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domingo, 17 de abril de 2016

A Teoria da Justiça de Rawls - ficha de exploração



Para resolver esta ficha, deve consultar os seguintes artigos:
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Deve, também, ter-se em conta os seguintes princípios:

A. Rawls é contratualista e, como tal, considera que os princípios corretos de justiça seriam aqueles que seriam escolhidos num acordo entre os interessados.

B. Para descobrirmos os princípios da sociedade justa devemos imaginar uma situação de partida, Posição Original, hipotética, em que indivíduos racionais estão a coberto de um Véu de Ignorância desconhecendo a sua posição na sociedade e as suas características particulares.

C. A experiência mental de situação original, sob um véu de ignorância, garante a  imparcialidade na escolha dos princípios.

D. Na posição original desconhecemos se somos homem ou mulher, qual a nossa raça, nacionalidade, classe social ou projetos de vida ; assim, não serão escolhidos princípios que favoreçam alguns. (não deveremos, no entanto, desconhecer o que é necessário para viver bem).

Texto 1
"Os sujeitos colocados na situação inicial escolheriam dois princípios[...]: 
primeiro[ - o  princípio da liberdade igual - ] exige a igualdade na atribuição dos direitos e deveres básicos, enquanto o segundo [ - o  princípio da diferença - ] afirma que as desigualdades económicas e sociais, por exemplo as que ocorrem na distribuição da riqueza e poder, são justas apenas se resultarem em vantagens compensadoras para todos e, em particular, para os mais desfavorecidos membros da sociedade. 
Decorre destes princípios que as instituições não podem ser justificadas pelo argumento de que as dificuldades de alguns são compensadas por um maior bem total. Pode, em certos casos, ser oportuno que alguns tenham menos para que outros possam prosperar, mas tal não é justo. Porém, não há injustiça no facto de alguns conseguirem benefícios maiores que outros, desde que a situação das pessoas menos afortunadas seja, por esse meio, melhorada. 
A ideia intuitiva é a seguinte: já que o bem-estar de todos depende de um sistema de cooperação sem o qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, a divisão dos benefícios deve ser feita de modo a provocar a cooperação voluntária de todos os que nele tomam parte, incluindo os que estão em pior situação. No entanto, tal só pode acontecer se os termos propostos forem razoáveis. 
Os dois princípios atrás mencionados parecem constituir uma base equitativa para um acordo, na base do qual os mais bem dotados, ou os que tiveram mais sorte na sua posição social — vantagens essas que não foram merecidas —, podem esperar obter a colaboração voluntária de outros, no caso de um sistema efectivo de cooperação ser uma condição necessária para o bem-estar de todos. 
Quando tentamos encontrar uma concepção de justiça que elimine os acasos da distribuição natural de qualidades e as contingências sociais como vantagens na busca de benefícios económicos e políticos, é a estes princípios que somos conduzidos. Eles são o resultado do facto de excluirmos os aspectos da realidade social que parecem arbitrários de um ponto de vista moral.
JOHN RAWLS, Uma Teoria da Justiça


Texto 2
O Véu da Ignorância
"Suponhamos que, num futuro não muito distante, deixa de haver oferta de árbitros de futebol. (…) Para muitos jogos, torna-se impossível descobrir um árbitro neutro. Suponhamos que foi isto que se passou no jogo entre o Futebol Clube do Porto e o Benfica e suponhamos também que o único árbitro qualificado a assistir ao desafio é o presidente do Futebol Clube do Porto.
Compreensivelmente, o Benfica não aceita a proposta de que seja ele a arbitrar o jogo. Contudo, a Liga de Futebol sabe que este problema surge de tempos a tempos e, por isso, inventou um fármaco. Quando tomamos esta substância, a nossa conduta é perfeitamente normal, com excepção de um aspecto: temos uma perda muito seletiva de memória. Deixamos de ser capazes de dizer qual o clube de futebol de que somos presidentes (…). Tendo tomado o fármaco em questão, como iria o presidente do Futebol Clube do Porto arbitrar o jogo?
A resposta é: poderia ser imparcial. Sabe que é presidente de um dos dois clubes, mas não qual. Assim, se escolher favorecer aleatoriamente uma equipa, pode vir a descobrir que prejudicou o seu próprio clube. Se presumirmos que ele não quer correr o risco de malograr injustamente as perspectivas do seu clube, só lhe restará agir tão justamente quanto lhe seja possível e deixar o jogo desenrolar-se de acordo com as regras. A ignorância gera imparcialidade.
Com isto em mente, podemos analisar a concepção de Rawls da posição original. As pessoas na posição original – os contratantes hipotéticos – têm à sua frente um «véu de ignorância» que não lhes permite aperceberem-se das suas circunstâncias particulares. Devido a esta ignorância, não sabem como ser parciais a seu favor e, assim, vêem-se obrigadas a agir imparcialmente."
Wolf, Introdução à Filosofia Política (adaptado) 

1. Para além dos princípios da justiça explicados por Rawls no texto 1, há ainda um terceiro princípio, derivado do princípio da diferença. Identifique esse princípio e explicite-o. Pode encontrar esse princípio explicitado aqui.

