-se ao mesmo tempo às outras como confirmação adicional. Mas, perguntei a mim mesmo, que é que confirmava cada nova observação? Simplesmente o facto de que cada caso podia ser examinado à luz da teoria. Refleti, contudo, que isso significava muito pouco, pois todo e qualquer caso concebível pode ser examinado à luz da teoria de Freud e de Adler.

Posso ilustrar esse ponto com dois exemplos muito diferentes de comportamento humano: o do homem que atira uma criança à água com a intenção de afogá-la e o de quem sacrifica a sua vida na tentativa de salvar a criança. 

Ambos os casos podem ser explicados com igual facilidade, tanto em termos freudianos como adlerianos. Segundo Freud, o primeiro homem sofria de repressão (digamos, algum componente do seu complexo de Édipo) enquanto o segundo alcançara a sublimação. Segundo Adler, o primeiro sofria de sentimento de inferioridade (gerando, provavelmente, a necessidade de provar a si mesmo ser capaz de cometer um crime), e o mesmo havia acontecido com o segundo (cuja necessidade era provar a si mesmo ser capaz de salvar a criança). 

Não conseguia imaginar qualquer tipo de comportamento humano que ambas as teorias fossem incapazes de explicar. Era precisamente esse facto - elas sempre serviam e eram sempre confirmadas - que constituía o mais forte argumento em seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa força aparente era, na verdade, uma fraqueza.

Com a teoria de Einstein, a situação era extraordinariamente diferente. Tomemos um exemplo típico - a predição de Einstein, confirmada havia pouco por Eddington.  A teoria gravitacional de Einstein havia levado à conclusão de que a luz devia ser atraída pelos corpos pesados (como o Sol), exatamente como ocorria com os corpos materiais. Calculou-se portanto que a luz proveniente de uma estrela distante, cuja posição aparente estivesse próxima ao Sol, alcançaria a Terra de uma direção tal que a estrela pareceria estar ligeiramente deslocada para perto do Sol. Em outras palavras, as estrelas próximas ao Sol pareceriam  ter-se aproximado um pouco dele e entre si. Isso não pode ser normalmente observado, pois as estrelas tornam-se invisíveis durante o dia, ofuscadas pelo brilho irresistível do Sol; durante um eclipse, porém, é possível fotografá-las. Se a mesma constelação é fotografada durante um eclipse, de dia e à noite, pode-se medir as distâncias em ambas as fotografias e verificar o efeito previsto.

O mais impressionante neste caso é o risco envolvido numa predição deste tipo. Se a observação mostrar que o efeito previsto definitivamente não ocorreu, a teoria é simplesmente refutada: ela é incompatível com certos resultados passíveis da observação; de facto, resultados que todos esperariam antes de Einstein.

Essa situação é bastante diferente da que descrevi anteriormente, pois tornou-se evidente que as teorias em questão eram compatíveis com o comportamento humano extremamente divergente, de modo que era praticamente impossível descrever um tipo de comportamento que não servisse para verificá-las.

Durante o inverno de 1919-1920, essas considerações me levaram a conclusões que posso agora reformular da seguinte maneira:

(1) É fácil obter confirmações ou verificações para quase toda teoria – desde que as procuremos.
(2) As confirmações só devem ser consideradas se resultarem de predições arriscadas; isto é, se, não esclarecidos pela teoria em questão, esperarmos um acontecimento incompatível com a teoria e que a teria refutado.
(3) Toda a teoria científica boa é uma proibição: ela proíbe certas coisas de acontecer. Quanto mais uma teoria proíbe, melhor ela é.
(4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um vício.
(5) Todo o teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém, diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais testáveis, mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos.
(6) A evidência confirmadora não deve ser considerada se não resultar de um teste genuíno da teoria; o teste pode-se apresentar como uma tentativa séria porém malograda de refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da evidência corroborativa).
(7) Algumas teorias genuinamente testáveis, quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas por admiradores, que introduzem, por exemplo, alguma suposição auxiliar ad hoc, ou reinterpretam a teoria ad hoc de tal maneira que ela escapa à refutação. Tal procedimento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação apenas ao preço de destruir (ou pelo menos aviltar) o seu padrão científico.
Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o estatuto científico de uma teoria é a sua capacidade de ser refutada ou testada.”
Karl Popper, Conjecturas e Refutações, http://people.ufpr.br/~borges/publicacoes/notaveis/Popper.pdf

