sábado, 14 de março de 2015

As críticas (objeções) à ética deontológica de Kant

Pintura de Joel Rea

1 – As regras morais não são absolutas
Kant defende que para agirmos moralmente temos de respeitar de forma incondicional um conjunto de algumas regras morais (deveres ditados pela nossa razão). Para Kant, essas regras morais são absolutas, são para serem respeitadas de forma incondicional, sem excepções, em todas as situações do nosso quotidiano.
Uma dessas regras é o nosso “dever de não mentir”. Para Kant, não devemos mentir em toda e qualquer situação. Mas quererei eu que este princípio de acção se aplique universalmente a todos os casos possíveis de acção? Vamos ver um caso em que é preferível mentir a dizer a verdade, ou seja, em que é moralmente mais correcto mentir a dizer a verdade, sendo o caso de termos de mentir com vista a salvarmos a vida de uma pessoa (lembre-se de que Kant admitira que não existiam excepções para a violação ou desobediência a estas regras morais).
Imagine que vai na rua e de repente vê um rapaz a correr aflito na sua direcção, entrando, logo de seguida, numa casa abandonada que se encontrava ao seu lado. Poucos segundos depois, quando retomava o seu percurso, avista um homem com uma pistola na mão que lhe pergunta de relance se viu algum rapaz a correr, percebendo de imediato, naquele momento, que o homem teria a intenção de disparar contra o rapaz e, provavelmente, de matá-lo. O que diz ao homem? Tem duas possibilidades de acção.
Uma das possibilidades é dizer a verdade ao homem, dizendo-lhe que o rapaz se encontra mesmo ali ao vosso lado, no interior da casa abandonada, sabendo que as consequências do que afirmou poderão eventualmente resultar na morte do rapaz.
A outra das possibilidades é mentir, dizendo ao homem que o rapaz seguiu em frente. Mentir? Mas isso Kant não o permitiria, diria. Exacto, não o permitiria. Mas o que é que para si é moralmente mais correcto, dizer a verdade e pôr em causa a vida de uma pessoa ou mentir e provavelmente salvar a vida de uma pessoa? De acordo com uma das formulações do imperativo categórico de Kant, como irias querer que todas as pessoas agissem quando confrontadas com essa situação:
1 – Que mentissem e não pusessem em causa a vida de um jovem
2 – Que dissessem a verdade e pusessem em causa a vida de um jovem.
Vamos colocar as duas na balança da decisão ética. Tenho a certeza de que a maioria das pessoas concordaria com a primeira das hipóteses.
É claro que Kant iria afirmar que, dizendo a verdade ou pura e simplesmente mentindo, as consequências são imprevisíveis. Portanto, o melhor é sempre dizermos a verdade, aquilo que a nossa razão nos ordena. Mas isto é absurdo, porque um caso como este põe em causa a vida de uma pessoa e, neste sentido, podemos dizer que as consequências daquilo que afirmamos poderão provavelmente resultar na morte de um jovem.
Ora, este exemplo revela que nem sempre é moralmente correcto termos de respeitar de forma incondicional as regras morais da nossa consciência racional, tal como Kant nos tinha dito. Logo, concluímos que as regras morais não são absolutas.

2 – A situação dos casos de conflito
Uma certa pessoa tem de optar entre duas possibilidades de acção (fazer A ou fazer B). Verifica-se que fazer A é moralmente incorrecto e fazer B é moralmente incorrecto. O que faria o defensor da teoria ética de Kant perante esta situação?
Atente na seguinte situação: “Durante a Segunda Guerra Mundial, os pescadores holandeses transportavam, secretamente nos seus barcos, refugiados judeus para Inglaterra e os barcos de pesca com refugiados a bordo eram por vezes interceptados por barcos patrulha nazis. O capitão nazi perguntava então ao capitão holandês qual o seu destino, quem estava a bordo, e assim por diante. Os pescadores mentiam e obtinham permissão de passagem. Ora, é claro que os pescadores tinham apenas duas alternativas, mentir ou permitir que os seus passageiros (e eles mesmos) fossem apanhados e executados. Não havia terceira alternativa.”
Os pescadores holandeses encontravam-se então na seguinte situação: ou “mentimos” ou “permitimos o homicídio de pessoas inocentes”. Os pescadores teriam de escolher uma dessas opções. De acordo com Kant, qualquer uma delas é errada, na medida em que as regras morais “não devemos mentir” e “não devemos matar” (ou permitir o assassínio de inocentes, no caso do exemplo dado) são absolutas. O que fazer então?
Verificamos que a teoria ética de Kant não saberia responder perante uma situação de conflito, porque proíbe ambas as possibilidades de acção por estas se revelarem moralmente incorrectas. Mas a verdade é que, perante uma situação destas, a qual por acaso se passou na realidade, teríamos de optar por uma dessas duas possibilidades. Se a teoria ética de Kant nos proíbe de optar por uma delas, mas na realidade somos forçados a optar por uma, a teoria ética de Kant revela-se incoerente. Incoerente porque aquilo que concluímos (existem casos em que temos de mentir) contradiz aquilo que Kant defende (não devemos mentir nunca e em qualquer situação e isto porque para Kant as regras morais são absolutas).

      3 - Por vezes é impossível decidir sem olhar às consequências da ação

"A teoria de Kant não dá atenção às consequências da acção. Isto significa que idiotas bem intencionados que, involuntariamente, causem várias mortes em consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria de Kant, uma vez que seriam primariamente julgados pelas suas intenções. 
Mas, em alguns casos, as consequências das acções parecem relevantes para uma apreciação do seu valor moral: pense como se sentiria em relação a uma babysitter que tentasse secar o seu gato no micro-ondas. Contudo, para ser justo com Kant a este respeito, é verdade que ele considera condenáveis alguns tipos de incompetência." 