2. Explique o princípio da liberdade igual.
2.1. Mostre como o princípio da liberdade igual se manifesta na posição original (Véu da Ignorância). Pode encontrar bases para a resposta aqui.

2.2. Explique o princípio da diferença.
2.3. Confronte o principio da diferença com o igualitarismo.


John Rawls e a posição original



Uma Teoria da Justiça (1971) é a uma das mais importantes, criativas, influentes e polémicas obras de Filosofia Política do Séc. XX. Nela, Rawls concebe a sociedade como um sistema equitativo de cooperação, no qual é preciso distribuir de modo justo os benefícios e encargos da cooperação. 

Para isso, é necessário uma concepção de justiça que requer princípios que orientem a sua aplicação prática de modo mais direto e preciso. Tais princípios  aplicar-se-ão, segundo Rawls, à chamada estrutura básica da sociedade, isto é, às instituições que formam o seu núcleo constitutivo. 

Com esse propósito em vista, Rawls propõe dois princípios de justiça: O primeiro prevê que se deve assegurar aos indivíduos o mais amplo sistema possível de liberdades iguais, isto é, um rol de direitos básicos cuja inviolabilidade tem prioridade sobre qualquer outra consideração de justiça; o segundo prevê duas condições para que sejam aceitáveis diferenças sociais e económicas entre os indivíduos: a) que resultem de cargos e posições abertas a todos; e b) que coloquem os menos favorecidos em posição melhor do que estariam de outra forma. Tais princípios, [...] suscitaram grande discussão e controvérsia, [...], mas outro elemento da teoria, igualmente influente e controverso, é uma das mais inovadoras contribuições de Rawls, a saber, o tipo de argumento de que Rawls se serve para justificar os princípios que propôs, uma experiência mental de escolha de princípios de justiça por indivíduos que se encontram sob circunstancias idealizadas de imparcialidade, a que Rawls chamou Posição Original.

A ideia da Posição Original é a de uma situação artificial, puramente idealizada de imparcialidade, na qual se tornasse, enfim, possível alcançar um acordo entre os indivíduos acerca de princípios de justiça. Para isso, recorre à estratégia de neutralizar os elementos que normalmente os impedem de chegar a esse acordo, isto é, as suas diferentes posições sociais e convicções pessoais (metafisicas, religiosas, morais, políticas etc.), subtraindo dos participantes as informações acerca das suas respectivas posições e convicções, obrigando-os, assim, a adoptar o ponto de vista imparcial de quem pudesse estar em qualquer posição social e ter qualquer convicção substantiva. A esta subtração de informação para preservação forçada da imparcialidade Rawls chamou Véu de Ignorância.

Contudo, é preciso prestar atenção tao tipo de indivíduo que Rawls supõe que toma parte na Posição Original. Para Rawls, os indivíduos em sociedade são dotados de duas faculdades morais: a Racionalidade, que é a capacidade de ter uma concepção de bem (isto é, do que é bom para si) e persegui-la fazendo as escolhas e empregando os meios adequados; e a Razoabilidade, que é a capacidade de ter um senso de justiça e de conviver respeitando normas e critérios de justiça na relação com os demais. É o facto de os indivíduos serem, além de racionais, também razoáveis que torna possível que eles reconheçam e sigam os princípios de justiça depois que estes forem escolhidos na Posição Original. 

Porém, para provar que os dois princípios de justiça são tais que promovem a possibilidade de perseguir qualquer concepção de bem e que seriam, portanto, escolhidos por qualquer indivíduo racional, Rawls precisa de proceder a uma segunda neutralização: Precisa de supor que os indivíduos que tomam parte na Posição Original são apenas racionais, e não razoáveis. Isso quer dizer que sua capacidade de ter um sentido de justiça e agir em conformidade com ele não desempenha nenhum papel na escolha dos princípios de justiça, embora a ausência dessa capacidade também não retire o caráter moral do procedimento de escolha, porque devidamente compensada pelo constrangimento de imparcialidade do Véu de Ignorância.

Para Rawls, a situação de escolha devidamente neutralizada pelo Véu de Ignorância, somada aos participantes devidamente neutralizados na sua Razoabilidade, os poria na posição de escolher sob quais princípios de justiça prefeririam viver se, com base em sua Racionalidade, quisessem perseguir as suas respectivas concepções de bem, mas, devido ao véu de ignorância, não soubessem qual é essa concepção de bem, nem a sua posição social, nem as suas convicções substantivas. Rawls supõe que princípios escolhidos nessas circunstâncias honrariam mais que quaisquer outros as ideias de equidade e imparcialidade. 

Ora, as partes, privadas das informações que o Véu de Ignorância omitiu, quereriam antes de tudo proteger-se contra a possibilidade de que o regime distributivo que escolhessem as privasse dos bens mais indispensáveis para a persecução de quaisquer concepções de bem e projetos de vida. Para isso, listariam esses bens, chamados “bens primários”, os converteriam em “direitos básicos” e lhe atribuiriam prioridade sobre qualquer regime distributivo, isto é, lhes atribuiriam um estatuto diferenciado e prioritário tal que nenhum dos princípios distributivos que escolhessem jamais os deixasse privados deles. Nisso consiste o primeiro princípio - o princípio da liberdade igual.