Introdução ao Falsificacionismo de Karl Popper


A lei da seleção natural
Texto 1
"Tudo isto pode ser expresso dizendo que o crescimento do nosso conhecimento é o resultado de um processo semelhante ao que Darwin chamou 'seleção natural', isto é, a seleção natural de hipóteses: o nosso conhecimento consiste, a cada momento, daquelas hipóteses que mostraram a sua aptidão (comparativa) para sobreviver até agora na sua luta pela existência, uma luta de competição que elimina aquelas hipóteses que são incapazes [de sobreviver]."
K. Popper, Conhecimento Objectivo 

Conjeturas e refutações
Texto 2
"Quando abordamos um problema, podemos começar a trabalhá-lo, o que se pode fazer em dois momentos: podemos começar em primeiro lugar por tecer ou conjeturar uma solução para o problema, para, de seguida, criticar a nossa suposição que geralmente será muito débil. Por vezes, a nossa suposição ou conjetura poderá manter-se durante algum tempo face à crítica e às nossas constatações experimentais. Mas, geralmente, depressa veremos que as nossas conjeturas se podem refutar, que não resolvem o nosso problema ou só o resolvem parcialmente. Além disso, verificaremos inclusive que as melhores soluções as que são capazes de resistir às críticas mais rigorosas das inteligências mais penetrantes ou engenhosas suscitarão dificuldades e problemas. Assim podemos dizer que o aumento do conhecimento vai dos velhos para os novos problemas devido a CONJECTURAS e REFUTAÇÕES."
K. Popper, Conhecimento Objectivo

O falsificacionismo. Crítica ao verificacionismo
Texto 3
"A razão que me leva a pensar que devo começar com alguns comentários em torno da teoria do conhecimento reside no facto de estar em desacordo com toda a gente a este respeito, excepto com Charles Darwin e Albert Einstein.
O ponto fundamental é a relação entre observação e teoria. Creio que a teoria vai sempre à frente, pelo menos uma teoria ou expectativa rudimentar precede sempre as observações cujo papel fundamental, como o das contrastações experimentais, é mostrar que algumas das nossas teorias são falsas estimulando-se deste modo à construção de outras melhores.
Por conseguinte, afirmo que não partimos de observações mas sempre de problemas seja de problemas práticos ou de uma teoria que se encontra em dificuldades.
Inverto os termos daqueles que pensam que a observação deve preceder as expectativas e os problemas."
Popper, Conhecimento Objectivo

Texto 4
Vou partir do princípio que se chegou a acordo acerca do carácter conjectural das teorias científicas: que as nossas teorias nunca deixam de ser incertas ainda que bem sucedidas e bem apoiadas por provas pelo resultado da discussão, e que nós podemos ser incapazes de prever que género de mudança é que virá a ser necessário. Por conseguinte, partirei do principio de que, se aqui falamos de crença racional na ciência e nas teorias científicas, não pretendemos dizer que é racional acreditar na verdade de alguma teoria em particular. 

O que é, então, o objecto da nossa crença racional? É, proponho, não a verdade, mas sim aquilo a que podemos chamar a verosimilhança das teorias da ciência, tanto quanto elas tenham suportado uma crítica severa, incluindo testes. O que nós acreditamos (bem ou mal) não é que a teoria de Newton ou a de Einstein sejam verdadeiras mas sim que são boas aproximações à verdade, ainda que podendo ser superadas por outras melhores.
Mas esta crença, afirmo-o eu, é racional mesmo se aceitarmos que amanhã iremos descobrir que as leis da mecânica (ou aquilo que nós temos por lei da mecânica) mudaram subtilmente.

Estas considerações mostram que a crença na verosimilhança de resultados científicos bem corroborados (tais como as leis da mecânica) é realmente racional, e continua a sê-lo mesmo depois de esses resultados terem sido superados. Além disso, é uma crença que pode ter graus.

Temos de distinguir duas dimensões ou escalas graduadas diferentes: o grau da verosimilhança de uma teoria, e o grau de racionalidade da nossa crença de uma certa teoria ter atingido (um certo grau de) verosimilhança.

