“A possibilidade dos mortos-vivos.
Os mortos-vivos parecem-se com o leitor e comigo e comportam-se como o leitor e
eu nos comportamos. A natureza física dos mortos-vivos não se distingue da
nossa. Se o leitor abrisse o cérebro de um morto-vivo, chegaria à conclusão de
que funciona exatamente do mesmo modo como funciona o seu cérebro ou o meu. Se
o leitor picar um morto-vivo, ele soltará um “Ai!” exatamente como eu ou o
leitor. Mas os mortos-vivos não têm consciência. Não há ‘fantasma’ algum dentro
deles.
Porque se os mortos-vivos se
parecem exatamente consigo e comigo e se comportam tal como nós, não há maneira
de saber quais de nós são mortos-vivos e quais de nós têm consciência tal como
o leitor e eu. Ou, pelo menos, tal como eu, uma vez, tendo considerado a
possibilidade dos mortos-vivos, dou-me conta que de que não posso estar
realmente seguro acerca de si, leitor, nem de qualquer outra pessoa. Talvez a consciência
seja uma realidade extremamente rara correlata de um complexo sistema de alma e
corpo. Talvez eu seja o único exemplo disso – talvez todas as outras pessoas sejam
mortos-vivos.
Eis outra das maneiras como as
coisas poderão ser:
A possibilidade dos mutantes.
Os mutantes parecem-se com o leitor e comigo e comportam-se como eu
e o leitor nos comportamos. A natureza física dos mutantes não se distingue da
nossa. Se o leitor abrisse o cérebro de um mutante, chegaria à conclusão de que
ele funciona exatamente do mesmo modo que o seu cérebro ou o meu. Se o leitor
picar um mutante, ele soltará um “Ai!”, exatamente como eu ou o leitor.
Ao contrário dos mortos-vivos,
os mutantes têm consciência. Há um fantasma dentro deles. Mas os acontecimentos
que ocorrem no fantasma do mutante não são como é de esperar. Um mutante que
seja picado, por exemplo, pode ter experiência de um acontecimento mental, como
ouvir um dó central de um clarinete. Também ele soltará um “Ai!”, pois, dado
que o cérebro dele funciona como o nosso e ele se comporta como nós, ser picado
com um alfinete inicia processos que causam modificações que levam por fim a
que ele solte um “Ai!”, tal como todos nós. Quando ele, neste caso, ouvir um dó
central de um clarinete, talvez sinta uma dor horrível, mas isso não fará mais
do que fazê-lo sorrir beatificamente. Um mutante que veja um marco de correio
vermelho poderá vê-lo como se fosse amarelo; um mutante que veja narcisos
poderá vê-los como se fossem azuis. Um acontecimento que ocorra na consciência
de um mutante não apresenta qualquer relação com
os acontecimentos que ocorrem na mente do leitor ou na minha. Ou, pelo menos,
qualquer relação com os acontecimentos que ocorrem na minha mente. Pois, uma
vez que considerei a possibilidade dos mutantes, dou-me conta de que não posso
estar realmente seguro acerca de si, leitor, nem de qualquer outra pessoa.
Talvez todas as outras pessoas, quando comparadas comigo, sejam mutantes.
O leitor poderá dizer: pois
bem, vamos supor que essas são possibilidades completamente em aberto.
Talvez eu jamais possa saber como é realmente a mente de outra pessoa, que
acontecimentos mentais ocorrem nela ou, até mesmo, se ela tem realmente alguma
vida mental. Mas não poderei eu supor, ainda assim, que as vidas mentais das
outras pessoas são muito parecidas com a minha? Não poderei razoavelmente
usar-me a mim próprio como um modelo para tudo o resto? Sendo uma hipótese ou
conjectura, não será grande coisa como conhecimento, mas talvez seja uma
conjectura razoável a fazer. Este é o chamado «argumento por analogia a favor
da existência de outras mentes”. O problema deste argumento é parecer
incrivelmente fraco. Como o grande filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein
(1889-1951) perguntava “ e como posso eu, de um modo tão irresponsável,
generalizar a partir de um caso?”. O simples facto de num caso – o meu próprio
– haver, talvez por sorte, uma vida mental de um tipo particular e definido,
associado a um cérebro e a um corpo, parece ser um fundamento muito frágil para
se supor que há exatamente a mesma associação em todos os outros casos. Se eu
tiver uma caixa com uma carocha lá dentro, isso apenas me dá motivos muito
fracos para supor que qualquer outra pessoa que tenha uma caixa tem também uma
carocha dentro dela.
O leitor poderá sentir-se
inclinado a afastar a possibilidade dos mortos-vivos e dos mutantes. Poderá
considerar que elas fazem parte de fantasias filosóficas, irreais ou, em
qualquer caso, inverificáveis. Mas isto não é uma reação inteligente. As possibilidades
são de facto inverificáveis. Os neurofisiólogos, por exemplo, não podem encontrar
experiência consciente do modo como encontram neurónios, sinapses e padrões de
actividade cerebral – (…) não podem mostrá-las [experiências conscientes] num
monitor/tela (screen) aos estudantes num anfiteatro da escola. Por que razão falam
tanto os filósofos de possibilidades extravagantes que as outras pessoas têm
todo o prazer em ignorar (uma das coisas que fazem da filosofia uma área
proibitiva e lhe dá má reputação)? A razão está em
que as possibilidades são usadas para pôr à prova uma concepção acerca de como
são as coisas.
Considere-se outra vez o
morto-vivo. O seu funcionamento físico é idêntico ao nosso. Reage ao mundo do
mesmo modo. Os seus projetos realizam-se ou falham da mesma maneira: a saúde
dele depende das mesmas variáveis de que depende a nossa. Ele pode rir nos
sítios certos e chorar em tragédias apropriadas. Pode ser divertido estar com
ele. Assim sendo, que diferença faz a falta de consciência? Ou, pondo as coisas
ao contrário, o que está a consciência por hipótese a fazer em nós? Devemos
concluir que em nós, que não somos mortos-vivos, há acontecimentos mentais, mas
não fazem nada? Será a consciência como o zunido do motor – algo que não faz
parte da máquina que faz acontecer as coisas? (Esta teoria é conhecida por
«epifenomenalismo»). Mas, se as mentes não fazem coisa alguma, por que razão
evoluíram? Por que razão tratou a natureza de fazer mentes?”
Simon Blackburn, Think, Oxford University Press, 1999,
pp.53-57; trad. port. Desidério Murcho/ Pedro Santos, Lisboa, Gradiva, 2001,
pp. 61-66.
Epifenomenalismo – teoria
segundo a qual as actividades mentais, os fenómenos psíquicos, são meros produtos
de processos neurais e não possuem influência causal sobre o curso dos
fenómenos físicos ou mentais. (Houaiss)
“A consciência estaria ligada
ao mecanismo do corpo, simplesmente como um produto do seu trabalho, sendo
completamente desprovida do poder de modificar esse trabalho, tal como um apito
que acompanha o trabalho de uma locomotiva não tem influência sobre a sua
maquinaria.” (Thomas Huxley, Method and Results. Collected Essays I, London, Macmillan, 1898, p.240 e sgs.).
Texto recolhido no site:
http://filosofiadareligiao.no.sapo.pt/
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