Uma vez que se sentissem garantidas quanto à posse dos bens primários, partiriam para a consideração das questões de igualdade e diferença. Segundo Rawls, as partes da Posição Original não optariam por um sistema puramente igualitário, em que todos tivessem, por exemplo, o mesmo património e o mesmo rendimento. Não fariam isso por dois motivos. O primeiro é que não considerariam justo que, qualquer que fosse o esforço e talento de uma pessoa, a recompensa fosse sempre a mesma; o segundo é que, na condição de agentes racionais, levariam em conta que alguns cargos e posições são mais exigentes e árduos que outros, de modo que, se a recompensa por desempenhar tais cargos e posições não for correspondentemente maior, mesmo aqueles que são preparados e talentosos o bastante para os exercer não se sentiriam motivados a desempenhá-los, preferindo, em troca do mesmo rendimento, um cargo ou posição mais simples e fácil, prejudicando, assim, a sociedade como um todo. Por isso, rejeitariam a ideia de património e rendimento absolutamente iguais para todos. Optariam, em vez disso, por contemplar diferenças, mas assegurando-se de que elas se originaram numa situação justa de equidade das oportunidades. Por isso, formulariam o [princípio da oportunidade justa] ou princípio da Igualdade Equitativa de Oportunidades, que exige que diferenças sociais e económicas resultem de cargos e posições abertas a todos.

Por outro lado, saberiam que a autorização dessas diferenças, mesmo quando resultantes de uma igualdade equitativa de oportunidades, poderia dar origem a disparidades tais entre os indivíduos que não apenas lhes atribuísse, na prática, mais influência política e poder que os outros na sociedade (afetando o sistema igual de direitos previsto pelo primeiro princípio), mas também deixasse os menos favorecidos (quer dizer, os que, no regime da diferença, ficariam com menos) numa situação grave de privação apenas para que os mais favorecidos gozassem de situações cada vez melhores. Para impedir isso, as partes da Posição Original elegeriam a situação dos menos favorecidos como o ponto a ser observado no julgamento sobre a disparidade das diferenças e a comparação da sua situação em cenários alternativos de diferença como o critério para julgar se tais diferenças são aceitáveis. Sendo assim, um regime de diferenças sociais e económicas entre as pessoas teria que atender ao chamado Princípio da Diferença, que exige que aquelas diferenças sejam tais que coloquem os menos favorecidos em posição melhor do que estariam de outra forma. Isso ocorreria, segundo Rawls, no caso já ilustrado de quando as diferenças de renda e património recompensam em nível correspondentemente maior os indivíduos preparados e talentosos o bastante para desempenhar cargos e posições mais exigentes e árduos que os outros. Pois, comparando a situação dos menos favorecidos nesse caso (isto é, daqueles que, desempenhando cargos e posições mais simples e fáceis, teriam menor renda e património) com a situação em que os mesmos estariam caso aqueles cargos e posições mais exigentes e árduos não atraíssem ninguém para desempenhá-los, chega-se à conclusão de que, introduzida a diferença de recompensa, esta se justifica como sendo justa, pois deixa os menos favorecidos em melhor posição do que estariam sem ela.

A Posição Original, esta experiência mental em que partes racionais, postas em situação de igualdade e incerteza, escolhem princípios de justiça sob o Véu de Ignorância, é a grande contribuição metodológica da obra Uma Teoria da Justiça para a discussão da justiça distributiva em especial e para a filosofia moral em geral. A Posição Original ao mesmo tempo atualiza a ideia do contrato social, presente nas teorias políticas de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, para citar apenas os principais, elevando-a a um nível muito maior de abstração e idealização, e a ideia de teste de universalização, que obriga a tomar distância da perspectiva egocêntrica e examinar as alternativas sob um ponto de vista imparcial que leve em conta os interesses de todos, presente no imperativo categórico kantiano. 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Críticas à teoria de Rawls

Erik Brede

«Um contrato hipotético não é simplesmente uma forma pálida de um contrato real: não é contrato algum.»  Dworkin                                                                                                                                                        
«Rawls garante a imparcialidade impondo a ignorância.»  J. Wolff


1ª crítica

Uma primeira crítica questiona a justificação de Rawls para exigir que as pessoas escolham em termos de bens primários: liberdade, oportunidades, riqueza, rendimento e bases sociais de auto-estima. Devemos recordar que os bens primários foram introduzidos como consequência da decisão de Rawls de tornar as pessoas ignorantes relativamente à sua concepção de bem. Consequentemente, Rawls teve de postular uma “teoria fraca do bem”, de modo que as pessoas, a partir da posição original, pudessem fazer uma ou outra escolha, pois de outro modo, sem uma concepção do bem, não saberiam o que prefeririam. Rawls pressupõe que as pessoas racionais querem bens primários (e, destes, preferem ter mais do que menos), independentemente do que quiserem da vida. Por conseguinte, Rawls considera que estes bens são neutros no que diz respeito às concepções do bem. Mas a objecção é que estes bens não são neutros. Estes bens são particularmente adequados à vida nas economias capitalistas modernas, assentes no lucro, nos salários e nas trocas. Todavia, poderia certamente haver formas de vida não comerciais, mais comunais, e, portanto, com concepções de bem nas quais a riqueza e o rendimento ― e mesmo a liberdade e a oportunidade ― desempenhariam papéis menos importantes. Assim, prossegue a objecção, a posição original de Rawls é parcial, favorecendo uma organização económica e individualista da sociedade e ignorando a importância que os bens não económicos e comunais poderiam ter nas vidas das pessoas.