Chamei ao primeiro destes dois graus grau de verosimilhança, e ao segundo, grau de corroboração. Ambos são comparativos no sentido em que duas teorias podem ser comparadas relativamente à verosimilhança ou à corroboração.

Se duas teorias em competição tiverem sido criticadas e testadas tão completamente quanto nos tenha sido possível, dai resultando que o grau de corroboração de uma delas seja maior do que o da outra, teremos, em geral, razões para acreditar que a primeira teoria será uma melhor aproximação à verdade do que a segunda. (Também é possível dizer-se de uma teoria ainda não corroborada que ela é potencialmente melhor do que outra; quer isto dizer, que seria sensato aceitá-la como sendo uma melhor aproximação à verdade, desde que passasse em certos testes.

Segundo esta perspectiva, a racionalidade da ciência e dos seus resultados - e, portanto, da crença neles - é inseparável por essência, do seu progresso, com a discussão, sempre a ser atualizada, dos méritos relativos de novas teorias; é inseparável do progressivo derrube de teorias, e não só da pretensa consolidação progressiva (ou probabilidade crescente) resultante da acumulação de observações apoiantes, como creem os indutivistas."
K. Popper, Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica

O falsificacionismo de Karl Popper
Texto 5

“Uma linha de resposta bastante importante para o problema da indução deve-se a Karl Popper. Popper olha para a prática da ciência para nos mostrar como lidar com o problema. Segundo o ponto de vista de Popper, para começar a ciência não se baseia na indução. Popper nega que os cientistas começam com observações e inferem depois uma teoria geral. Em vez disso, primeiro propõem uma teoria, apresentando-a como uma conjectura inicialmente não corroborada, e depois comparam as suas previsões com observações para ver se ela resiste aos testes. Se esses testes se mostrarem negativos, então a teoria será experimentalmente falsificada e os cientistas irão procurar uma nova alternativa. Se, pelo contrário, os testes estiverem de acordo com a teoria, então os cientistas continuarão a mantê-la não como uma verdade provada, é certo, mas ainda assim como uma conjectura não refutada.

Se olharmos para a ciência desta maneira, defende Popper, então veremos que ela não precisa da indução. Segundo Popper, as inferências que interessam para a ciência são refutações, que tomam uma previsão falhada como premissa e concluem que a teoria que está por detrás da previsão é falsa. Estas inferências não são indutivas, mas dedutivas. Vemos que um A é não-B, e concluímos que não é o caso que todos os As são Bs. Aqui não há hipótese de a premissa ser verdadeira e a conclusão falsa. Se descobrirmos que um certo pedaço de sódio não fica laranja quando é aquecido, então sabemos de certeza que não é o caso que todo o sódio aquecido fica laranja. Aqui o facto interessante é que é muito mais fácil refutar teorias do que prová-las. Um único exemplo contrário é suficiente para uma refutação conclusiva, mas nenhum número de exemplos favoráveis constituirá uma prova conclusiva.

Assim, segundo Popper, a ciência é uma sequência de conjecturas. As teorias científicas são propostas como hipóteses, e são substituídas por novas hipóteses quando são falsificadas. No entanto, esta maneira de ver a ciência suscita uma questão óbvia: se as teorias científicas são sempre conjecturais, então o que torna a ciência melhor do que a astrologia, a adoração de espíritos ou qualquer outra forma de superstição sem fundamento? Um não-popperiano responderia a esta questão dizendo que a verdadeira ciência prova aquilo que afirma, enquanto que a superstição consiste apenas em palpites. Mas, segundo a concepção de Popper, mesmo as teorias científicas são palpites — pois não podem ser provadas pelas observações: são apenas conjecturas não refutadas.

