Imagem de Gilbert Garcin |
A primeira questão colocada pela filosofia da mente é a seguinte: serão mente e corpo a mesma coisa? Será o pensamento apenas um produto do meu cérebro — que produziria pensamentos da mesma forma que o meu pâncreas produz insulina? Qual é a natureza dos fenómenos mentais?
Essa não é apenas uma primeira questão numa ordem de indagações. Trata-se da pergunta mais importante a ser respondida pela filosofia da mente — o problema fundamental que dá origem a quase todos os temas tratados por essa disciplina.
Eu posso fechar os meus olhos e, numa fracção de segundos, pensar em estrelas coloridas a cintilar num céu azul-escuro. Estrelas que nem sequer sei se existem, e que talvez estejam a muitos anos-luz de distância. Eu posso imaginar uma vaca amarela ou então dizer que estou a sentir muito calor. Entretanto, se alguém pudesse abrir o meu cérebro e examiná-lo com o mais aperfeiçoado instrumento de observação de que a ciência dispõe, não veria estrelas coloridas nem uma vaca amarela. Veria apenas uma massa cinzenta, cheia de células ligadas entre si.
Essas células são chamadas neurónios, verdadeiras unidades do sistema nervoso cuja existência foi finalmente provada somente há cerca de um século com o trabalho de S. Ramón y Cajal. Até então muitos achavam que o sistema nervoso era um conjunto de vias contínuas, subdivididas em minúsculos filamentos. Os neurónios têm diversas formas e tamanhos, tendo, todos, entretanto, uma região destinada a fazer contacto com outros neurónios, os chamados dendritos. O corpo da célula, o soma, contém um núcleo e outras estruturas, como os mitocôndrias, que participam dos aspectos metabólicos da actividade dos neurónios. Há também uma outra conexão de um neurónio com outros, mais longa e através da qual se movimenta o impulso nervoso. Essa conexão é chamada axónio. Cada região do neurónio revela propriedades eléctricas, mas os impulsos geralmente ocorrem, na maioria das vezes, no axónio.
Desde o aparecimento dos trabalhos de Ramón y Cajal, nenhuma outra disciplina se desenvolveu tanto neste século XX quanto a neurociência. Dispomos hoje de um conhecimento bastante preciso do funcionamento cerebral e das suas unidades básicas, bem como das reacções químicas que nele ocorrem. Sabemos que o cérebro é uma máquina complexa resultante da reunião de elementos fundamentais: o neurónio ou unidade básica, as sinapses ou conexões entre os neurónios e as ligações químicas que ali ocorrem, através de neurotransmissores e receptores. Essas combinações tornam-no uma máquina extremamente poderosa, na medida em que são capazes de gerar configurações e arranjos variados num número astronómico.
Contudo, o grande desafio que a neurociência ainda enfrenta é a dificuldade (ou será uma impossibilidade?) de relacionar o que ocorre no cérebro com aquilo que ocorre na mente, ou seja, de encontrar algum tipo de tradução entre sinais eléctricos das células cerebrais e aquilo que percebo ou sinto como sendo meus pensamentos. A observação da actividade eléctrica do meu cérebro não permite saber se estou a pensar em estrelas coloridas ou numa vaca amarela. Alguém poderia até inferir — de algum tipo de observação do que ocorre no meu cérebro — que estou a sentir calor, mas não saberia dizer se o calor que eu sinto é maior ou menor do que o calor que o cientista, ao observar meu cérebro, estaria a sentir.
Se ninguém pode observar esses fenómenos que ocorrem em mim e se ninguém os encontra no meu cérebro, então posso formular duas perguntas: Onde estarão eles a ocorrer? E o que serão eles se — pelo menos inicialmente — não posso supor que sejam objectos como quaisquer outros que se apresentam diante de mim, como parte da natureza?
Estas duas questões estão na origem da determinação daquilo a que chamamos «subjectividade». As estrelas coloridas e cintilantes, bem como as vacas amarelas, existem para mim, pelo menos momentaneamente. Se ninguém mais pode observá-las, posso então dizer que estes são estados subjectivos. Os estados subjectivos encontram-se na nossa mente, mas não na natureza. Eu preciso de uma mente para ter estados subjectivos, já que esses não se podem encontrar nem mesmo no meu cérebro. Surge então uma pergunta preliminar: mas o que são as mentes? Se as mentes se caracterizam por ter estados subjectivos e esses não se podem encontrar no meu cérebro, estaremos então a afirmar que não precisamos de cérebros para ter mentes? Algumas pessoas sustentam tal ponto de vista, quase sempre a partir de crenças religiosas de vários tipos. Esse ponto de vista é, entretanto, contra-intuitivo: sabemos que, se danificarmos o cérebro de uma pessoa, muitas das suas actividades mentais serão também afectadas. Sabemos também que, se bebermos várias doses de cerveja, a nossa mente ficará alterada. O mesmo ocorre quando tomamos algum tipo de droga. Altero a minha mente porque alterei o meu corpo — sabemos que tanto o álcool como as outras drogas actuam sobre regiões do cérebro, alterando o seu equilíbrio químico. O problema que enfrentamos consiste em definir que tipo de relação existe entre a mente e o corpo ou entre a mente e o cérebro.
Podemos começar por considerar que tipo de estratégia poderíamos adoptar para abordar esse problema. Uma delas consiste em apostar no avanço progressivo da ciência e supor que o problema da relação mente e cérebro seja um problema empírico, ou seja, um problema científico como qualquer outro que algum dia acabará por ser desvendado. O grande avanço da neurociência nos últimos anos e a progressiva e tentadora possibilidade de explicar a natureza do pensamento através da estrutura química do cérebro seria uma boa razão para adoptar essa estratégia. Outra estratégia consiste em apostar que esse é um problema que ultrapassa os limites daquilo que a ciência pode vir a esclarecer. Qualquer uma das estratégias significa uma aposta. Uma aposta que, de uma forma ou de outra, envolve uma tomada de decisão em favor de algum tipo de imagem do mundo.
Um exame preliminar de como a relação entre mente e cérebro poderia ser concebida parece forçar-nos a optar por dois tipos de alternativas básicas: ou os estados mentais (e estados subjectivos) são apenas uma variação ou um tipo especial de estados físicos (monismo); ou os estados mentais e subjectivos definem um domínio completamente diferente — e talvez à parte — dos fenómenos físicos (dualismo). Essas duas alternativas são apenas a transcrição das apostas que podemos fazer, seja em favor de uma imagem do mundo ou de outra. A primeira sugere que existem apenas cérebros e que os estados subjectivos podem ser apenas uma ilusão a ser desfeita pela ciência. A segunda aposta na existência de algo a que chamamos "mentes" que, para alguns, só poderia ser explicado pela religião ou pela adopção de uma visão mística do mundo.
É nesse sentido que o problema mente-cérebro é também visto como um problema ontológico: é preciso saber se o mundo é composto apenas de um tipo de substância, ou seja, a substância física, e se a mente é apenas uma variação desta última, ou se, na verdade, nos defrontamos com dois tipos de substâncias totalmente distintas, com propriedades irredutíveis entre si. Por outras palavras: há duas substâncias ou uma só? Há uma realidade ou pelo menos duas? Se há duas realidades, um mundo da matéria e outro imaterial, de que lado devemos situar as mentes?
|João de Fernandes Teixeira
Adaptação portuguesa de António Paulo da Costa
Extracto retirado do livro Mente, Cérebro e Cognição (Petrópolis: Vozes, 2000), pp. 15-17.
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