2ª crítica

Uma segunda crítica centra-se no facto de Rawls desejar tornar as partes contratantes ignorantes relativamente às suas qualidades naturais e sociais. Rawls afirma que a posse de qualidades naturais e sociais é “arbitrária de um ponto de vista moral”. Ninguém merece a força, a inteligência ou a beleza que possui, ou ter nascido numa família rica ou culta, e, portanto, ninguém merece beneficiar com estes acasos do nacimento. Esta convicção, então, é traduzida na ignorância que as pessoas que se encontram na posição original têm sobre estes factores.
Mas estará isto certo? Muitas pessoas opor-se-iam à ideia de que nunca merecemos o benefício retirado da utilização dos nossos talentos. Em particular, se alguém trabalhou arduamente para desenvolver um talento ou capacidade que passa a ser usado com sucesso, aceitamos frequentemente que essa pessoa merece uma recompensa pelo esforço. Mas Rawls afirma que mesmo a capacidade de fazer esse esforço, ou de lutar conscientemente para alcançar um objectivo, é de tal modo influenciada pelos factores sociais e naturais alheios ao controlo individual, que não se pode sequer dizer que os talentos desenvolvidos merecem uma recompensa.


3ª crítica

Alguns críticos consideram que os dois princípios de justiça de rawls são inconsistentes. Mais especificamente, afirmam que não é possível abraçar consistente e simultaneamente o Princípio da Liberdade o e Princípio da Diferença. Este tipo de argumento é apresentado de duas formas diferentes.
i) A primeira forma defende que, se queremos equiparar a liberdade, temos também de tornar igual a propriedade ― pois parece óbvio que os ricos conseguem fazer mais que os pobres e, portanto, ter maior liberdade. Assim, o Princípio da Diferença permite a existência de desigualdades de liberdade, entrando em contradição com o Princípio da Liberdade.
ii) A segunda forma sustenta que dar liberdade às pessoas implica não podermos impor restrições às posses individuais de propriedade. Limitar a quantidade de propriedade que as pessoas podem adquirir e aquilo que podem fazer com ela é uma forma de restringir a liberdade individual. Um respeito conveniente da liberdade elimina o Princípio da Diferença.
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A crítica de Nozick à teoria da justiça de Rawls

Robert Nozick, no livro “Anarquia, Estado e Utopia” (nomeadamente no sétimo capítulo), faz uma das mais consistentes críticas à teoria da justiça de John Rawls. 
Um dos mais famosos argumentos que Nozick concebe é o de Wilt Chamberlain que serve para criticar, mais precisamente, o princípio da diferença de Rawls e outros princípios da justiça padronizados e finalistas. Na página 206 da versão portuguesa, Nozick diz que “a lição ilustrada pelo exemplo de Wilt Chamberlain (…) é que nenhum princípio finalista ou princípio distributivo padronizado de justiça [como o princípio da diferença] pode ser continuadamente realizado sem interferir continuadamente na vida das pessoas”. 
Ou seja, para se conseguir manter um princípio padronizado de justiça será preciso violar a liberdade individual e os direitos de propriedade. O seguinte esquema poderá ajudar melhor à compreensão desta crítica de Nozick:

Para saber mais:
 Nozick, Robert (2009). Anarquia, Estado e Utopia. Tradução de Vitor Guerreiro. Lisboa: Edições 70.

 Rosas, João Cardoso (2009). “A concepção de estado de Nozick”, in Crítica,http://criticanarede.com/html/nozick.html
 Rosas, João Cardoso (org.) (2008). Manual de Filosofia Política. Coimbra: Edições Almedina.
 Wolff, Jonathan (2004). Introdução à Filosofia Política. Lisboa: Gradiva.
 "Ética, Direito e Política", capítulo 11 do manual A Arte de Pensar: http://aartedepensar.com/acetatos/capitulo11.pdf.
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Para saber mais:

As críticas de Michael Sandel à justiça como equidade 

(Este texto é difícil, as críticas de Sandel a Rawls estão resumidas no link seguinte).

Rawls e os seus críticos

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Rawls e Kant


A teoria da justiça de Rawls e a teoria ética deontológica de Kant
Os princípios da Justiça e o Imperativo categórico