Popper chama a isto o "problema da demarcação" — qual é a diferença entre a ciência e outras formas de crença? A sua resposta é que a ciência, ao contrário da superstição, pelo menos é falsificável, mesmo que não possa ser provada. As teorias científicas estão formuladas em termos precisos, e por isso conduzem a previsões definidas. As leis de Newton, por exemplo, dizem-nos exatamente onde certos planetas aparecerão em certos momentos. E isto significa que, se tais previsões fracassarem, poderemos ter a certeza de que a teoria que está por detrás delas é falsa. Pelo contrário, os sistemas de crenças como a astrologia são irremediavelmente vagos, de tal maneira que se torna impossível mostrar que estão claramente errados. A astrologia pode prever que os escorpiões irão prosperar nas suas relações pessoais à quinta-feira, mas, quando são confrontados com um escorpião cuja mulher o abandonou numa quinta-feira, é natural que os defensores da astrologia respondam que, considerando todas as coisas, o fim do casamento provavelmente acabou por ser melhor. Por causa disto, nada forçará alguma vez os astrólogos a admitir que a sua teoria está errada. A teoria apresenta-se em termos tão imprecisos que nenhumas observações atuais poderão falsificá-la.

O próprio Popper usa este critério de falsificabilidade para distinguir a ciência genuína não só de sistemas de crenças tradicionais, como a astrologia e a adoração de espíritos, mas também do marxismo, da psicanálise de várias outras disciplinas modernas que ele considera negativamente como "pseudo-ciências". Segundo Popper, as teses centrais dessas teorias são tão irrefutáveis como as da astrologia. quando eram novos. Para Popper, estes truques são a antítese da seriedade científica. 

Os cientistas genuínos dirão de antemão que descobertas observacionais os fariam mudar de ideias, e abandonarão as suas teorias se essas descobertas se realizarem.”
David Papineau, "Methodology" em A. C. Grayling (org.), Philosophy: A GuideThroughtheSubject, Oxford UniversityPress, 1998. Tradução de Pedro Galvão. 
http://www.aartedepensar.com/leit_falsificacionismo.html

domingo, 25 de maio de 2014

Filosofia da Ciência - Ficha Formativa

Grupo I
Texto 1
"Uma característica notável de muita informação que adquirimos através da experiência comum é que, embora ela possa ser suficientemente precisa dentro de certos  limites, raramente é acompanhada por qualquer explicaçāo que nos diga por que se deram os factos alegados."
Ernst Nagel


1. Identifique o tipo de conhecimento a que o texto se refere. Justifique.

2. Distinga ciência de senso comum, a partir das três características da ciência mais importantes (de acordo com a sua opinião).


Grupo II

1. De acordo com Karl Popper as teorias científicas podem ser verificadas? Porquê.
2. O conhecimento científico é objectivo? Responda a esta questão confrontando as perspectivas de Popper e Kuhn.

_____________________
Correção:

Grupo I

1. O texto refere-se ao senso com um (conhecimento vulgar). 
A "experiência comum" a que o texto se refere é a experiência sensorial, ingénua, não mediada racionalmente, através da qual contactamos com a realidade na nossa vida quotidiana.
Essa experiência espontânea dá-nos um conhecimento superficial da realidade, embora esse conhecimento possa ser muito variado, não é suficiente para ficarmos com uma visão sistemática do mundo.
O texto refere, ainda, que essa experiência "raramente é acompanhada por qualquer explicação": o conhecimento vulgar, ao contrário do que se passa com a ciência, não é explicativo, não procura descobrir as causas reais dos fenómenos. Isto porque se trata de um conhecimento que tem uma forte componente prática, é constituído por segmentos de informação que nos permitem funcionar no mundo em que vivemos: como acender a luz, como abrir uma fechadura, como apanhar um autocarro, como usar uma ferramenta, etc., não necessitando, assim, de grandes explicações.

