sábado, 29 de outubro de 2016

Filosofia para Totós



“Só desejo que a filosofia possa aparecer perante os nossos olhos em toda a sua unidade, tal como, nas noites sem núvens, toda a extensão do firmamento está estendida perante nós para a admirarmos! Essa seria uma visão próxima à que temos do firmamento. Pois então decerto que a filosofia iria extasiar todos os mortais que a amam; devíamos abandonar todas aquelas coisas que, na nossa ignorância acerca do que é realmente importante, nós acreditamos que são importantes [sem o serem].
Séneca (Filósofo estóico do século I d.C.).

Filosofia para Totós? Que conceito! É o oxímoro, uma contradição nos termos, ou pelo menos uma contradição evidente, um exercício de futilidade, tal como “Cálculo Avançado para Imbecis”, ou “Neurocirurgia para Desastrados”?

Não. De forma nenhuma. O filósofo antigo Sócrates (século V a.C.), ensinou que, quando estão em causa as Questões Últimas (as questões mais importantes) todos nós começamos por ser totós. Mas se estivermos humildemente conscientes do quão pouco de facto sabemos, então poderemos, de facto, começar a aprender.

De facto, Platão  (cerca de 428-347 a.C.), o mais próximo discípulo de Sócrates, conta-nos uma história interessante sobre o seu mestre: diz-nós que Sócrates soube que o oráculo de Delfos tinha dito que ele era o homem mais sábio de Atenas. Chocado com este anúncio inesperado, começou a procurar os homens que em Atenas tinham a maior reputação de serem sábios e começou a questioná-los de forma intensiva. Depressa descobriu que, em relação a assuntos-chave e verdadeiramente importantes, eles, realmente, pouco ou nada sabiam acerca daquilo que estavam convencidos conhecer. Com base nesta experiência, ele lentamente começou a compreender que a sua própria sabedoria deveria consistir na sua consciência de quão pouco de facto sabia acerca das coisas que mais importam e o quanto é importante procurarmos tudo o que pudermos acerca desses assuntos. Não é o intelectual arrogante é convencido que dá mostras de ter sabedoria, mas aquele que procura a verdade com uma curiosidade autêntica e com uma mente genuinamente aberta. [...]

A palavra filosofia significa apenas “amor à sabedoria”. Isto é fácil de entender quando compreendemos que o amor é um compromisso e que a sabedoria é procurarmos ver a vida por dentro, [de forma plenamente consciente]. A filosofia é, no seu melhor, um compromisso apaixonado de procurar e abraçar as verdades mais fundamentais e as perspectivas mais penetrantes sobre a vida.

Aristóteles (384-322 a.C) também teve uma compreensão profunda que nos pode também guiar aqui. Este grande pensador, discípulo de Platão durante muitos anos e preceptor de Alexandre o Grande (muito antes de ele ser conhecido dessa forma, uma vez então ainda era o pequeno Alexandre), escreveu numa das suas obras mais importantes que “a filosofia começa com o espanto”. E ele estava certo. Se nos permitirmos sentir espanto acerca das nossas vidas, acerca daquelas coisas que temos como garantidas, e acerca daquelas grandes questões que frequentemente conseguimos  ignorar à medida que nos entregamos aos afazeres corriqueiros da vida quotidiana, estaremos a começar a comportar-nos como verdadeiros filósofos. Se pensarmos empenhadamente nessas questões e disciplinarmos o nosso raciocínio, de tal forma que possamos fazer verdadeiros progressos, começaremos a agir como bons filósofos. Mas não podemos verdadeiramente agir como filósofos se não começarmos a viver de acordo com as nossas descobertas filosóficas. Para sermos filósofos no sentido mais profundo, temos que pôr em ação a nossa sabedoria.\

Tom Morris, Philosophy for Dummies.