4 - As emoções e os sentimentos são componentes essenciais da natureza humana, não podendo ser descartados 

Segundo as mais recentes descobertas da neurociência é impossível separar a racionalidade das emoções. Só somos racionais graças aos centros cerebrais que processam as emoções - o sistema límbico tem um papel determinante na memorização e na aprendizagem e no processamento das emoções básicas, como o medo e a agressividade, enquanto o córtex pré-frontal, quase inexistente nos outros mamíferos, processa as emoções superiores, indispensáveis no caso das decisões morais. O cérebro não seria capaz de processar estas decisões sem a interferência das emoções. Aliás, também não seria capaz de funcionar corretamente ao nível do raciocínio lógico-matemático: mesmo com um nível tão grande de abstração, as emoções ajudam-nos a encontrarmos as respostas corretas, é pelo menos o que revelam medições da atividade elétrica do cérebro de pessoas a resolverem problemas matemáticos, as áreas do seu cérebro responsáveis pelo processamento emocional estão muito ativas, o que leva António Damásio a defender que não há raciocínio ou decisão sem as emoções.
A forma como Kant descreve a ação moral aproxima-se, surpreendentemente, da forma como funciona a mente dos sociopatas (também designados como psicopatas): são indivíduos incapazes de sentir compaixão pelos outros e que agem friamente na prossecução dos seus interesses, sem se preocuparem com as consequências das suas ações na vida dos outros. No entanto, se os sociopatas seguissem o imperativo categórico nunca usariam as outras pessoas como meios para alcançarem os seus fins. 
O problema está em saber se conseguiríamos viver uma vida humana se seguíssemos a ética Kantiana. Talvez a questão deva ser reformulada: sendo humanos (e não sendo sociopatas) poderíamos seguir sempre a ética de Kant? Conseguiríamos viver em família se na base da nossa relação com os nossos familiares não estivesse um profundo vínculo afetivo?

5 - O amor e a compaixão têm importância ética

"O papel que a teoria de Kant dá a emoções tais como a compaixão, a simpatia e a piedade parece inadequado. Kant afasta tais emoções como irrelevantes para a moral: a única motivação apropriada para a acção moral é o sentido do dever. 
Sentir compaixão pelos mais necessitados - apesar de, de certos pontos de vista, poder ser digno de louvor - não tem, para Kant, nada a ver com a moral. Pelo contrário, muitas pessoas pensam que há emoções distintamente morais - tais como a compaixão, a simpatia e o remorso - e separá-las da moral, como Kant tentou fazer, será ignorar um aspecto central do comportamento moral." Nigel Warburton

6 - O formalismo kantiano é desumano

"A teoria ética de Kant, e sobretudo a sua noção de universalizabilidade dos juízos morais, é por vezes criticada por ser vazia. Isto significa que a sua teoria só nos oferece um enquadramento que revela a estrutura dos juízos morais sem ajudar em nada os que estão perante tomadas de decisão morais efectivas. Dá pouca ajuda às pessoas que tentam decidir o que devem fazer. 
Esta crítica negligencia a versão do imperativo categórico que nos ensina a tratar as pessoas como fins e nunca como meios. Nesta última formulação, Kant dá, sem dúvida, algum conteúdo à sua teoria moral. Mas, mesmo combinando a tese da universalizabilidade com a formulação dos meios e dos fins, a teoria de Kant não oferece soluções satisfatórias para muitas questões morais. 
Por exemplo, a teoria de Kant não consegue dar facilmente conta dos conflitos entre deveres. Se, por exemplo, eu tenho o dever de dizer sempre a verdade, e também o dever de proteger os meus amigos, a teoria de Kant não me poderia mostrar o que deveria fazer quando estes deveres entram em conflito. Se um louco com um machado me perguntasse onde está o meu amigo, a minha primeira reacção seria mentir-lhe. Dizer a verdade seria fugir ao meu dever de proteger o meu amigo. Mas, por outro lado, segundo Kant, dizer uma mentira, mesmo numa situação limite como esta, seria uma acção imoral: tenho o dever absoluto de nunca mentir."  Nigel Warburton

Este formalismo é desumano, porque os seres humanos necessitam, desde a mais tenra idade, de se sentirem amados, e isto é importante para a formação da auto-estima. As pessoas com uma auto-estima saudável tendem a sentir que a sua vida tem sentido, alcançando níveis de auto-realização superiores em relação às pessoas com uma fraca auto-estima. Isto também se reflete na saúde: as pessoas que se sentem realizadas (no fundo, que se sentem felizes) têm tendencialmente um sistema imunitário mais robusto do que as pessoas que se sentem deprimidas e insatisfeitas consigo próprias.
As pessoas que são mais compassivas tendem também a ter uma atitude positiva em relação à vida, o que lhes traz muitos benefícios ao nível da sua saúde física e psíquica, porque tendem a sentir-se seguras no seu ambiente e têm níveis de stresse baixos, porque não têm uma visão conflituosa da vida, o que tem consequências muito positivas ao nível do sistema cárdio-vascular (só para citar este exemplo).
Se as pessoas fossem exclusivamente motivadas pela obediência ao dever moral teriam relações frias e desapegadas, sendo difícil perspetivar a vida familiar sem afeto, ou aceitar que as pessoas conseguissem ter relacionamentos significativos sem amor. Casar por amor pode tornar-se numa lei universal? Se sim, não estaríamos perante uma máxima que contraria a lei moral? É que o amor é uma inclinação sensível... 



Sem comentários:

Enviar um comentário