2. É difícil selecionar as três características mais importantes da ciência, porque muitas dessas características estão interligadas. Mas podemos procurar os pontos de encontro das principais características da ciência: a sistematicidade, o carácter metódico, o carácter explicativo, a revisibilidade, entre outras, remetem para o facto da ciência ser um saber racional: o senso comum é um saber empírico, ou seja, é um saber que deriva de forma direta e acrítica da experiência quotidiana, sem 'filtros' que lhe garantam o rigor e sem a obediência a princípios lógicos que lhe garantam a coerência.
Pelo contrário, a ciência é um saber altamente testado, sofisticado do ponto de vista lógico e conceptual, que procura explicar o funcionamento da realidade (natureza, universo...). Este objectivo só é alcançável através da problematização: o carácter racional da ciência evidencia-se na problematização - ao colocar problemas, o cientista aprofunda o seu conhecimento da realidade, coloca-se na posição de quem mergulha para lá da superfície da experiência sensorial e vai ao fundamento de toda a explicação: as causas ocultas dos fenómenos. E não estamos perante nenhuma forma de 'ocultismo': as aparências sensoriais escondem o que de facto acontece na complexíssima fábrica do mundo, a constituição da matéria, as forças que atuam sobre os corpos, enfim, tudo o que está para além da imediatez do conhecimento sensorial.
Na problematização está pressuposta uma atitude crítica em relação aos dados da experiência, mas também em relação às explicações racionais: em ciência o dogmatismo funciona como um travão à descoberta, por isso as conclusões alcançadas são encaradas como boas respostas aos problemas que, no futuro, poderão ser substituídas por outras melhores. A ciência é, portanto, revisível, pode ser melhorada, com vista a que se encontrem explicações mais verdadeiras.
Outra característica da ciência que podemos destacar é a sua dimensão factual: a ciência assenta em factos, o que torna muito importante a experiência na sua construção. Mas já não se trata da experiência sensorial, tal com acontece ao nível do quotidiana, trata-se, pelo contrário, de uma experiência mediada racionalmente, que incorpora elementos metodológicos necessários ao cumprimento das metas da investigação: como observação, a experiência assume em ciência uma dimensão instrumental e quantitativa, os cientistas observam os fenómenos utilizando instrumentos que lhes permitem ultrapassar as lacunas do conhecimento dos sentidos (que estão na base da argumentação céptica e cartesiana). A observação científica assenta na medida, pelo que grande parte dos instrumentos de observação científica são instrumentos de medida ou têm na medição a razão de ser do seu funcionamento. Só assim é possível recolher dados quantitativos, objectivos, que podem ser trabalhados com base em instrumentos de análise matemática. Assim se ultrapassa o subjectivismo do conhecimento vulgar e se pode alcançar um conhecimento objectivo.
Mas a experiência em ciência também assume uma dimensão experimental: os cientistas, depois de formularem hipóteses explicativas, testam-nas construindo experiências que reproduzem os fenómenos naturais em situações controladas, frequentemente em laboratório. Aí a experiência é depurada de todos os elementos que possam introduzir imprecisões ou confusão para que se possa aquilatar com rigor as relações causais que produzem os fenómenos.
Por fim, podemos destacar a importância do conhecimento científico para a evolução histórica da humanidade. É que a ciência está na base da tecnologia e, através desta, te um impacto crescente na vida dos seres humanos e das sociedades. Vivemos hoje numa sociedade do conhecimento, em que se assiste a uma galopante sucessão de inovações tecnológicas que, de forma muito rápida, mudam a sociedade e a nossa vida, trazendo novas formas de comunicar, mais poder reivindicativo para os cidadãos, um alargamento inaudito da esperança média de vida e um acesso à informação e ao saber nunca antes experienciado.
Estas mudanças profundas são são possíveis graças à ciência e ao seu sentido progressivo: a ciência está sempre em evolução e, por isso, serve de motor da História, provoca transformações nas formas de pensar, nas relações sociais, nas transções económicas, no fundo em tudo o que faz a malha cada vez mais complexa da cultura e da sociedade que são a base da vida humana.
O senso comum, pode, pelo contrário, ser considerado conservador, uma vez que é um repositório acrítico de conhecimentos dispersos, onde o novo se confunde com o ancestral e o irracional muitas vezes trava a marcha da racionalidade.