Critérios gerais de correção dos testes sumativos

terça-feira, 25 de outubro de 2016

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A Filosofia e a Ciência



No seu começo, a ciência estava ligada à filosofia, sendo o filósofo o sábio que refletia sobre todos os setores da indagação humana. Nesse sentido, os filósofos Tales e Pitágoras eram também geómetras, e Aristóteles escreveu sobre física e astronomia.
Na ordem do saber estipulada por Platão, o homem começa a conhecer pela forma imperfeita da opinião (doxa), depois passa ao grau mais avançado da ciência (episteme), para só então ser capaz de atingir o nível mais alto do saber filosófico.
A partir do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu promove a autonomia da ciência e o seu desligamento da filosofia. Pouco a pouco, desse período até o século XX, aparecem as chamadas ciências particulares - física, astronomia, química. biologia, psicologia, sociologia etc. -, delimitando um campo especifico de pesquisa.
Na verdade, o que estava a ocorrer era o nascimento da ciência, como a entendemos modernamente. Com a fragmentação do saber, cada ciência ocupa-se de um objeto especifico: à física cabe investigar o movimento dos corpos; à biologia, a natureza dos seres vivos; à química, as transformações substanciais, e assim por diante. Além da delimitação do objeto da ciência, acrescenta-se o aperfeiçoamento do método científico, fundado sobretudo na experimentação e matematização do real. 
O confronto dos resultados e a sua verificabilidade permitem uniformidade de conclusões e, portanto, objetividade. As afirmações da ciência são chamadas juízos de realidade (ou juízos de facto), já que, de uma forma ou de outra, pretendem mostrar como os fenómenos ocorrem, quais as suas relações e, consequentemente, como prevê-los.
A primeira questão que nos assalta é imaginar o que resta à filosofia se ao longo do tempo foi "esvaziada" do seu conteúdo pelo aparecimento das ciências particulares, tornadas independentes. Ainda mais que, no século XX, até as questões referentes ao homem passam a reivindicar o estatuto de cientificidade, representado pela procura do método das ciências humanas.
Ora, a filosofia continua a tratar da mesma realidade apropriada pelas ciências. Apenas que as ciências se especializam e observam "recortes" do real, enquanto a filosofia nunca renuncia a considerar o seu objeto do ponto de vista da totalidade. A visão da filosofia é de conjunto, ou seja, o problema tratado nunca é examinado de modo parcial, mas sempre sob a perspectiva de conjunto, relacionando cada aspecto com os outros do contexto em que está inserido.
Se a ciência tende cada vez mais para a especialização, a filosofia, no sentido inverso, quer superar a fragmentação do real, para que o homem seja resgatado na sua integridade e não sucumba à alienação do saber parcelado. Por isso a filosofia tem uma função de interdisciplinaridade, estabelecendo o elo entre as diversas formas do saber e do agir.
O trabalho da filosofia sob esse aspecto é importante e, sem negar o papel do especialista nem o valor da técnica que deriva desse saber, é preciso reconhecer que o saber especializado, sem a devida visão de conjunto, leva à exaltação do "discurso competente” e às consequentes formas de dominação.
A filosofia ainda se distingue da ciência pelo modo como aborda o seu objeto: em todos os setores do conhecimento e da ação, a filosofia está presente como reflexão crítica a respeito dos fundamentos desse conhecimento e desse agir. Então, por exemplo, se a física ou a química se denominam ciências e usam determinado método, não é da alçada do próprio físico ou do químico saber o que é a ciência, o que distingue esse conhecimento de outros, o que é o método, qual a sua validade, e assim por diante. Eles até podem dedicar-se a esses assuntos, mas, quando o fazem, passam a colocar-se questões filosóficas. O mesmo acontece com o psicólogo ao usar, por exemplo, o conceito de homem livre. Indagar sobre o que é a liberdade é fazer filosofia.
[...] A filosofia não faz juízos de realidade, como a ciência, mas juízos de valor. O filósofo [...] não vê apenas como é [a realidade humana], mas como deveria ser. Julga o valor da ação humana [em todos os seus horizontes], sai em busca do significado dela. Filosofar é dar sentido à experiência.

ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Filosofando, introdução à Filosofia. 2ª. São Paulo: Editora Moderna, 1993. 

domingo, 16 de outubro de 2016

Interpretação da alegoria da caverna



Platão escreveu esta alegoria há mais de dois mil anos mas ela permanece importante para nós porque nos diz muito sobre o que a filosofia é.

Em primeiro lugar, na alegoria, a filosofia corresponde a uma atividade, a uma viagem que nos deve conduzir do fundo da caverna em direção à luz.

Sendo uma atividade, a filosofia não é um simples conjunto de teorias. É evidente que os filósofos produziram muitas teorias sobre muitas questões fundamentais. Mas não se trata em filosofia de estudá-las para simplesmente as memorizar. Vais estudá-las, em vez disso, para aprender como se faz filosofia. Ao compreenderes como alguns dos melhores filósofos fizeram filosofia, ao considerares os problemas a que tentaram responder com as suas teorias e o modo como construíram essas teorias terás ao teu dispor um instrumento precioso para saber o que é filosofar e para aprenderes a filosofar.
Em segundo lugar, a alegoria da caverna de Platão mostra-nos que a filosofia (sair da caverna e regressar a esta) é uma atividade difícil. Porquê? Porque a viagem que nos faz subir da caverna em direção à luz exterior implica questionar as nossas crenças mais básicas, crenças que nos parecem dados adquiridos e incontestáveis. Mais claramente, é difícil porque ao questionarmos as nossas crenças fundamentais podemos ter de enfrentar a incompreensão dos outros, das pessoas que se satisfazem com ideias feitas. É difícil também porque exige disciplina intelectual, esforço crítico e autocrítico. Vamos por partes.

Dispormo-nos a examinar as nossas crenças mais básicas não é tarefa fácil porque pode fazer-nos chegar a conclusões que a maioria dos membros da sociedade desaprovam e porque exige uma atitude crítica que lança a dúvida sobre o que nos habituámos a considerar verdadeiro. Por exemplo, a filosofia examina as crenças básicas nas quais se apoia a religião quando pergunta:
Será que Deus existe? Que razões temos para acreditar nisso? Há uma vida para além da morte?

Também questiona as ideias fundamentais que constituem os pressupostos das nossas relações sociais ao perguntar:

 O que é uma sociedade justa? Será que devemos obedecer a quem nos governa? O Estado é uma instituição necessária? Estas questões podem ser consideradas como desafios às ideias estabelecidas e falta de respeito pelo que a tradição definiu.
Basta pensares nos problemas que enfrentam os que defendem, por exemplo, a ideia de direitos dos animais.

A atitude filosófica é também difícil porque exige que pensemos criticamente e rigorosamente acerca de crenças fundamentais que nos foram transmitidas e que aceitámos de forma acrítica. Com efeito, em muitos casos adquirimos ideias como quem contrai gripe, por contágio. À semelhança do vírus da gripe, as crenças estabelecidas parecem fazer parte do nosso ambiente e respiramo-las quase sem dar por isso. Assim, as crenças que eram da nossa cultura tornam-se as nossas crenças. Até podem ser verdadeiras e excelentes, mas como havemos de o saber se as interiorizámos de forma acrítica, sem pensar? Ao examinarmos as ideias básicas, nossas e dos outros, que se transformaram em hábitos mentais, devemos como filósofos perguntar:

O que justifica essas crenças? Que razões temos para supor que são verdadeiras? Podemos definir a filosofia como a atividade que critica e rigorosamente examina as razões subjacentes às nossas crenças fundamentais. Sair da caverna é procurar encontrar crenças fundamentais que sejam racionalmente justificadas.

Velasquez, Manuel, Philosophy, A text with readings, Wadsworth, 1999, pp 8-9.

A utilidade da filosofia

Kazuya Akimoto, "The Second Coming of Geometric Virgin Mary"

Inútil? Útil?

O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil? O senso comum da nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “ganhar em todas as situações”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil.

Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira?

Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos.

Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes.

Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.

Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade o progresso da humanidade.

Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos.

Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar o nosso mundo.

Qual seria, então, a utilidade da Filosofia?

Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia.


O valor da Filosofia 

O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela vida fora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época e do seu país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades não familiares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as coisas mais comuns conduzem a problemas para os quais somente respostas incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua o nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito o nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica o nosso sentimento de admiração, ao mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar.

Bertrand Russell, Problemas da Filosofia.

Qual é a coisa mais importante da vida?

“Qual é a coisa mais importante da vida? Se o perguntarmos a alguém num país com o problema da fome, a resposta é: a comida. Se pusermos esta questão a alguém que esteja com frio, neste caso a resposta é: o calor. E se perguntarmos a uma pessoa que se sinta muito sozinha a resposta será certamente: a companhia de outras pessoas.
Mas admitindo que todas estas necessidades estão satisfeitas – será que resta alguma coisa de que todos os homens precisam? Os filósofos acham que sim. Segundo eles, o homem não vive apenas do pão. É evidente que todos os homens precisam de comer. Todos precisam de amor e de atenção, mas há algo mais de que todos os homens precisam. Precisam de descobrir quem somos e porque é que vivemos.”

Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia.

"A Filosofia é grega"

Kazuya Akimoto, "The Black Parthenon"

A Filosofia é grega


A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e das suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um facto tipicamente grego.

Evidentemente, isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão antigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da Natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.

Quando se diz que a Filosofia é um facto grego, o que se quer dizer é que ela possui certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, o pensamento, a ação, as técnicas, que são completamente diferentes das características desenvolvidas por outros povos e outras culturas. [...].

A Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos que surgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas, se tornou, depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura europeia ocidental [...].

Através da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética,
política, técnica, arte.

Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política, monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, génese, genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são palavras gregas, para percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia, e da cultura, grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades europeias ocidentais.


O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu

Desse legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:

     • A ideia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por exemplo, [foi pela continuação da indagação iniciada pelos filósofos] gregos [que], no século XVII da nossa era, o filósofo inglês Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza. A lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro, produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que a ação e a reação se deram.

Essa lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de outra maneira que não desta; e esta lei é universal, isto é, válida para todos os corpos em todos os tempos e lugares.

Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo em 1792, em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas.

     • A ideia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade, pode alcançar.

     • A ideia de que o nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e normas universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o verdadeiro do falso. Por outras palavras, a ideia de que o nosso pensamento é lógico ou segue leis lógicas de funcionamento.

O nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na afirmação, atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que “Sócrates é um ser humano”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação, retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos “este caderno não é verde”, estamos a ‘retirar’ do caderno a cor verde).

O nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se alguém apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira, porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem verdadeiras.

      • A ideia de que as práticas humanas, isto é, a ação moral, a política, as técnicas e as artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa escolha passional (ou emocional) ou racional, das nossas preferências, segundo certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas por forças secretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis de serem conhecidas.

     • A ideia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos homens, em condições determinadas.[...]

      • A ideia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem agem cegamente, mas criam valores pelas quais dão sentido às suas vidas e às suas ações.


A Filosofia surgiu, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de conhecer-se a si mesma.

Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse de ser revelado por divindades a alguns escolhidos, mas que, pelo contrário, podia ser conhecida por todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida a todos.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia, Ed. Ática, S. Paulo, 2000, pp.20-24.


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Sócrates: o filme


Sócrates



O legado de Sócrates

“Mas, meu caro Críton, por que haveremos
de prestar tanta atenção àquilo que ‹‹a
maior parte das pessoas›› pensa?”

SÓCRATES, no diálogo Críton, de Platão
(c. 390 a. C.)

Por que razão Sócrates foi condenado?