No contexto da sociedade moderna bem ordenada, imaginada por John Rawls, há diferenças e desigualdades intrínsecas. As diferenças, segundo ele, fazem parte da sociedade não estatal ou civil; têm a ver com o facto de que as pessoas possuem interesses, convicções, preferências, tipos biológicos, culturais e intelectuais que são discrepantes, constituindo na prática a ideia daquilo que classicamente denominamos de pluralismo social. Por outro lado, as desigualdades económicas têm a ver diretamente com o que acontece no Mercado, ou seja, na estrutura económica existem homens inseridos em áreas (classes/grupos) sociais diferentes que terão diferentes expectativas de vida e de sucesso material. Conforme ressaltou John Rawls neste sentido, é no Mercado que as desigualdades são marcadas especialmente de forma profunda.
Considerando essa realidade social, onde coexistem o conceito da igualdade postulado pelo Estado de Direito Democrático, o conceito da desigualdade do Mercado e o conceito da diferença postulado pela Sociedade civil, o maior desafio para John Rawls é exatamente formalizar um modelo de contrato alternativo que seja capaz de permitir aos interessados resolverem os seus conflitos adotando a cooperação como princípio social básico inserido no ambiente democrático plural. Para desenhar esse modelo contratual inovador em relação ao contratualismo moderno, e também revolucionário em relação ao  Utilitarismo, John Rawls desenvolveu uma releitura crítica das ideias de Kant, Locke e Rousseau. Nessa direção, ele não imaginou como os indivíduos iriam fundar hipoteticamente o Estado civil, como fizeram os pioneiros contratualistas, mas pensou agora em discutir como as pessoas poderiam reutilizar o Estado de Direito Democrático - já instituído - no momento crucial em que elas estejam a tentar realizar a justiça com o máximo de respeito e cidadania.
A escolha racional dos princípios constitucionais em favor de uma justiça humanizada implica o reconhecimento mútuo de que, independentemente do que acontecer no futuro, todos os participantes querem ser tratados com igualdade e respeito. Na verdade, todos os cidadãos desejam a igualdade de oportunidade para manifestarem as suas opiniões, interesses e preferências. Nesse aspecto, John Rawls afirmou que: “a partir do momento em que todos se posicionam da mesma forma, ninguém seria capaz de fazer uma escolha que favoreça a sua própria posição particular e os princípios da justiça seriam o resultado de um acordo equitativo”.
A “posição original” do contrato (semelhante ao estado de natureza dos contratualistas modernos) será identificada por meio de regras que serão adotadas coletivamente, surgindo por extensão uma identidade moral entre os participantes que reivindicam bens primários idênticos (no mínimo, liberdade, justiça, igualdade, respeito,  as bases sociais da autoestima, responsabilidade e oportunidade de participação). 
Nessa filosofia contratual, tem ampla aceitação o facto de que será impossível ajustarem-se os princípios às circunstâncias peculiares de cada caso particular. O contrato é inicialmente oficializado entre as partes falando do futuro e não do presente, daí Rawls se referir a esta posição inicial como estando ligada ao ‘véu da ignorância’ – os indivíduos decidem dos princípios orientadores da sociedade sem terem em conta os seus interesses particulares nem a sua situação social. Além disso, não importa saber se uma das partes é rica e a outra é pobre. O que se valoriza nesse tipo de contrato é exatamente a concordância moral mútua, ou seja, os cidadãos participantes desejam ser tratados com o máximo de dignidade no procedimento alternativo da justiça. Aqui, o desconhecimento contratual (o véu da ignorância) que se tem não é propriamente sobre a realidade económica de cada um, mas a respeito da posição institucional que se ocupará no futuro. Não se sabe, exatamente, se a pessoa será credora ou devedora, vítima ou agressora. Independentemente, portanto, do que ocorrer no futuro, os contratantes esperam ser tratados com dignidade na resolução de um eventual conflito ou escassez de bens públicos.
A unidade desse contrato social alternativo procura equilibrar as desigualdades económicas com os princípios da diferença e da igualdade constitucional do Estado; entretanto, para isso acontecer positivamente, as liberdades básicas do cidadão devem ser garantidas, por exemplo: a liberdade política, de associação, de pensamento, a liberdade de não ser preso arbitrariamente, além da garantia dos direitos fundamentais à vida e à propriedade. Todas essas liberdades civis são fundamentais e precisam de ser garantidas pelo Estado.
Para desenhar a estrutura do contrato da equidade, Rawls recuperou basicamente a filosofia kantiana e juntou o que foi separado pelo contratualismo moderno, ou seja, conciliou a Ética com o Direito (e com a Política). Indo nessa direção, Rawls notou que a filosofia de Kant se focalizou na decisão racional do sujeito moral considerando que o homem é um ser livre e igual no âmbito da moralidade. Agindo com “autonomia”, portanto, o indivíduo observaria princípios que no nível mais alto de abstração garantiriam a dignidade da pessoa humana. No Direito, por outro lado, segundo Kant, o conceito fundamental a ser discutido é a “heteronomia”. Nesse caso, a pessoa agiria não por força da espontaneidade da sua vontade, mas sim pela obrigatoriedade externa das instituições públicas estatais.
Semelhante ao que acontece no campo da moralidade tal como é encarado por Kant, o modelo proposto por John Rawls considera que “os princípios sobre os quais o homem age não são adotados por causa de sua posição social ou dons naturais, ou em vista da particular espécie de sociedade na qual vive ou das coisas específicas que deseja”. Além disso, John Rawls salientou que as duas fórmulas do imperativo categórico kantiano são princípios de justiça, pois cada um deles é um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude da sua natureza como ser racional, livre e igual na sociedade.
A “posição original” definida por John Rawls é uma interpretação sintetizadora da autonomia ética com a heteronomia legislativa kantiana. A justiça como equidade é uma justiça humana, assim definiu o autor. Pressupõe nesse sentido que uma determinada pessoa vai reconhecer a presença do outro no mundo, com respeito e tolerância. Entretanto, os princípios adotados pensando no “eu” do outro são todos eles públicos dentro de uma determinada comunidade ética. Concretamente, a presença moral do “eu” acontece dentro da Lei ou do Estado de Direito Democrático. Por isso mesmo, é importante relembrar que a comunidade moral não está fora da ordem pública, muito menos é uma conveniência puramente individualista ou arbitrária. Por outras palavras, os princípios de justiça aplicam-se à estrutura básica da sociedade e regulam a maneira como as instituições deverão ser combinadas num determinado esquema jurídico válido. Nesse contexto, o sistema contratual tem de ser esboçado de forma que a resultante distribuição seja “justa”, mesmo que as opiniões dos contratantes se alterem no futuro.
(Texto adaptado).
Heraldo Elias Montarroyos
Texto copiado daqui.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A Teoria da Justiça de Rawls