Grupo II

1. 
De acordo com Karl Popper as teorias científicas não podem ser verificadas.
Em primeiro lugar, para haver lugar à verificação das teorias (que são universais) teria que ser possível conhecer todos os fenómenos explicáveis com base na teoria, ou ter um princípio de indução capaz de garantir à indução a possibilidade de derivar a verdade da conclusão da verdade das premissas (o que é uma característica da validade dedutiva). 
Karl Popper, seguindo na esteira de David Hume, rejeita o indutivismo que é a base do verificacionismo: quando se fazem testes experimentais às teorias não se pode pretender verificá-las, uma vez que é impossível garantir a verdade de conclusões universais a partir de premissas particulares, pois é sempre possível que existam excepções à teoria que ainda não foram observadas.
Sendo assim, a única forma de corroborar as teorias será através do princípio da falsificabilidade: a aparente fraqueza das teorias científicas, a sua inverificabilidade, é, no entanto, a sua força. ou seja o que garante a fecundidade da investigação científica e a revisibilidade evolutiva da ciência. Uma teoria só é científica se for falsificável, isto é, se, a partir do momento em que é formulada, abre as portas à possibilidade da sua falsificação.
A falsificabilidade é, por isso, o critério de demarcação que permite separar a ciência da não-ciência. O conhecimento científico não é dogmático nem evolui por acréscimos sucessivos de novas verdades, pelo contrário, a ciência avança, sim, mas pela eliminação do erro, não pela afirmação de verdades absolutas. Isto não quer dizer que na ciência não existem certezas: quando uma teoria é falsificada pela experiência há a certeza, absoluta e irrevogável, de que a teoria é falsa e deve ser substituída por outra melhor, mais ajustada à experiência.

2. 
De acordo com Karl Popper o conhecimento científico é objectivo porque se baseia na observação da realidade, tendo, por isso, uma base observacional e factual. Os factos não são construídos pelo sujeito cognoscente, embora sejam abordados observacionalmente a partir dos interesses de quem investiga: a observação científica é orientada pela problematização que, por sua vez, pressupõe uma participação activa do sujeito na busca e construção do saber.
No entanto os fenómenos observados em ciência têm uma dimensão positiva, factual e empírica, que não depende da natureza do sujeito cognoscente nem das condições subjectivas e culturais em que o conhecimento se desenrola. É isto que permite garantir o rigor da ciência e a corroboração das teorias.
No caso de Thomas Kuhn a resposta será radicalmente diferente: a ciência não é objectiva porque a definição do objecto da ciência depende do paradigma que serve de base à prática de cada comunidade científica. Sendo assim a própria forma como a realidade é entendida depende das orientações paradigmáticas e são estas que vão permitir decidir o que é ou não objecto da ciência e o que os cientistas devem poder esperar do seu objecto de investigação.
Quando muda o paradigma muda também a forma com os cientistas encaram os objectos por si estudados. Há a possibilidade de surgirem novas formas de conceber os objectos investigados e investigáveis, de abandonar as anteriores categorizações que diziam aos cientistas que tipos de ser poderiam encontrar na natureza e quais as relações que se podem estabelecer entre os diversos elementos da realidade. Se na Idade Média a existência dos anjos era praticamente inquestionável, hoje em dia os mesmos não passam de seres pertencentes ao campo do imaginário, completamente desprovidos da possibilidade de virem a ser considerados como objectos de qualquer conhecimento científico.



segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Falsificacionismo de Karl Popper


1. Indução
Uma linha de resposta bastante diferente para o problema da indução deve-se a Karl Popper. Popper olha para a prática da ciência para nos mostrar como lidar com o problema. Segundo o ponto de vista de Popper, para começar a ciência não se baseia na indução. Popper nega que os cientistas começam com observações e inferem depois uma teoria geral. Em vez disso, primeiro propõem uma teoria, apresentando-a como uma conjectura inicialmente não corroborada, e depois comparam as suas previsões com observações para ver se ela resiste aos testes. Se esses testes se mostrarem negativos, então a teoria será experimentalmente falsificada e os cientistas irão procurar uma nova alternativa. Se, pelo contrário, os testes estiverem de acordo com a teoria, então os cientistas continuarão a mantê-la não como uma verdade provada, é certo, mas ainda assim como uma conjectura não refutada.
Se olharmos para a ciência desta maneira, defende Popper, então veremos que ela não precisa da indução. Segundo Popper, as inferências que interessam para a ciência são refutações, que tomam uma previsão falhada como premissa e concluem que a teoria que está por detrás da previsão é falsa. Estas inferências não são indutivas, mas dedutivas. Vemos que um A é não-B, e concluímos que não é o caso que todos os As são Bs. Aqui não há hipótese de a premissa ser verdadeira e a conclusão falsa. Se descobrirmos que um certo pedaço de sódio não fica laranja quando é aquecido, então sabemos de certeza que não é o caso que todo o sódio aquecido fica laranja. Aqui o facto interessante é que é muito mais fácil refutar teorias do que prová-las. Um único exemplo contrário é suficiente para uma refutação conclusiva, mas nenhum número de exemplos favoráveis constituirá uma prova conclusiva.