No Museu Britânico há uma estátua de Sócrates que pode ter sido esculpida em 330 a. C., apenas sessenta e nove anos após a sua morte. Sócrates é retratado como um homem baixo, musculado e careca, com barba e um nariz largo e achatado. Estes detalhes são compatíveis com aquilo que Platão, que era seu discípulo, nos diz sobre a sua aparência. Sócrates nada escreveu pelo que quase tudo o que sabemos a seu respeito provém de Platão, que era seu discípulo. Nos diálogos de Platão encontramos Sócrates nos lugares públicos de Atenas a discutir as grandes questões da Verdade e da Justiça com os jovens da cidade. Mas vemo-lo também ser acusado de
corromper esses jovens – e depois julgado e condenado à morte. A razão pela qual isso aconteceu é u pouco misteriosa. Os atenienses eram democratas, orgulhosos dos seus feitos e liberdade intelectuais. Por que haveriam de condenar um filosofo à morte
por causa daquilo que ele ensinava?
De acordo com Platão, Sócrates foi acusado de «corrromper a juventude›› e de ‹‹impiedade para com os deuses››. A primeira acusação é vaga e não nos são
dados detalhes. O próprio Sócrates sugeriu, talvez de forma enganadora, que estava a ser acusado apenas de ensinar os jovens a colocar questões. A segunda acusação também parece forçada. Sócrates não era anti-religioso, e no seu julgamento alegou ser fiel nas suas práticas religiosas. Porém, aparentemente tinha opiniões que não eram ortodoxas. O estudioso clássico Gregory Vlastos sugere que, embora ter ideias não convencionais sobre os deuses não fosse suficiente para conduzir a problemas com a justiça, «empurrá-las para as ruas de Atenas››, como Sócrates sem dúvida fizera,
poderia levá-lo facilmente a meter-se em dificuldades.
Ainda assim, a descrição de Platão faz-nos interrogar se esta será a história toda.
Por que razão, então, Sócrates foi condenado? Pode ser útil recordar que Sócrates, embora tenha sido venerado pelas gerações posteriores, não era uma figura popular na sua época. (Ele próprio sugere que as acusações resultaram do facto de as pessoas não gostarem de si.) O Oráculo de Delfos dissera-lhe que ele era o mais sábio dos homens, e Sócrates aceitou o elogio, mas com uma qualificação peculiar. Disse que era sábio porque tinha compreendido como era ignorante.
Esta afirmação parece agradavelmente modesta. O problema foi Sócrates ter considerado que a sua «missão divina›› era mostrar aos outros que também eles
eram ignorantes. Numa típica conversa socrática, Sócrates mostrava aos seus interlocutores, para manifesto desagrado destes, que todas as suas opiniões eram 
erradas. Isto pode ter contribuído para que as pessoas tivessem vontade de o ver em apuros, mesmo que não justifique a sua condenação à morte.
A política também pode ter contribuído. Os atenienses tinham orgulho das suas instituições democráticas, mas Sócrates não partilhava esse sentimento. Segundo 
Platão, era o crítico mais feroz da democracia.  Objetava que a democracia colocava os homens em posição de autoridade não por causa da sua sabedoria ou do seu talento para governar, mas devido à sua capacidade de influenciar as massas com retórica vazia.
Numa democracia, aquilo que interessava não era a verdade, mas as relações públicas. Já existiam especialistas nessa área em Atenas. Os professores mais influentes da altura eram os sofistas, que ensinavam a arte da persuasão e eram abertamente cépticos quanto à «verdade». Se tivessem vivido 2400 anos depois, teriam sido spin-doctors, consultores de media ou especialistas de opinião pública.
Se a democracia ateniense fosse estável, a hostilidade de Sócrates poderia ter sido ignorada, do mesmo modo que hoje as democracias ocidentais toleram a crítica. Mas essa democracia não era estável; tinha sofrido uma série de ataques traumáticos. O último deles ocorrerá apenas cinco anos antes do julgamento de Sócrates, quando um grupo conhecido por «Trinta Tiranos» - liderado por Crítias, que fora um dos discípulos de Sócrates - organizou um golpe sangrento.
No seu julgamento, que ocorreu depois de a democracia ter sido restaurada, Sócrates censurou vivamente os Trinta Tiranos, chamando-lhes «perversos». Ainda assim, é fácil imaginar que os líderes de Atenas pudessem sentir-se mais confortáveis com Sócrates fora do horizonte. 