Problema

Há crianças vendidas por pais extremamente pobres a quem tem dinheiro e falta de escrúpulos para as comprar; pessoas cujo rendimento não permite fazer mais do que uma refeição por dia; jovens que não têm a menor possibilidade de adquirir pelo menos a escolaridade básica; cidadãos que estão presos por terem defendido as suas ideias. Perante casos destes sentimos que as nossas intuições morais de justiça e igualdade não são respeitadas. Surge assim a pergunta: Como é possível uma sociedade justa? Este problema pode ter formulações mais precisas. Uma delas é a seguinte: Como deve uma sociedade distribuir os seus bens? Qual é a maneira eticamente correcta de o fazer? Trata-se do problema da justiça distributiva. A pergunta que o formula é a seguinte: Quais são os princípios mais gerais que regulam a justiça distributiva? A teoria da justiça de John Rawls é a resposta mais influente a este problema. 

Teoria

A teoria de Rawls constitui, em grande parte, uma reacção ao utilitarismo clássico. De acordo com esta teoria, se uma acção maximiza a felicidade, não importa se a felicidade é distribuída de maneira igual ou desigual. Grandes desníveis entre ricos e pobres parecem em princípio justificados. Mas na prática o utilitarismo prefere uma distribuição mais igual. Assim, se uma família ganha 5 mil euros por mês e outra 500, o bem-estar da família rica não diminuirá se 500 euros do seu rendimento forem transferidos para a família pobre, mas o bem-estar desta última aumentará substancialmente. Isto compreende-se porque, a partir de certa altura, a utilidade marginal do dinheiro diminui à medida que este aumenta. (Chama-se "utilidade marginal" ao benefício comparativo que se obtém de algo, por oposição ao benefício bruto: achar uma nota de 100 euros representa menos benefício para quem ganha 20 mil euros por mês do que para quem ganha apenas 500 euros por mês.) Deste modo, uma determinada quantidade de riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade se for retirada dos ricos para dar aos pobres. Tudo isto parece muito sensato, mas deixa Rawls insatisfeito. Ainda que o utilitarismo conduza a juízos correctos acerca da igualdade, Rawls pensa que o utilitarismo comete o erro de não atribuir valor intrínseco à igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto quer dizer que a igualdade não é boa em si — é boa apenas porque produz a maior felicidade total.

Por consequência, o ponto de partida de Rawls terá de ser bastante diferente. Rawls parte então de uma concepção geral de justiça que se baseia na seguinte ideia: todos os bens sociais primários — liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as bases sociais da auto-estima (um conceito impreciso) — devem ser distribuídos de maneira igual a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens beneficie os menos favorecidos. A subtileza é que tratar as pessoas como iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens para alguém. Se dar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra promove mais os interesses de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro, então uma consideração igualitária dos interesses não proíbe essa desigualdade. Por exemplo, pode ser preciso pagar mais dinheiro aos professores para os incentivar a estudar durante mais tempo, diminuindo assim a taxa de reprovações. As desigualdades serão proibidas se diminuírem a tua parte igual de bens sociais primários. Se aplicarmos este raciocínio aos menos favorecidos, estes ficam com a possibilidade de vetar as desigualdades que sacrificam e não promovem os seus interesses.

Mas esta concepção geral ainda não é uma teoria da justiça satisfatória. A razão é que a ideia em que se baseia não impede a existência de conflitos entre os vários bens sociais distribuídos. Por exemplo, se uma sociedade garantir um determinado rendimento a desempregados que tenham uma escolaridade baixa, criará uma desigualdade de oportunidades se ao mesmo tempo não permitir a essas pessoas a possibilidade de completarem a escolaridade básica. Há neste caso um conflito entre dois bens sociais, o rendimento e a igualdade de oportunidades. Outro exemplo é este: se uma sociedade garantir o acesso a uma determinada escolaridade a todos os seus cidadãos e ao mesmo tempo exigir que essa escolaridade seja assegurada por uma escola da área de residência, no caso de uma pessoa preferir uma escola fora da sua área de residência por ser mais competente e estimulante, gera-se um conflito entre a igualdade de oportunidades no acesso à educação e a liberdade de escolher a escola que cada um acha melhor.

