sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Sócrates



O legado de Sócrates

“Mas, meu caro Críton, por que haveremos
de prestar tanta atenção àquilo que ‹‹a
maior parte das pessoas›› pensa?”

SÓCRATES, no diálogo Críton, de Platão
(c. 390 a. C.)

Por que razão Sócrates foi condenado?

No Museu Britânico há uma estátua de Sócrates que pode ter sido esculpida em 330 a. C., apenas sessenta e nove anos após a sua morte. Sócrates é retratado como um homem baixo, musculado e careca, com barba e um nariz largo e achatado. Estes detalhes são compatíveis com aquilo que Platão, que era seu discípulo, nos diz sobre a sua aparência. Sócrates nada escreveu pelo que quase tudo o que sabemos a seu respeito provém de Platão, que era seu discípulo. Nos diálogos de Platão encontramos Sócrates nos lugares públicos de Atenas a discutir as grandes questões da Verdade e da Justiça com os jovens da cidade. Mas vemo-lo também ser acusado de
corromper esses jovens – e depois julgado e condenado à morte. A razão pela qual isso aconteceu é u pouco misteriosa. Os atenienses eram democratas, orgulhosos dos seus feitos e liberdade intelectuais. Por que haveriam de condenar um filosofo à morte
por causa daquilo que ele ensinava?
De acordo com Platão, Sócrates foi acusado de «corrromper a juventude›› e de ‹‹impiedade para com os deuses››. A primeira acusação é vaga e não nos são
dados detalhes. O próprio Sócrates sugeriu, talvez de forma enganadora, que estava a ser acusado apenas de ensinar os jovens a colocar questões. A segunda acusação também parece forçada. Sócrates não era anti-religioso, e no seu julgamento alegou ser fiel nas suas práticas religiosas. Porém, aparentemente tinha opiniões que não eram ortodoxas. O estudioso clássico Gregory Vlastos sugere que, embora ter ideias não convencionais sobre os deuses não fosse suficiente para conduzir a problemas com a justiça, «empurrá-las para as ruas de Atenas››, como Sócrates sem dúvida fizera,
poderia levá-lo facilmente a meter-se em dificuldades.
Ainda assim, a descrição de Platão faz-nos interrogar se esta será a história toda.
Por que razão, então, Sócrates foi condenado? Pode ser útil recordar que Sócrates, embora tenha sido venerado pelas gerações posteriores, não era uma figura popular na sua época. (Ele próprio sugere que as acusações resultaram do facto de as pessoas não gostarem de si.) O Oráculo de Delfos dissera-lhe que ele era o mais sábio dos homens, e Sócrates aceitou o elogio, mas com uma qualificação peculiar. Disse que era sábio porque tinha compreendido como era ignorante.
Esta afirmação parece agradavelmente modesta. O problema foi Sócrates ter considerado que a sua «missão divina›› era mostrar aos outros que também eles
eram ignorantes. Numa típica conversa socrática, Sócrates mostrava aos seus interlocutores, para manifesto desagrado destes, que todas as suas opiniões eram 
erradas. Isto pode ter contribuído para que as pessoas tivessem vontade de o ver em apuros, mesmo que não justifique a sua condenação à morte.
A política também pode ter contribuído. Os atenienses tinham orgulho das suas instituições democráticas, mas Sócrates não partilhava esse sentimento. Segundo 
Platão, era o crítico mais feroz da democracia.  Objetava que a democracia colocava os homens em posição de autoridade não por causa da sua sabedoria ou do seu talento para governar, mas devido à sua capacidade de influenciar as massas com retórica vazia.
Numa democracia, aquilo que interessava não era a verdade, mas as relações públicas. Já existiam especialistas nessa área em Atenas. Os professores mais influentes da altura eram os sofistas, que ensinavam a arte da persuasão e eram abertamente cépticos quanto à «verdade». Se tivessem vivido 2400 anos depois, teriam sido spin-doctors, consultores de media ou especialistas de opinião pública.
Se a democracia ateniense fosse estável, a hostilidade de Sócrates poderia ter sido ignorada, do mesmo modo que hoje as democracias ocidentais toleram a crítica. Mas essa democracia não era estável; tinha sofrido uma série de ataques traumáticos. O último deles ocorrerá apenas cinco anos antes do julgamento de Sócrates, quando um grupo conhecido por «Trinta Tiranos» - liderado por Crítias, que fora um dos discípulos de Sócrates - organizou um golpe sangrento.
No seu julgamento, que ocorreu depois de a democracia ter sido restaurada, Sócrates censurou vivamente os Trinta Tiranos, chamando-lhes «perversos». Ainda assim, é fácil imaginar que os líderes de Atenas pudessem sentir-se mais confortáveis com Sócrates fora do horizonte. 