Tentar explicar um acontecimento que ocorreu há 2400 anos é uma tarefa frustrante, sujeita a uma incerteza ainda maior pelo facto de as diversas pessoas envolvidas terem os seus próprios motivos. Quem sabe por que razão os mais de quinhentos jurados votaram como votaram? Platão não ajuda: apresenta-nos o discurso de Sócrates, mas não o dos acusadores. Seja como
for, Sócrates foi julgado, considerado culpado e condenado à morte. A sentença parece excessiva, mas em certa medida Sócrates foi responsável por ela. Depois de ter sido considerado culpado, permitiram-lhe, em conformidade com as regras do tribunal, que propusesse o seu próprio castigo. Em vez de sugerir algo razoável, propôs que lhe dessem uma pensão vitalícia pelos serviços prestados ao Estado - os «serviços» eram as atividades pelas quais acabara de ser condenado. Só depois de os seus amigos terem intervindo é que Sócrates se dispôs a pagar uma pequena multa.
Não é surpreendente que os jurados tenham aceite a proposta alternativa dos seus acusadores.
No entanto, a sentença não foi assim tão dura, já que ninguém esperava que Sócrates morresse efectivamente. O exílio era uma alternativa informal. Enquanto aguardava a execução, deram-lhe meios para fugir.
Várias cidades estavam dispostas a recebê-lo e chegaram emissários com dinheiro. Platão faz-nos perceber que ninguém teria impedido Sócrates de fugir. Os seus inimigos queriam forçá-lo a partir e os seus amigos estavam prontos para se despedir de si.
Mas Sócrates não partiu. Em vez disso, começou â examinar as razões para fugir e para não o fazer. Defendera sempre que a nossa conduta se deve guiar
pela razão. Em qualquer situação, afirmou, devemos fazer aquilo que tem as melhores razões do seu lado.
Aqui estava, então, o teste decisivo ao seu compromisso com essa ideia. Enquanto a carruagem aguardava, disse a Críton que partiria se os melhores argumentos fossem para partir, mas que ficaria se os seus melhores argumentos fossem para ficar. Depois, tendo examinado a questão de todas as perspetivas, Sócrates concluiu que não poderia justificar a desobediência à ordem do tribunal. Por isso ficou, bebeu a cicuta – o veneno prescrito pelo tribunal - e morreu. Talvez pressentisse que o seu ato torna-lo-ia uma figura memorável para as gerações futuras. Avisou os atenienses de que não era a sua reputação, mas a deles, que ficaria manchada pela sua morte.[...]
Sócrates não foi «o primeiro filósofo» - tradicionalmente, esse título é reservado para Tales, que viveu um século antes. (Porquê Tales? Porque Aristóteles
o listou em primeiro lugar.) Ainda assim, os historiadores costumam designar Tales e os outros filósofos anteriores a Sócrates por «pré-socráticos», sugerindo assim que eles pertencem a uma espécie de pré-história filosófica e que Sócrates assinala o verdadeiro começo.
Aquilo que colocou Sócrates em destaque foi o seu método, e não tanto as suas doutrinas. Sócrates baseava-se na argumentação, insistindo que só se descobre
a verdade pelo uso da razão. O seu legado reside sobretudo na sua convicção inabalável de que mesmo as questões mais abstratas admitem uma analise racional. O que é a justiça? Será que a alma e imortal? Poderá alguma vez ser certo maltratar alguém? Será possível saber o que é certo fazer e, ainda assim, proceder de outro modo? Sócrates pensava que estes problemas não eram meras questões de opinião. Existem respostas verdadeiras para eles, que podemos descobrir se pensarmos de forma suficientemente profunda. Era também isto que incomodava os acusadores de Sócrates, os quais, segundo o relato de Platão, desconfiavam da razão e preferiam basear-se na opinião popular, no costume e na autoridade religiosa.
Sócrates acreditava que alguns argumentos eram tão fortes que o compeliam a permanecer em Atenas e a aceitar a morte.
Poderá isto ser verdade? Que argumentos poderiam ser assim tão poderosos? A questão essencial, disse a Críton, era a de saber se tinha a obrigação de obedecer às leis de Atenas. As leis tinham-lhe feito uma exigência. Teria de lhes obedecer? A sua discussão foi a primeira investigação filosófica sobre a natureza da obrigação política.