Como podes ver, a concepção geral de justiça de Rawls deixa estes problemas por resolver. Será então indispensável um sistema de prioridades que justifique a opção por um dos bens em conflito. E nesse caso, se escolhemos um bem em detrimento de outro, é porque temos uma razão forte para considerar um dos bens mais prioritário do que outro. Nesse sentido, Rawls divide a sua concepção geral em três princípios:

Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.

Princípio da diferença: A sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto se a existência de desigualdades económicas e sociais gerar o maior benefício para os menos favorecidos.

Princípio da oportunidade justa: As desigualdades económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades.

Estes três princípios formam a concepção de justiça de Rawls. Mas por si só estes princípios não resolvem conflitos como os que viste. Se queres ter uma espécie de guia nas tuas escolhas, é preciso ainda estabelecer uma ordem de prioridades entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois e o princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. Atingido um nível de bem-estar acima da luta pela sobrevivência, a liberdade tem prioridade absoluta sobre o bem-estar económico ou a igualdade de oportunidades, o que faz de Rawls um liberal. A liberdade de expressão e de religião, assim como outras liberdades, são direitos que não podem ser violados por considerações económicas. Por exemplo, se já tens um rendimento mínimo que te permite viver, não podes abdicar da tua liberdade e aceitar a restrição de não poderes sair de uma exploração agrícola na condição de passares a ganhar mais. Outro exemplo que a teoria de Rawls rejeita seria o de abdicares de gozar de liberdade de expressão para um dia teres a vantagem económica de não te serem cobrados impostos.

Em cada um dos princípios mantém-se a ideia de distribuição justa. Assim, uma desigualdade de liberdade, oportunidades ou rendimento será permitida se beneficiar os menos favorecidos. Isto faz de Rawls um liberal com preocupações igualitárias. Considera mais uma vez alguns exemplos. Um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais dotados o acesso a maiores apoios se, por exemplo, as empresas em dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo, aumentando os lucros e evitando despedimentos. Outro caso permitido é o de os médicos ganharem mais do que a maioria das pessoas desde que isso permita aos médicos ter acesso a tecnologia e investigação de ponta que tornem mais eficazes os tratamentos de certas doenças e desde que, claro, esses tratamentos estejam disponíveis para os menos favorecidos.

As liberdades básicas a que Rawls dá atenção são os direitos civis e políticos reconhecidos nas democracias liberais, como a liberdade de expressão, o direito à justiça e à mobilidade, o direito de votar e de ser candidato a cargos públicos.

A parte mais disputável da teoria de Rawls é a que diz respeito à exigência de distribuição justa de recursos económicos — o que se compreende. Uma vez resolvido o problema dos direitos e liberdades básicas nas sociedades democráticas liberais, o grande problema com que estas sociedades se deparam é o de saber como devem ser distribuídos os recursos económicos — trata-se do problema da justiça distributiva. Ora, como essa exigência de distribuição justa é expressa pelo princípio da diferença, serão submetidos à tua avaliação crítica os argumentos de Rawls em defesa desse princípio.

Argumentos

Rawls apresenta dois argumentos a favor do princípio da diferença: o argumento intuitivo da igualdade de oportunidades e o argumento do contrato social hipotético.

O argumento intuitivo da igualdade de oportunidades

Este argumento apela à tua intuição de que o destino das pessoas deve depender das suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso se encontram. Ninguém merece ver as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma certa classe social ou raça. Intuitivamente não achamos plausível que uma mulher, pelo simples facto de ser mulher, encontre resistências à possibilidade de liderar um banco. Estas são circunstâncias que a igualdade de oportunidades deve eliminar. Ora, estando garantida a igualdade de oportunidades, prevalece nas sociedades actuais a ideia de que as desigualdades de rendimento são aceitáveis independentemente de os menos favorecidos beneficiarem ou não dessas desigualdades. Como ninguém é desfavorecido pelas suas circunstâncias sociais, o destino das pessoas está nas suas próprias mãos. Os sucessos e os falhanços dependem do mérito de cada um, ou da falta dele. É assim que a maioria pensa.

Mas será que esta visão dominante da igualdade de oportunidades respeita a tua intuição de que o destino das pessoas deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas circunstâncias em que se encontram? Rawls pensa que não. Por esta razão: reconhecendo apenas diferenças nas circunstâncias sociais e ignorando as diferenças nos talentos naturais, a visão dominante terá de aceitar que o destino de um deficiente seja determinado pela sua deficiência ou que a infelicidade de um QI baixo dite o destino de uma pessoa. Isto impõe um limite injustificado à tua intuição. Se é injusto que o destino de cada um seja determinado por desigualdades sociais, também o será se for determinado por desigualdades naturais. Afinal, a tua intuição vê a mesma injustiça neste último caso. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais. E neste caso não poderás aceitar o destino do deficiente ou da pessoa com um QI baixo.

