sábado, 1 de outubro de 2016

A Filosofia face ao Senso Comum



A educação filosófica não consiste na adoção de umas tantas das opiniões de um filósofo, mas no treino da atitude crítica, no exercício pessoal de um pensar autêntico, no uso metódico de um ceticismo ativo, na prática da elucidação dos problemas básicos.

Filosofia fácil, filosofia falsa. O prosélito amador que tudo crê resolvido por meia dúzia de fórmulas extremamente simplórias (tomadas, não raro, de vulgarizações deturpantes) é um espírito ingénuo que resolveu os problemas sem chegar a perceber onde os problemas jazem, que dificuldades os formam, em que é que eles consistem. Adota um caminho sem que tenha entendido quais caminhos há; em que aspetos diferem; que vantagens oferecem; que obstáculos opõem; a quais rumos seguem. Ao aprendiz de filósofo […] rogo que não se apresse a adotar soluções, que não leia obras de uma só escola, que procure conhecer as argumentações de todas, e que queira tomar como primário escopo a singela façanha de compreender os problemas: de compreendê-los bem, de os compreender a fundo, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade do senso comum (a filosofia é, em não pequena parte, a luta do bom senso contra o senso comum) […]. A filosofia se não pode responder a tantos enigmas como desejáramos que respondesse, tem o poder, pelo menos, de fazer perguntas e de levantar problemas, que tornam o mundo muito mais interessante, e que mostram o estranho, o maravilhoso, logo por baixo da vulgaríssima pele das vulgaríssimas coisas do comum […].

Ora, se a nota fundamental da filosofia é a crítica e se a filosofia deve ser estudada, não pelo mérito das respostas precisas sobre um certo número de questões primárias, senão que pelo valor que em si mesma assume, para a cultura do espírito, a mera discussão de tais problemas, segue-se que é ideia inteiramente absurda a de se dar a alguém uma iniciação filosófica pela pura transmissão das respostas precisas com que pretendeu resolver esses tais problemas um determinado autor ou uma certa escola. Deverá pois a iniciação filosófica assumir um caráter essencialmente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas às discussões ulteriores; e um bom professor do lidar filosófico é como um indivíduo que nos leciona a ginástica procedendo ele próprio como um bom ginasta, e obrigando-nos a nós a fazer ginástica; é quem nos ministra um trabalho crítico, um modelo de elucidação da faina de problemas (...). Repito: seja a filosofia para o aprendiz do filósofo, não uma pilha de conclusões adotadas, e sim uma atividade de elucidação dos problemas. É esta atividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. [...]

Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro, o de nos mantermos eternamente passivos e de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer os outros; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. […]

Pois que (não nos cansemos de o repetir) não é a filosofia uma coleção de dogmas que nos cumpre decorar e repetir aos outros […].

António Sérgio, “Prefácio”, in Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia, 
Coimbra, Arménio Amado, 1974, pp. 5-24.

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