James Rachels, Problemas da Filosofia, Trad. de Pedro Galvão, Gradiva, Lisboa, 2010, pp.13-18.

Ver também:

O Método Socrático

Tales de Mileto




Tales de Mileto, (em grego antigo: Θαλῆς ὁ Μιλήσιος) foi um filósofo, matemático, engenheiro, homem de negócios e astrónomo da Grécia Antiga, o primeiro filósofo ocidental de que se tem notícia. De ascendência fenícia, nasceu em Mileto, antiga colónia grega, na Ásia Menor, atual Turquia, por volta de 623 a.C. ou 624 a.C. e faleceu aproximadamente em 546 a.C. ou 548 a.C..
Tales é apontado como um dos sete sábios da Grécia Antiga. Além disso, foi o fundador da Escola Jónica. Considerava a água como sendo a origem de todas as coisas, e seus seguidores, embora discordassem quanto à “substância primordial” (que constituía a essência do universo), concordavam com ele no que dizia respeito à existência de um “princípio único" (arquê ) para essa natureza primordial.


[...]Tales, que era suficientemente velho para ter podido prever um eclipse em 585 [, foi considerado o primeiro filósofo por Aristóteles].  [...] Era um geómetra, apesar de lhe serem atribuídos teoremas bastante simples, como o de que o diâmetro de um círculo divide este último em duas partes iguais.[...] Quando descobriu como inscrever um triângulo retângulo num círculo sacrificou um boi aos deuses. Mas a sua geometria tinha um lado prático: foi capaz de medir a altura das pirâmides medindo as suas sombras. Tales interessava-se também por astronomia, tendo identificado a constelação da Ursa Menor, sublinhando a sua utilidade para a navegação. Foi, diz-se, o primeiro grego a fixar a duração do ano em 365 dias e fez estimativas dos tamanhos do Sol e da Lua.
Tales foi talvez o primeiro [...] a levantar questões sobre a estrutura e a natureza do cosmos como um todo. Sustentava que a Terra repousa sobre a água, como um madeiro que flutua num regato. (Aristóteles perguntaria, mais tarde: a água repousa sobre o quê?) Mas a Terra e os seus habitantes não se limitavam a flutuar na água: Tales pensava que, num certo sentido, tudo era feito de água. Mesmo na antiguidade as pessoas não podiam fazer mais do que levantar conjeturas sobre as bases desta crença: seria porque todos os animais e plantas precisam de água ou porque todas as sementes são húmidas?
Por causa da sua teoria sobre o cosmos, os autores posteriores chamaram físico ou filósofo da natureza a Tales (physis é a palavra grega para natureza). Apesar de ser um físico, Tales não era materialista, isto é, não pensava que mais nada existisse a não ser a matéria física. Um dos dois adágios que nos chegaram dele textualmente é talvez dada pela sua afirmação de que o íman, porque desloca o ferro, tem alma. Tales não acreditava na doutrina da transmigração de Pitágoras, mas sustentava a imortalidade da alma.
Tales não foi apenas um teorizador. Foi um conselheiro político e militar do rei Creso da Lídia e ajudou-o a passar um rio a vau desviando um caudal de água. Prognosticando uma colheita de azeitona extraordinariamente boa, arrendou todos os lagares e enriqueceu.

Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Tradução: Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral, Porto Editora, p. 21.