O que propõe Rawls em alternativa? Que a noção comum de igualdade de oportunidades passe a reconhecer as desigualdades naturais. Como? Dispondo a sociedade da seguinte maneira: quem ganha na "lotaria" social e natural dá a quem perde. De acordo com Rawls, ninguém deve beneficiar de forma exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é injusto permitir tais benefícios se eles trazem vantagens para aqueles que a "lotaria" natural não favoreceu. E deste modo justificamos o princípio da diferença. Concluindo, a noção dominante de igualdade de oportunidades parte da intuição de que o destino de cada pessoa deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas suas circunstâncias; mas esta mesma intuição consistentemente considerada obriga a que aquela noção passe a incluir as desigualdades naturais. O que daí resulta é precisamente o princípio da diferença. Como ninguém parece querer abdicar do pressuposto da igualdade moral entre todas as pessoas, Rawls defende que o princípio que melhor dá conta desse pressuposto é o princípio da diferença.

O argumento do contrato social hipotético

Imagina que não conheces o teu lugar na sociedade, a tua classe e estatuto social, os teus gostos pessoais e as tuas características psicológicas, a tua sorte na distribuição dos talentos naturais (como a inteligência, a força e a beleza) e que nem sequer conheces a tua concepção de bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Mas não és o único que se encontra nesta posição original; pelo contrário, todos estão envoltos neste véu de ignorância. Rawls afirma que esta situação hipotética descreve uma posição inicial de igualdade e nessa medida este argumento junta-se ao argumento intuitivo da igualdade de oportunidades. Ambos procuram defender a concepção de igualdade que melhor dá conta das nossas intuições de igualdade e justiça. De seguida, Rawls levanta a questão central: Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam contando que não teriam maneira de saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou naturais. Nessa medida, a posição original diz-nos que é razoável aceitar que ninguém deve ser favorecido ou desfavorecido.

Apesar de não sabermos qual será a nossa posição na sociedade e que objectivos teremos, há coisas que qualquer vida boa exige. Poderás ter uma vida boa como arquitecto ou poderás ter uma vida boa como mecânico e parece óbvio que estas vidas particulares serão bastante diferentes. Mas para serem ambas vidas boas há coisas que terão de estar presentes em qualquer uma delas, assim como em qualquer vida boa. A estas coisas Rawls chama bens primários. Há dois tipos de bens primários, os sociais e os naturais. Os bens primários sociais são directamente distribuídos pelas instituições sociais e incluem o rendimento e a riqueza, as oportunidades e os poderes, e os direitos e as liberdades. Os bens primários naturais são influenciados, mas não directamente distribuídos, pelas instituições sociais e incluem a saúde, a inteligência, o vigor, a imaginação e os talentos naturais. Podes achar estranho que as instituições sociais distribuam directamente rendimento e riqueza, mas segundo Rawls as empresas são instituições sociais.

Ora, sob o véu de ignorância, as pessoas querem princípios de justiça que lhes permitam ter o melhor acesso possível aos bens sociais primários. E, como não sabem que posição têm na sociedade, identificam-se com qualquer outra pessoa e imaginam-se no lugar dela. Desse modo, o que promove o bem de uma pessoa é o que promove o bem de todos e garante-se a imparcialidade. O véu de ignorância é assim um teste intuitivo de justiça: se queremos assegurar uma distribuição justa de peixe por três famílias, a pessoa que faz a distribuição não pode saber que parte terá; se queremos assegurar um jogo de futebol justo, a pessoa que estabelece as regras não pode saber se a sua equipa está a fazer um bom campeonato ou não. Imagina os seguintes padrões de distribuição de bens sociais primários em mundos só com três pessoas:

Mundo 1: 9, 8, 3;
Mundo 2: 10, 7, 2;
Mundo 3: 6, 5, 5.

Qual destes mundos garante o melhor acesso possível aos bens em questão? Lembra-te que te encontras envolto no véu de ignorância. Arriscas ou jogas pelo seguro? Tentas maximizar o melhor resultado possível ou tentas maximizar o pior resultado possível? Rawls responde que a tua intuição de justiça te conduzirá ao mundo 3. A escolha racional será essa. A estratégia de Rawls é conhecida como "maximin", dado que procura maximizar o mínimo. (Repara que a soma total de bens sociais do mundo 1 é 20, ao passo que no mundo 3 a soma total é apenas 16. Por outras palavras, o mundo 3 é menos rico do que o mundo 1, mas mais igualitário.) Nessa medida, defende que devemos escolher, de entre todos as situações possíveis, aquela em que a pessoa menos favorecida fica melhor em termos de distribuição de bens primários. É verdade que os outros dois padrões de distribuição têm uma utilidade média mais alta. (A utilidade média obtém-se somando a riqueza total e dividindo-a pelas pessoas existentes. A utilidade média do mundo 1 é 6,6 e a do mundo 3 é de apenas 5,3.) Todavia, como só tens uma vida para viver e nada sabes sobre qual será a tua posição mais provável nos outros dois padrões, a escolha do mundo 3 é mais racional e ao mesmo tempo mais compatível com as tuas intuições de igualdade e justiça. E o que diz o princípio da diferença? Diz precisamente que a sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto as desigualdades económicas e sociais que beneficiam os menos favorecidos. Afinal, parece que nenhuma das desigualdades dos mundos 1 e 2 traz benefícios para os menos favorecidos.

Faustino Vaz
Texto copiado daqui.