2. Falsificabilidade
Assim, segundo Popper, a ciência é uma sequência de conjecturas. As teorias científicas são propostas como hipóteses, e são substituídas por novas hipóteses quando são falsificadas. No entanto, esta maneira de ver a ciência suscita uma questão óbvia: se as teorias científicas são sempre conjecturais, então o que torna a ciência melhor do que a astrologia, a adoração de espíritos ou qualquer outra forma de superstição sem fundamento? Um não-popperiano responderia a esta questão dizendo que a verdadeira ciência prova aquilo que afirma, enquanto que a superstição consiste apenas em palpites. Mas, segundo a concepção de Popper, mesmo as teorias científicas são palpites — pois não podem ser provadas pelas observações: são apenas conjecturas não refutadas.
Popper chama a isto o "problema da demarcação" — qual é a diferença entre a ciência e outras formas de crença? A sua resposta é que a ciência, ao contrário da superstição, pelo menos é falsificável, mesmo que não possa ser provada. As teorias científicas estão formuladas em termos precisos, e por isso conduzem a previsões definidas. As leis de Newton, por exemplo, dizem-nos exactamente onde certos planetas aparecerão em certos momentos. E isto significa que, se tais previsões fracassarem, poderemos ter a certeza de que a teoria que está por detrás delas é falsa. Pelo contrário, os sistemas de crenças como a astrologia são irremediavelmente vagos, de tal maneira que se torna impossível mostrar que estão claramente errados. A astrologia pode prever que os escorpiões irão prosperar nas suas relações pessoais à quinta-feira, mas, quando são confrontados com um escorpião cuja mulher o abandonou numa quinta-feira, é natural que os defensores da astrologia respondam que, considerando todas as coisas, o fim do casamento provavelmente acabou por ser melhor. Por causa disto, nada forçará alguma vez os astrólogos a admitir que a sua teoria está errada. A teoria apresenta-se em termos tão imprecisos que nenhumas observações actuais poderão falsificá-la. 

3. Ciência e pseudociência
O próprio Popper usa este critério de falsificabilidade para distinguir a ciência genuína não só de sistemas de crenças tadicionais, como a astrologia e a adoração de espíritos, mas também do marxismo, da psicanálise de várias outras disciplinas modernas que ele considera negativamente como "pseudo-ciências". Segundo Popper, as teses centrais dessas teorias são tão irrefutáveis como as da astrologia. Os marxistas prevêem que as revoluções proletárias serão bem sucedidas quando os regimes capitalistas estiverem suficientemente enfraquecidos pelas suas contradições internas. Mas, quando são confrontados com revoluções proletárias fracassadas, respondem simplesmente que as contradições desses regimes capitalistas particulares ainda não os enfraqueceram suficientemente. De maneira semelhante, os teóricos psicanalistas defendem que todas as neuroses adultas se devem a traumas de infância, mas quando são confrontados com adultos perturbados que aparentemente tiveram uma infância normal dizem que ainda assim esses adultos tiveram que atravessar traumas psicológicos privados quando eram novos. Para Popper, estes truques são a antítese da seriedade científica. Os cientistas genuínos dirão de antemão que descobertas observacionais os fariam mudar de ideias, e abandonarão as suas teorias se essas descobertas se realizarem. Mas os teóricos marxistas e psicanalistas apresentam as suas ideias de tal maneira, defende Popper, que nenhumas observações possíveis os farão alguma vez modificar o seu pensamento.
|David Papineau, "Methodology" em A. C. Grayling (org.), Philosophy: A Guide Through the Subject, Oxford University Press, 1998. Tradução de Pedro Galvão.

Atividades:
1. Defina o conceito de falsificação.
2. O que é que distingue a ciência da não-ciência? Justifique.
3. A astrologia pode ser considerada uma ciência, de acordo com o falsificacionismo de Popper? Porquê?
4. O falsificacionismo é uma boa solução para o problema da indução? Porquê
5. É possível provar cientificamente a existência de Deus? Justifique a sua resposta tendo em conta os fundamentos da perspectiva falsificacionista.