Tentar explicar um acontecimento que ocorreu há 2400 anos é uma tarefa frustrante, sujeita a uma incerteza ainda maior pelo facto de as diversas pessoas envolvidas terem os seus próprios motivos. Quem sabe por que razão os mais de quinhentos jurados votaram como votaram? Platão não ajuda: apresenta-nos o discurso de Sócrates, mas não o dos acusadores. Seja como
for, Sócrates foi julgado, considerado culpado e condenado à morte. A sentença parece excessiva, mas em certa medida Sócrates foi responsável por ela. Depois de ter sido considerado culpado, permitiram-lhe, em conformidade com as regras do tribunal, que propusesse o seu próprio castigo. Em vez de sugerir algo razoável, propôs que lhe dessem uma pensão vitalícia pelos serviços prestados ao Estado - os «serviços» eram as atividades pelas quais acabara de ser condenado. Só depois de os seus amigos terem intervindo é que Sócrates se dispôs a pagar uma pequena multa.
Não é surpreendente que os jurados tenham aceite a proposta alternativa dos seus acusadores.
No entanto, a sentença não foi assim tão dura, já que ninguém esperava que Sócrates morresse efectivamente. O exílio era uma alternativa informal. Enquanto aguardava a execução, deram-lhe meios para fugir.
Várias cidades estavam dispostas a recebê-lo e chegaram emissários com dinheiro. Platão faz-nos perceber que ninguém teria impedido Sócrates de fugir. Os seus inimigos queriam forçá-lo a partir e os seus amigos estavam prontos para se despedir de si.
Mas Sócrates não partiu. Em vez disso, começou â examinar as razões para fugir e para não o fazer. Defendera sempre que a nossa conduta se deve guiar
pela razão. Em qualquer situação, afirmou, devemos fazer aquilo que tem as melhores razões do seu lado.
Aqui estava, então, o teste decisivo ao seu compromisso com essa ideia. Enquanto a carruagem aguardava, disse a Críton que partiria se os melhores argumentos fossem para partir, mas que ficaria se os seus melhores argumentos fossem para ficar. Depois, tendo examinado a questão de todas as perspetivas, Sócrates concluiu que não poderia justificar a desobediência à ordem do tribunal. Por isso ficou, bebeu a cicuta – o veneno prescrito pelo tribunal - e morreu. Talvez pressentisse que o seu ato torna-lo-ia uma figura memorável para as gerações futuras. Avisou os atenienses de que não era a sua reputação, mas a deles, que ficaria manchada pela sua morte.[...]
Sócrates não foi «o primeiro filósofo» - tradicionalmente, esse título é reservado para Tales, que viveu um século antes. (Porquê Tales? Porque Aristóteles
o listou em primeiro lugar.) Ainda assim, os historiadores costumam designar Tales e os outros filósofos anteriores a Sócrates por «pré-socráticos», sugerindo assim que eles pertencem a uma espécie de pré-história filosófica e que Sócrates assinala o verdadeiro começo.
Aquilo que colocou Sócrates em destaque foi o seu método, e não tanto as suas doutrinas. Sócrates baseava-se na argumentação, insistindo que só se descobre
a verdade pelo uso da razão. O seu legado reside sobretudo na sua convicção inabalável de que mesmo as questões mais abstratas admitem uma analise racional. O que é a justiça? Será que a alma e imortal? Poderá alguma vez ser certo maltratar alguém? Será possível saber o que é certo fazer e, ainda assim, proceder de outro modo? Sócrates pensava que estes problemas não eram meras questões de opinião. Existem respostas verdadeiras para eles, que podemos descobrir se pensarmos de forma suficientemente profunda. Era também isto que incomodava os acusadores de Sócrates, os quais, segundo o relato de Platão, desconfiavam da razão e preferiam basear-se na opinião popular, no costume e na autoridade religiosa.
Sócrates acreditava que alguns argumentos eram tão fortes que o compeliam a permanecer em Atenas e a aceitar a morte.
Poderá isto ser verdade? Que argumentos poderiam ser assim tão poderosos? A questão essencial, disse a Críton, era a de saber se tinha a obrigação de obedecer às leis de Atenas. As leis tinham-lhe feito uma exigência. Teria de lhes obedecer? A sua discussão foi a primeira investigação filosófica sobre a natureza da obrigação política.

James Rachels, Problemas da Filosofia, Trad. de Pedro Galvão, Gradiva, Lisboa, 2010, pp.13-18.

Ver também:

O Método Socrático

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